O episódio 5 da Série Termos Ambíguos trata da expressão Marxismo Cultural. A partir do verbete publicado no Termos Ambíguos do Debate Político Atual, um pequeno dicionário que você não sabia que existia.e de entrevistas realizadas com Sonia Corrêa, autora do verbete e dos professores André Kaysel e Sávio Cavalcante, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, o jornalista Valério Paiva explora o termo, desde sua origem, e como tem servido à ultradireita no Brasil e em outros países. A apresentação é dividida com Tatiane Amaral e a edição é de Daniel Farias.
Esta série é uma parceria entre o Observatório de Política e Sexualidade, vinculado à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, e do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp e este episódio fez parte do Trabalho de Conclusão de Curso de Valério Paiva, na Especialização em Jornalismo Científico do Labjor, da Unicamp.
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Roteiro
Áudio de Pablo Marçal: E aí, eles falaram que eles precisavam de 100 anos para fazer o marxismo cultural entrar em todas as esferas da sociedade. 1920, 2020, 100 anos. Você acredita? Os caras conseguiram.
Eles decidiram entrar na cultura, eles decidiram entrar na parte acadêmica. Eles criaram um mecanismo tão absurdo para entrar na vida das pessoas que a cultura foi mudada por esses caras.
Tatiane Amaral: O trecho que vocês acabaram de ouvir é de Pablo Marçal, ex-candidato à Prefeitura de São Paulo e autodenominado coach, que tenta definir o que é marxismo cultural.
Áudio de Pablo Marçal: Tudo aquilo que representava a glória de Deus, eles pegaram e desconfiguraram. Então, por exemplo, o Belo, na arte, você vai lá nas catedrais na Europa, você vai ver sempre o Belo representado. Eles descobriram que para desconfigurar o Belo no cérebro humano é só fazer o abstrato. Então, hoje, as obras de arte mais poderosas da Terra são só abstratas. E aí desde 1920 estão mudando isso.
Valério Paiva: Em suas entrevistas, declarações, palestras ou cursos, Pablo Marçal geralmente não cita fontes específicas ao abordar o conceito de marxismo cultural.
Ele apresenta suas interpretações com convicção, baseando-se na sua compreensão pessoal do tema. Por exemplo, em seu livro A Destruição do Marxismo Cultural, Pablo Marçal discute como acredita que o marxismo cultural moldou culturas, afetou sistemas econômicos, crenças, religiões e a individualidade humana.
Áudio de Pablo Marçal: Um, eu falo sobre a destruição do marxismo cultural e é uma bandeira minha, pessoal, enquanto eu estiver vivo, fazer todo mundo na Terra descobrir sobre isso.
Tatiane: Pablo Marçal frequentemente utiliza o conceito de marxismo cultural para promover seus cursos, livros e sua suposta missão pessoal, que está ligada a fazer as pessoas prosperarem e ele também, claro. Essa abordagem é muito comum entre alguns membros da extrema direita, que empregam termos enraizados no imaginário político coletivo, como marxismo cultural, para criticar mudanças sociais e culturais que consideram prejudiciais aos valores tradicionais. No entanto, nem todos os integrantes desse espectro político adotam explicações simplistas.
Alguns apresentam análises mais elaboradas e sofisticadas sobre o tema. Por exemplo, o conceito de marxismo cultural tem sido discutido em ciclos acadêmicos e políticos, com interpretações que variam desde teorias da conspiração até críticas fundamentadas sobre a influência de ideologias marxistas na cultura ocidental.
Áudio Ricardo Gomes: Marx dizia que existe uma infraestrutura na sociedade que sustenta o resto do que nós chamamos da cultura de uma sociedade.
Ele dizia que as relações econômicas é que determinavam a moral, determinavam as relações políticas, o direito de uma sociedade, o seu modelo de família, a religião, a estética com a arte, etc.
Valério: Quem fala agora de uma forma mais didática é nada mais nada menos do que o vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes, apresentador e colaborador da Brasil Paralelo, uma produtora que produz vídeos sobre política e história sob um viés conservador e de extrema direita.
Ricardo Gomes: Marx dizia o seguinte, existe a classe dos capitalistas e a classe dos proletários. Nós vamos promover o conflito entre eles e derrubando o modelo capitalista de produção, cairá toda a cultura ocidental, isso é, a moral burguesa, a arte burguesa e assim sucessivamente.
Tatiane: E para justificar as suas teorias, o vice-prefeito de Porto Alegre cita uma figura que aparecerá aqui em outros momentos.
Áudio Ricardo Gomes: No século XX, um pensador chamado Antônio Gramsci entendeu que, na verdade, este triângulo é ao contrário. O que Marx entendia que era a superestrutura, na verdade, é o que dá sustentação à economia capitalista. Gramsci disse: “é a moral, é a estética, é o direito, é a família, é a religião, é a ciência burguesas que sustentam o modelo de economia capitalista”. Isso fez com que toda a esquerda moderna mudasse a sua estratégia e passasse a gerar conflitos, não entre agentes econômicos, mas entre os agentes de cada um desses aspectos.
