A demarcação das “terras indígenas” motiva debates intensos envolvendo muitas pessoas e setores da sociedade: além dos próprios índios, as organizações não governamentais, donos de terras, os poderes executivo, judiciário e legislativo.
Mas uma coisa que muitas vezes não se aprofunda nessa discussão é o que se entende por “terra indígena”. Esse conceito é pouco conhecido, tem sido usado de forma equivocada, até mesmo por pessoas da área – os indigenistas. Esse erro pode não apenas dificultar soluções para as questões indígenas, como prejudicar essa população de forma quase permanente, já que os processos judiciais e governamentais em geral são lentos. Essa é a visão apontada por Thiago Leandro Vieira Cavalcante, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em um artigo recente publicado na revista História, volume 35. Ele analisa o conceito, a legislação sobre o assunto e fatos relacionados e afirma que a lei tem sido ignorada de forma contumaz pelas autoridades locais e federais em muitas regiões do país.
No artigo, o autor reflete sobre o conceito jurídico de terra indígena, como ele se formou de maneira histórica e antropológica. Cavalcante considera este um conceito brasileiro e, analisando o período republicano do país, aponta que os direitos indígenas foram reconhecidos em diversos dispositivos legais. A Carta Magna de 1934 já tratava do assunto. Todas as Constituições Brasileiras que vieram depois dela também: a de 37, 46 e de 67. Ou seja, asseguravam direitos indígenas inclusive no período da ditadura. Até mesmo antes da independência do Brasil, no século XVII (Alvará Régio de 1º de abril de 1680), a coroa portuguesa garantia aos indígenas alguns direitos às terras que ocupavam.
Entre as Constituições de 34 e de 46, havia garantia apenas à posse das terras em que os índios se encontravam de forma permanente. Quer dizer, não se levava em conta o território que eles precisavam para sobreviver e manter seu povo e sua cultura. Elas tinham ainda brechas que permitiriam passar a titularidade dessas terras a terceiros.
Já a partir da Constituição de 67, houve a garantia de que essas terras seriam intransferíveis e os indígenas poderiam usufruir desses territórios de forma exclusiva. Essa foi a base para que se formasse a ideia de “terra indígena”. Depois, veio o Estatuto do Índio, em 1973, que regulamentou a questão. Foi a primeira vez que o conceito de “terra indígena” apareceu em na lei. A Constituição de 1988 foi um marco aprofundando a compreensão do que seria terra indígena, segundo explica Cavalcante.
Antes a lei limitava a terra de ocupação tradicional àquela que fosse local de moradia. A última Constituição reconheceu que é toda terra importante e necessária para a reprodução física, cultural e social desses povos. Nas palavras do autor do artigo, o direito dos índios passou a ser visto a partir da chamada tese do indigenato, ou seja, um direito que é anterior a todos os outros, anterior ao sistema jurídico. Portanto, os índios não poderiam adquirir territórios por ocupação de terras que já são de seu direito. Diante disso, não que seja necessário dar posse aos índios pela demarcação de terras, mas isso é um ato declaratório do Poder Executivo. Mesmo assim, ressalta Cavalcanti, é muito importante esse reconhecimento para que os povos indígenas tenham a proteção do Estado já que há instituições de governo que se negam a fazer obras públicas ou prestar serviços em territórios não reconhecidos.
O problema é que esse reconhecimento, quando acontece, é demorado. Em 1973 foi estabelecido o prazo de 5 anos para demarcar as terras indígenas em todo o paí, mas e lei tem sido descumprida.
Além disso, no meio ou no fim do percurso podem haver intervenções judiciais, administrativas que protelam ou até suspendem as decisões. Isso cria casos de terras indígenas que existem apenas no papel.
Outra questão é a confusão do termo “terra indígena” com a palavra “aldeia”. Não significam a mesma coisa, e isso também tem implicação na garantia de direitos. Uma aldeia pode incluir vários povos indígenas no mesmo território, e isso é comum em grandes extensões como na Amazônia. Os processos analisam se a ocupação é tradicional para então determinar a posse daquela terra. Então como lidar com casos de aldeias? É preciso fazer uma análise que inclui elementos subjetivos e teóricos sobre usos e costumes indígenas e não em termos de anos em que essa população esteve naquele local, e da manutenção de práticas culturais, explica Cavalcante.
Essa questão do “marco temporal” ganhou importância desde o caso de 2013, do julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A decisão levou em conta esse “marco temporal”, portanto, os índios só teriam direito à terra reivindicada se estivessem nela antes da Constituição de 88. Essa decisão deveria ter valido apenas para aquele, mas na prática esse “marco temporal” tem sido usado como critério para tentar anular outras demarcações. Vale lembrar que nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste a maioria das comunidades indígenas foi retirada de suas terras antes da promulgação da Constituição de 88. Se a questão temporal for levada em conta, demarcações podem ser anuladas.
O cenário atual é de risco de retrocessos e até perda de direitos dos Índios que foram garantidos pela Constituição. Cavalcante alerta para alguns fatores: as terras estão cada vez mais valorizadas, o que reforça disputas. Há alguns anos, o governo tem cedido às pressões de ruralistas no Congresso, ou pressões com a intenção de dar outros significados sobre o conceito de terra indígena, influenciando no poder executivo ou no congresso. Existe uma proposta de emenda à constituição (215/2000) que pretende transferir ao Congresso Nacional a palavra final sobre as demarcações.
O autor avalia que o caminho será o desenvolvimento de mais pesquisas de caráter histórico e embasamento das análises da FUNAI para que dê a palavra mais qualificada sobre o assunto do ponto de vista técnico e científico, evidencie a insistência na expulsão dos indígenas, e também os processos que levam a formar novas comunidades indígenas.
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Matéria de Patricia Santos