Um conflito na moral, no direito, na família, na estética, um conflito religioso, um conflito científico e assim sucessivamente. E quando todo esse conflito no campo cultural estivesse pronto, isso derrubaria o modelo econômico capitalista.
Valério: Foi difícil para você ouvir isso, né? Para mim também foi. Mas diariamente, milhões de pessoas são influenciadas por políticos, influenciadores e líderes religiosos extremistas, que tentam justificar suas ideias como uma defesa contra uma conspiração atribuída aos defensores do marxismo cultural.
Essa expressão ganhou espaços no dia a dia da população, nas redes sociais, em conversas cotidianas e na retórica política. Para muitos, se tornou um termo alarmante, associado a uma suposta ameaça à cultura e aos valores tradicionais. Mas o que realmente está por trás disso? Eu sou Valério Paiva e esse é o podcast sobre marxismo cultural.
Este episódio faz parte da série Termos Ambíguos, do podcast Oxigênio. Está sendo produzida a partir da obra Termos Ambíguos do Debate Político Atual, um pequeno dicionário que você não sabia que existia. Vamos analisar o que está por trás da expressão marxismo cultural.
Tatiane: E eu sou a Tatiane Amaral. E para começarmos essa reflexão, é importante entender de onde surgiu a expressão marxismo cultural. Esse termo não é uma teoria ou uma análise acadêmica.
Ele é, na verdade, uma construção criada para gerar uma sensação de ameaça. Ele aparece com frequência nos discursos da extrema direita, frequentemente associado à ideia de uma invasão ideológica.
E a origem desse termo é controversa. Muitos acreditam que ele tem raízes em ideologia de esquerda, mas, na verdade, trata-se de uma criação da própria direita. A expressão foi estrategicamente introduzida para deslegitimar mudanças culturais e políticas que promovem igualdade e inclusão. Ela funciona como uma acusação que, ao mesmo tempo, simplifica e distorce as complexas e relevantes transformações sociais que vivemos.
Para ajudar a esclarecer como esse termo foi construído e com qual propósito, conversamos com Sônia Correia, pesquisadora sobre gênero, sexualidade política do Observatório da Sexualidade Política e autora do verbete Marxismo Cultural, do pequeno dicionário de termos ambíguos do debate político atual, obra da qual também é organizadora. Sônia compartilha como começou a escrever sobre o termo, explicando sua invenção e como ele foi transformado em uma espécie de categoria acusatória.
Sônia Correa: Eu comecei a trabalhar sobre ele muito a partir dos estudos, das investigações que eu estava fazendo naquele momento sobre a genealogia de longo curso da chamada nova direita, que eu sempre digo que é a velha nova direita ou a nova velha direita.
Então, eu estava mergulhada exatamente nesse curso longo e nesse momento de reconfiguração da ultradireita que vai gestar, que vai produzir essa categoria, essa fórmula, o dispositivo político, que é uma categoria acusatória, Marxismo Cultural. E eu comecei a escrever sobre o verbete e dei muitas voltas e fui, voltei, e foi muito interessante porque, quebrando a cabeça de como tratar do verbete de uma maneira concisa, mas ao mesmo tempo precisa, sem perder de vista a complexidade da sua invenção e o caráter multifacético da forma como o verbete é aplicado e usado, eu me dei conta de que era impossível falar do verbete Marxismo Cultural sem antes tratar da questão da ideologia. Sobre a invenção, a história dessa criação da ultradireita, acho que há duas coisas muito importantes a remarcar.
A primeira delas é que, num certo sentido, o Marxismo Cultural é uma categoria acusatória que germinou no processo de reconfiguração, reorganização e reconfiguração do ultraconservadorismo e da ultradireita, que se inicia nos anos 70. É longo, complexo, disperso, é muito difícil reconstituir todos os processos que levaram a essa reconfiguração, mas essa reconfiguração tem um traço fundamental que não é só um reorganizar forças, não é só um juntar pedaços, foi também uma mudança muito substantiva no modo de acionar da ultradireita.
Valério: Essa expressão foi concebida como uma ferramenta de ataque destinada a suscitar desconfiança e divisão, alimentando a sensação de uma ameaça iminente à ordem social.
Sonia Corrêa explica que, com o passar do tempo, a extrema direita passou por uma reconfiguração significativa. A retórica, antes focada apenas na defesa da ordem estabelecida, evoluiu para promover o que se pode chamar de uma revolução cultural conservadora. Essa mudança foi uma resposta estratégica da extrema direita para disputar um campo ideológico, influenciar o debate público e conquistar mais apoiadores, apelando diretamente para o lado emocional das pessoas.
Nesse cenário, a direita deixa de se limitar à preservação de estruturas rígidas e tradicionais, adotando uma postura ativa de conquista cultural.
Sonia: O verbete marxismo cultural é icônico do que significou essa reorganização, reconfiguração, no sentido de que as forças de direita, de ultradireita, deixaram nessa reconfiguração, elas, por um lado, e isso é muito mais o processo europeu que o processo norte-americano, elas abandonaram deliberadamente o recurso à violência política, como um método legítimo da política que havia caracterizado o fascismo histórico e que havia se mantido vivo no contexto da ultradireita europeia dos anos 1950. E, no caso dos Estados Unidos, da ultradireita americana, essa reconfiguração implicou abandonar uma posição classicamente reacionária. O que significa isso? uma posição de defesa estática da ordem política, Defender com unhas e dentes a ordem política, e caminhar no sentido de engajar-se num processo de revolução cultural conservadora, com vistas a capturar corações e mentes, ou seja, uma disputa político-ideológica por hegemonia, que é muito diferente da defesa estática da ordem, que nos anos 60, 70, pensando na América Latina e outras partes do mundo, levou a ultradireita fundamentalmente a incitar golpes de Estado.
Não se tratava de ganhar corações e mentes das populações para adesão às suas ideias, tratava-se de interromper de forma radical, de forma brutal, com violência política, de um momento para o outro, processos de transformação social pautados, principalmente, por premissas e ideais de igualdade, inspirados pelos ideais de igualdade geralmente derivados do marxismo. Então, a direita, essa reconfiguração que vai madurando até os anos 90, faz esse movimento de abandonar, de um lado, a violência política como um método legítimo de ação política, que é herdado da tradição fascista, uma tradição que não foi só europeia, porque o fascismo latino-americano também tinha uma adesão forte à violência como método legítimo de fazer política, e, de outro lado, o abandono do reacionarismo no sentido clássico.
Tatiane: As forças conservadoras, especialmente a partir da rebelião estudantil de maio de 68 na França, passaram a estudar intelectuais e pensadores de esquerda como forma de criar uma resposta às transformações sociais que estavam ocorrendo.
E foi nesse contexto que chegaram à figura de Antônio Gramsci, um pensador fundamental das análises marxistas culturais. Gramsci, com suas ideias sobre hegemonia cultural, foi transformado pela direita em um símbolo de ameaça. No Brasil, Olavo de Carvalho desempenhou um papel crucial nesse processo, popularizando o termo marxismo cultural e o associando diretamente a Gramsci.
Essa manobra retórica ajudou a consolidar o conceito como uma ferramenta de ataque à esquerda e aos movimentos progressistas, distorcendo as ideias de Gramsci para usá-las como justificativa em uma guerra cultural. Sônia explica onde Gramsci entra nessa história.
Sonia: Mas, de qualquer maneira, nos dois casos, essas forças fizeram exercícios intelectuais sistemáticos de leitura de pensadores de esquerda.
Isso é o pulo do gato, de entender o que aconteceu. Na Europa, a referência principal desse rearranjo, reformulação, é o GREF, que é o Grupo de Estudos da Civilização Europeia, que é liderado por Alain de Brenois, um filósofo francês. Esse grupo se inicia em 1968 como uma reação à rebelião de 1968, considerada por essas vozes como uma desestabilização profunda que ameaçava os pilares da própria civilização europeia, ou, se quisermos, da civilização ocidental. E o esforço que eles fazem é de criar uma resposta filosófico-política pra essa dinâmica de transformação, o que eles chamavam de ameaça ou de desestabilização. E, ao fazer isso, eles vão ler um número grande de pensadores de esquerda.
Che Guevara, Frantz Fanon, entre outros, estou dando alguns exemplos. Claro que eles leram também autores de direita, por exemplo, o chamado conservadorismo alemão, que é inspirado em Carl Schmitt, mas eles chegam à Gramsci e é a leitura de Gramsci que vai dar a eles, a chave, no sentido de inspirá-los a mudar o seu modo de pensar, e, sobretudo, de como agir politicamente.
Porque no coração do que Gramsci escreveu está justamente essa proposição de que, à diferença do que propunha o marxismo leninista ortodoxo, de que a transformação só se daria por uma revolução radical e necessariamente violenta que destronasse a ordem econômica vigente. Estou simplificando muito, mas é isso. Gramsci foi uma vítima do fascismo, um prisioneiro do fascismo, e porque viu o que aconteceu na Itália, que o fascismo tinha uma vasta e ampla adesão das camadas populares, ele produziu essa reflexão riquíssima sobre formas de transformação, que não é possível que as sociedades, que as culturas não se transformam se não houver um investimento enorme de disputar os sentidos da ordem, da ordem social, da ordem econômica, não só nos parlamentos, não só na esfera pública, política, convencional, mas em todos os lugares.
Valério: O professor André Kaysel, do Laboratório de Pensamento Político e membro do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, destaca que a figura de Antônio Gramsci desempenhou um papel central na reconfiguração da extrema-direita, especialmente nas Américas. Críticas impulsionadas por figuras como Olavo de Carvalho, mas também por pensadores militares, transformaram Gramsci em um símbolo de ameaça ideológica. Essa estratégia foi usada para ampliar o impacto cultural e político da extrema-direita, com o termo marxismo cultural, servindo como justificativa para atacar e conter movimentos sociais progressistas.
André: No caso do Brasil e da América Latina, a figura que os setores reacionários costumam identificar como principal representante do marxismo cultural seria Antônio Gramsci, porque em países como o Brasil e a Argentina, em especial, ele teve influência marcante nos meios de esquerda durante os processos de redemocratização, justamente na década de 1980. No caso do Brasil, a figura-chave é Olavo de Carvalho, mas é bom lembrar, como fazem Daniela Mussi e Álvaro Bianchi em um artigo recente, de 2022, essas ideias antigramxistas, como eles chamam, têm uma circulação mais ampla, que envolve setores católicos de direita na Itália e no Cone Sul, de onde Olavo, nesse circuito justamente da direita católica, que Olavo de Carvalho tirou os principais temas dos seus ataques a Gramsci como representante dessa tentativa de promover a revolução pela cultura. E também, via Olavo de Carvalho, isso chegou aos meios militares brasileiros. Aí a figura principal é o general Sérgio Avelar Coutinho, num livro de 2002, ano sintomático, que o PT ganhou pela primeira vez as eleições, em que o general Coutinho procura fazer um estudo das ideias de Gramsci, baseado sobretudo numa fonte de segunda mão, que era outro Coutinho, no caso o Carlos Nelson, no livro dele sobre Gramsci. E nesse sentido, talvez tenha uma fonte mais fidedigna do que o próprio Olavo, que não se preocupa muito, inclusive, em apoiar suas afirmações em qualquer fonte, mas ele, a partir desse estudo, procura fazer eco às teses olavistas sobre essa ameaça à ordem que representaria o pensamento que ele chama de gramsxista.
Áudio Donald Trump: Democrats and everyone else, they actually went to court in an effort to stop me. Now they realize I was right and changed their tune. Sadly, I’ve been right about everything. And you know what? The Democrats know it, the radical left knows it. (0:19) The communists and the Marxists within our own country know it. (0:23) They want to turn our country into a communist country, Marxist country.
They want to turn our country into something that we’re not going to let them have. (0:33) We’re not going to let them do it. (0:36) But we’re right on so many fronts. And we’re going to be right again because we’re going to make America great again.
[Tradução: Os democratas e todos os outros Eles, na verdade, foram à procura em um esforço para me impedir. Agora eles perceberam que eu estava certo e mudaram isso para que, infelizmente, eu tinha sido certo sobre tudo. E você sabe o que? Os democratas sabem, a esquerda radica sabe. Os comunistas e os marxistas dentro do nosso próprio país sabem.
Eles querem transformar nosso país em um país comunista, marxista. Eles querem transformar nosso país em algo que nós não vamos deixar eles terem. Nós não vamos deixar eles fazerem. Mas nós estamos certo em tantas fronteiras. E nós vamos ser certos de novo porque nós vamos fazer a América grande de novo]
Tatiane: Esse áudio que você acabou de ouvir é do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reeleito ano passado, em que ele está acusando membros do Partido Democrata de serem comunistas.
Durante a campanha eleitoral de 2024, Trump e seus apoiadores frequentemente retrataram Kamala Harris, então candidata a vice-presidente do Partido Democrata, como uma figura comunista. Essa associação pode parecer muito absurda à primeira vista, mas ela faz parte de uma estratégia mais ampla de antimarxismo que busca mobilizar eleitores ao criar uma sensação de ameaça iminente.
Valério: Para entender essa retórica, é preciso olhar para o contexto histórico e político dos Estados Unidos.
O anticomunismo sempre foi uma ferramenta poderosa na política norte-americana, especialmente durante a Guerra Fria. Trump e sua base aproveitaram esse legado, atualizando-a para o século XXI, ao associar adversários políticos e a ideologias supostamente radicais.
Sonia: O anticomunismo da ultra direita norte-americana é muito mais visceral do que na Europa. Quer dizer, o traço marcante da direita norte-americana, sobretudo no pós-guerra, com a Guerra Fria, no contexto da Guerra Fria, era a derrota do comunismo, era a ameaça do comunismo, a derrota do comunismo.
Esse é o racional, não só da política norte-americana como um todo, mas, sobretudo, da outra direita. Todas as guerras de dominó dos anos 60, 70, elas são marcadas nesse registro de ganhar posições, uma guerra de posições com relação ao inimigo principal, que era a União Soviética.
Tatiane: A declaração de Javier Milei, atual presidente da Argentina, acusando o aquecimento global de ser uma invenção do marxismo cultural, social, exemplifica como esse conceito é utilizado para deslegitimar causas essenciais como o enfrentamento das mudanças climáticas.
Áudio de Javier Milei, presidente da Argentina: El calentamiento global es otra de las mentiras del socialismo, como digamos, o sea, hay una agenda de marxismo cultural y parte de esa agenda es, a ver, hace 10, 15 años se discutía que el planeta se iba a congelar, ahora discuten que se calienta. O sea, dale loco, o sea, aquellos que conozcan cómo se hacen esas simulaciones van a ver que las funciones están sobresaturadas en determinados parámetros, a propósito, para generar miedo.
[Tradução: O aquecimento global é outra das mentiras do socialismo, como digamos, ou seja, há uma agenda de marxismo cultural e parte dessa agenda é, vamos ver, há 10, 15 anos se discutia que o planeta ia congelar, agora discutem que se aquece. Ou seja, vai nessa, ou seja, aqueles que conhecem como se fazem essas simulações vão ver que as funções estão sobresaturadas em determinados parâmetros, de propósito, para gerar medo].
Tatiane: Narrativas como essa não apenas ignoram a urgência dessas questões, mas também as associam a uma falsa conspiração ideológica, alimentando desinformação e polarização social. Essa estratégia de deslegitimação vai além, atingindo outras áreas cruciais da justiça social. Pautas progressistas como o combate ao machismo, ao racismo, à defesa do meio ambiente e dos imigrantes e dos refugiados, são transformadas em alvos de desconfiança e rejeição, reforçando divisões e combatendo avanços nessas agendas.
Como avalia André Kaysel, o uso do anticomunismo como retórica não é apenas uma tentativa de barrar mudanças sociais. Na prática, serve também para atacar valores democráticos, enfraquecendo o espaço para o diálogo e a pluralidade.
André Kaysel: No caso do feminismo em particular tende a ser um adversário privilegiado, nesse sentido, a noção de marxismo cultural se combina com outra noção hémica do campo da direita, que é a ideologia de gênero, que é uma invenção da igreja católica, dos setores católicos conservadores, em reação às conferências da ONU Mulheres nos anos 90 e o alguns avanços, na época, nas pautas de direitos reprodutivos.
E esses dois termos, marxismo cultural e ideologia de gênero, tendem a se misturar muito em movimentos como Escola Sem Partido ou na propaganda de produtores de conteúdo como Brasil Paralelo, entre uma miríade de youtubers, influencers, conservadores, reacionários, católicos, evangélicos, militares, civis, etc. E nesse sentido, todos eles, de alguma maneira, bebem numa antiga tradição discursiva do século XX, que foi o anticomunismo, que tem um enraizamento muito profundo em sociedades como a brasileira, onde ele foi martelado por décadas por aparelhos como a Igreja Católica, pelos grandes meios de comunicação, pelos militares mesmo, pelo próprio aparelho de Estado. O anticomunismo acaba sendo um outro nome do ódio à democracia para a extrema direita, é que é um nome conveniente, você se dizer antidemocrático não pega muito bem, você se dizer anticomunista, identificando o comunismo como totalitarismo, um perigo meio vago, mas enorme, pode pegar bem, pra muita gente.
Valério: Sonia Corrêa também observa que o marxismo cultural e outros rótulos criados pela extrema direita, como WOKE e ideologia de gênero, podem ser descritos como categorias fantasmagóricas, projetadas para evocar respostas emocionais de medo e insegurança. Essas construções estratégicas são deliberadamente usadas para dividir a sociedade, especialmente em momentos de crise ou transformação social, amplificando a polarização e o sentimento de ameaça.
Sonia: Categorias fantasmagóricas porque elas incitam afetos, é muito interessante, elas são criadas, são categorias discursivas, muito bem elaboradas no sentido de mexer, estimular os afetos, afetos de medo, afetos de incerteza, sentimentos de temor. Elas são desenhadas para isso, raiva, no limite o ódio, no limite elas podem levar o discurso do ódio, as ações e atos do ódio.
Tatiane: Ao manipular as emoções das pessoas com o uso desses termos alarmistas, a extrema direita justifica direcionar reações públicas contra as mudanças culturais e políticas. Para o sociólogo Sávio Cavalcante, diretor do Centro de Estudos Marxistas e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, o crescimento do discurso da extrema direita brasileira está diretamente relacionado aos processos de transformação que ocorreram no país. Essas mudanças culturais e políticas deram voz e protagonismo a setores historicamente oprimidos, provocando reações intensas daqueles que se sentem ameaçados por essas novas configurações sociais.
Sávio: Esse sistema de agitação e propaganda do bolsonarismo, ele vem há muitos anos investindo diretamente contra a legitimidade das instituições de Estado, principalmente o Supremo Tribunal Federal, em que você tem um conjunto de atores que estão fomentando a visão de que o país é uma ditadura que é controlada pelo STF, principalmente pelo ministro Alexandre de Moraes. Uma ditadura que frauda as eleições, principalmente, ali no caso, as eleições presidenciais de 2022, e que nesse diagnóstico que é feito por essas lideranças, o principal efeito é ter uma base mais radicalizada de bolsonaristas que veem a violência como uma arma legítima de ação política. Eles ficam cada vez mais motivados por um sentimento de que o país está vivendo uma degeneração moral, política, com o predomínio de comunistas, petistas, ligações com o crime organizado, e que, nesse sentido, as ações que se valem da violência, são vistas como adequadas e pertinentes, ou pelo menos justificáveis, dada a situação que o país vive. Isso ultrapassa essa própria base mais radicalizada bolsonarista, quando a gente percebe a normalização dos ataques que foram feitos no dia 8 de janeiro de 2023, a normalização dos efeitos dessa insurreição golpista, que eles veem como algo injusto, a forma pela qual o poder judiciário tem lidado com as pessoas que foram presas naquele dia, que passaram por processos judiciais, são vistas como injustiçados por esse sistema de justiça, degenerado, deturpado.
Enfim, a responsabilidade desses agentes tem tanto a ver com esse ataque à legitimidade das instituições, que faz com que as pessoas entendam que elas estão vivendo um regime político ilegítimo.
Valério: No dia 13 de novembro de 2024, um homem lançou duas bombas no prédio do STF em Brasília. A primeira bomba não explodiu e a segunda detonou e espalhou fragmentos de metal expelidos por um dispositivo de pólvora em um tubo de PVC. Uma terceira, foi acesa, o homem se deitou sobre ela, morrendo com a explosão. Os bolsonaristas tentaram novamente normalizar o ato, dizendo que se tratava de uma pessoa com algum desequilíbrio psicológico, sem nenhuma ligação com Bolsonaro ou os ataques do 8 de janeiro. Mas, para o nosso entrevistado Sávio Cavalcante ambos ataques são resultado do mesmo movimento extremista.
Sávio: Talvez não tenha, muito provavelmente, não tenha havido algum nível de planejamento maior acima desse indivíduo, tenha sido, de fato, um caso pensado por ele próprio, mas que demonstra o quanto essa agitação e essa propaganda fomentam esse tipo de radicalismo e eles próprios perdem o controle sobre essa base em alguns momentos.
Mas não podemos esquecer que eventos com traços de terrorismo, eles foram, sim, planejados de uma forma mais coletiva nos últimos anos, seja nos bloqueios de estradas, seja na tentativa de colocar uma bomba no aeroporto de Brasília, seja nos eventos de ataque ali às instituições, no dia da diplomação de Lula em Brasília, ou seja, esse tipo de uso da violência contra as instituições do Estado, contra a ordem vigente, é uma parte fundamental do tipo de mobilização promovida pelo bolsonarismo e que tem sido normalizado por uma maior parte da sociedade.
Valério: Com a internet, o discurso promovido por grupos extremistas ganhou uma nova dimensão. Termos preexistentes como patriotismo e família, passaram a ser ressignificados, enquanto categorias inventadas, como marxismo cultural e ideologia de gênero, foram criadas para incitar o ódio e o medo, muitas vezes esvaziando seus significados originais. As redes sociais amplificaram a disseminação dessas narrativas, facilitando a propagação de teorias conspiratórias e intensificando a polarização. Bolhas digitais surgiram, fortalecendo essas construções e ampliando seu alcance na sociedade. André Kaysel analisa como a internet se tornou uma ferramenta poderosa para a propagação dessas categorias acusatórias, contribuindo para gerar desconfiança e resistência ao diálogo.
André: A internet, no primeiro momento, e as redes sociais no segundo. O Olavo de Carvalho foi muito pioneiro ao perceber o potencial das redes, e passou da grande imprensa, onde tinha uma certa iniciação no final dos anos 1990, foi escanteado por ser muito extremista, e ele vai para a internet no começo dos 2000, com o site Mídia Sem Máscaras, por exemplo, e depois para a partir de 2009, 2010, o advento das redes sociais e a sua popularização, porque ela surgiu um pouco antes, esse popularismo foi ativado antes dessa época, potencializa o alcance das teorias conspiratórias como o woke ou o marxismo cultural, que estão associados, como eu falei, você pode fazer uma série de associações nesse imaginário da extrema direita, entre as associações do marxismo cultural, esquerda-woke, ideologia de gênero, e assim por diante, que conformam esse universo, essa visão de mundo, que tem se difundido muito, que pelas redes sociais, Facebook no primeiro momento, Twitter, Youtube, Instagram, enfim, para não falar, Telegram, ou até outros universos mais obscuros.
Tatiane: Sonia Corrêa destaca que a extrema direita, em especial a norte-americana, demonstrou grande habilidade no uso da internet para disseminar suas ideias. Combinando discursos simples, emocionais e polarizadores com as dinâmicas das redes sociais, como algoritmos que priorizam conteúdos de alta interação, esse grupo conseguiu expandir rapidamente suas narrativas. Essa estratégia não apenas amplificou suas mensagens, mas também consolidou sua influência, tanto no debate público quanto em movimentos políticos globais.
Sonia: As figuras do campo da outra direita americana que gestaram tudo isso, uma boa parte deles era do campo dos estudos estratégicos. E nunca é demais lembrar que a internet é, originalmente, um produto das Forças Armadas americanas. Também foi gestada nesse ambiente. Depois ela se tornou uma coisa da sociedade civil. Mas ela foi, originalmente, gestada como um aparato militar. Foi nesse lugar. Então, tem convergências aí que são pouco estudadas, mas que a gente tem que… Não estou dizendo que isso é uma coisa conspiratória, que foi inventada no mundo militar, depois foi transportada da sociedade, para… Não é isso.
Mas tem elementos da própria concepção da internet. O campo da ultradireita norte-americana, principalmente, tem muitas habilidades, desde sempre, para lidar com esse instrumento. Tem uma proximidade, uma intimidade com o instrumento que foi gestado de alguma maneira no mesmo lugar.
E a ultradireita fez uso da internet, politicamente, desde muito cedo, e com uma eficácia que é imbatível. Imbatível até hoje. Todas essas medidas, o que acontece no Twitter, eles adquiriram a infraestrutura epistêmica da ultradireita para manejo da internet. É uma coisa incrível, como eles fizeram isso desde muito cedo. A habilidade de transmitir esse conhecimento, de replicar esse conhecimento à medida que vai se expandindo. E, claro, eu tenho quase certeza de que o sucesso dessa reconfiguração da ultradireita não houvera sido o mesmo se não fosse a existência da internet.
Valério: Hoje podemos observar que o termo marxismo cultural, após décadas de intensa utilização pela extrema direita para consolidar sua retórica e mobilização, está começando a ser substituído pelo termo woke, em especial nos Estados Unidos, onde se tornou uma nova linguagem franca das forças conservadoras. Apesar do seu caráter enigmático e origem na língua inglesa, o termo woke ganhou popularidade e também reflete, em menor medida, entre extremistas do Brasil e de outros países. Assim como o marxismo cultural, o woke se tornou uma espécie de grande cesta, onde cabem todas as críticas direcionadas a movimentos progressistas, abrangendo desde ambientalistas e feministas até ativistas antirracistas e defensores da teoria crítica racial.
Tatiane: Esse deslocamento é marcante, que adiciona um nível de sofisticação às narrativas conservadoras. Enquanto o marxismo cultural se concentrava em categorias de ação política, o termo woke e sua apropriação incluem também categorias intelectuais e teóricas, como a interseccionalidade e a teoria decolonial. Nos Estados Unidos, o woke, que nasceu no movimento negro americano nos anos 1930 como uma expressão de tomada de consciência, foi desfigurado e instrumentalizado pela direita como uma arma retórica. Essa apropriação, que já começa a ressoar globalmente, reflete-se também, embora em menor escala, nos discursos da extrema-direita brasileira e de outros países. Sobre esse fenômeno e suas implicações, ouvimos o professor André Kaysel, que analisa o impacto dessas narrativas no cenário global contemporâneo.
André: Com certeza. Eu não fiz um estudo da difusão da expressão woke em chave negativa pela extrema-direita, embora isso daria uma bela pesquisa, se é que alguém já não a fez, é algo que surge nos Estados Unidos como, um ataque às reivindicações de reconhecimento de determinados grupos oprimidos sobretudo grupos socializados, mulheres, LGBTQIA+, etc. E que acaba sendo uma arma de disputa no que poderíamos chamar de um campo da política das identidades. E eu prefiro chamar de política das identidades do que identitarismo, porque identitarismo já é um termo pejorativo e que sugere a existência de uma ideologia que faz apelo às identidades ou à diferença, o que não é bem o caso.
O que me parece mais um terreno de disputa entre determinados setores de esquerda, que, diferentemente de uma esquerda mais tradicional, fazem mais apelo à diferença do que à igualdade num polo e no outro polo à extrema-direita que associa a diferença à desigualdade, que positiva a diferença pela desigualdade. Então, esse é um campo cinzento, aonde os termos podem ser apropriados e reapropriados de um lado e de outro. Acho que me parece ser o que aconteceu com o termo Woke, que justamente tem sido muito usado pela extrema-direita associada ao movimento MAGA – Make America Great Again, Trump, e adjacências não apenas ao trumpismo, mas em setores do conservadorismo americano, de uma maneira mais geral, e aqui no Brasil tem chegado também em setores associados ao bolsonarismo.
Valério: Determinados setores sociais, como as classes médias e a pequena burguesia, são especialmente suscetíveis ao discurso da extrema-direita radicalizada. Essas narrativas frequentemente extrapolam o medo da perda de privilégios econômicos e culturais, atribuindo as transformações sociais e políticas a uma suposta conspiração ligada ao marxismo cultural. Esse discurso ressoa particularmente em contextos de instabilidade e mudanças rápidas, onde a retórica conservadora se apresenta como uma defesa dos valores tradicionais. Sobre esse fenômeno, o sociólogo Sávio Cavalcante analisa como esses grupos são mobilizados por sentimentos de medo e ressentimento, alimentado por discursos que buscam fomentar o ódio e a divisão.
Sávio: Bom, a relação entre extrema-direita e classe média, embora esse seja um tema que se desdobra em dimensões variadas, eu vejo como uma das características centrais da explicação da força da extrema-direita contemporânea. O primeiro ponto que a gente precisaria notar, e aqui tem uma associação bastante forte dessa extrema-direita contemporânea com as experiências do fascismo histórico no século XX, é que sim, sua base mais orgânica, mais radicalizada e mais ideologicamente coesa, ela é composta por indivíduos que vêm de camadas intermediárias da sociedade.
Assalariados de classe média, principalmente baixa classe média assalariada, pequenos proprietários, aquilo que enfim a teoria social designa como pequena e média burguesia. Isso não significa que a extrema-direita não tenha um apoio mais amplo, que atravessa as classes sociais em termos eleitorais. Porém, do ponto de vista das bases mais radicalizadas, que mantêm uma politização permanente para além dos contextos eleitorais, você percebe uma sobrerepresentação de fato de setores das camadas intermediárias da sociedade.
E por que isso acontece? A extrema-direita, tal como o fascismo histórico, é um movimento reacionário. Ele reage em cada contexto histórico a forças distintas, mas é um tipo de reação a mudanças pelas quais a sociedade passa e que, no caso atual, vamos focar aqui no Brasil, nós estamos falando de um conjunto de mudanças nas primeiras décadas do século XXI em que houve uma politização progressista das desigualdades, das diferenças, que se transformou principalmente no ciclo dos governos petistas de 2003 a 2016 em reformas ou tentativas de combater a desigualdade e a opressão. Políticas públicas, então, que vão mudar ou afetar essas relações de dominação e a forma da desigualdade no Brasil e que vão buscar o combate ao racismo, ao machismo, à homofobia.
E quando esses movimentos que buscam combater a desigualdade começam a ter um efeito mais concreto, você percebe um conjunto de efeitos nas práticas sociais mais amplas e mesmo nas práticas interpessoais, nas relações afetivas, familiares. Você percebe o quanto esses movimentos afetam o poder de certos grupos que tradicionalmente baseiam a sua dominação em formas que buscam naturalizar a opressão e a desigualdade de gênero, de raças, desigualdades sociais e econômicas. Enfim, existem mudanças concretas e reais que afetam a dinâmica da desigualdade e da dominação na sociedade e que são as causas desse movimento reacionário.
Agora, por que isso afeta mais diretamente e produz sintomas mais radicais nessas camadas intermediárias? Porque dentro delas existem aqueles grupos que são os menos capazes, em termos de renda, de capital cultural, ou de condições materiais ideológicas de manter o lugar superior que essas pessoas tradicionalmente exerciam nas suas famílias, nas relações interpessoais, no trabalho, na sociedade como um todo. O que eu estou querendo dizer com isso? É claro que você consegue encontrar frações da classe dominante, do grande capital, que vão se associar à extrema direita, talvez por razões mais instrumentais, mais oportunistas. Mas essas classes dominantes, essas frações da grande burguesia, elas têm recursos ideológicos e econômicos de manter o poder e a dominação sem necessariamente usar esse tipo de estratégia mais radicalizada da extrema direita. São nas camadas intermediárias da sociedade, principalmente baixa classe média, pequena burguesia, em que esse ressentimento em relação aos efeitos da mudança social que vão produzir comportamentos mais radicais que naturalizam mais a violência.
Tatiane: Um aspecto central nesse debate é o impacto das acusações de marxismo cultural nas universidades e centros de pesquisa, particularmente nas áreas de ciências humanas e sociais. Essas narrativas buscam deslegitimar o saber acadêmico, colocando em dúvida sua relevância e promovendo a ideia de que as universidades seriam espaços de doutrinação ideológica. Esse discurso criou um ambiente muito hostil ao pensamento crítico, dificultando debates essenciais sobre inclusão, diversidade e justiça social. Além disso, contribui para perseguições contra professores e pesquisadores, ameaçando não apenas a liberdade acadêmica, mas também o avanço de discussões fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, como avalia o professor André Kaysel.
André: O anti-intelectualismo é um lugar comum na direita não é de hoje. Tem um livro clássico de um historiador norte-americano, Richard Hofstadter, “The Paranoid Style in American Politics” O estilo paranóide da política americana, escrito justamente na esteira do macartismo. Ou seja, no Brasil, a coisa não é tão diferente, ou pelo menos nos últimos anos, na última década, tem se aproximado muito.
As universidades são alvo privilegiado da ideia de discurso de subversão nas ideias de justificação, especialmente as humanidades. Podemos chamar de uma investida macartista. Mas como você lembrou bem, não somos só nós. Os nossos colegas da área de saúde descobriram amargamente durante a pandemia que eles também eram alvos do discurso anticientífico e anti-intelectual. E poderíamos acrescentar até nas Exatas. Por exemplo, imprecações do Olavo de Carvalho contra a matemática moderna, contra a regra de Kant, enfim, contra a lógica contemporânea, não Aristotélica, enfim. Chegando às raias da loucura, dentro do terraplanismo, que não chegou a endossar, mas não chegou a ocupar e ficou um espaço importante nessa extrema-direita.
Valério: Termos como marxismo cultural não surgem por acaso. São construções estratégicas concebidas para dividir e polarizar, mobilizando a sociedade contra transformações sociais e culturais. Ao se popularizar em discursos conservadores, essa expressão tornou-se uma arma retórica usada para explorar o medo de mudanças e justificar agendas autoritárias.
Tatiane: Essa estratégia simplifica questões complexas, transformando pautas como direitos humanos, igualdades e justiça social em ameaças imaginárias. Ao criar essa narrativa, movimentos conservadores não apenas distorcem a realidade, mas também reforçam divisões e tratam mudanças progressistas como perigos à ordem tradicional. O marxismo cultural opera como um rótulo que valida a censura em escolas, universidades e meios de comunicação, dificultando debates críticos e fortalecendo uma visão de mundo que propõe os chamados valores conservadores contra transformações sociais que buscam a inclusão. Esse discurso limita o diálogo e fomenta desconfianças, comprometendo avanços sociais e projetos sociais.
Valério: Esperamos que esse episódio tenha contribuído para lançar luz sobre as origens e os impactos dessas narrativas, ajudando a desmentificar seu uso estratégico. A construção de categorias acusatórias é uma ferramenta poderosa para manipular percepções, mas compreendem sua lógica, é o primeiro passo para superá-las.
As trilhas sonoras usadas são do Youtube Audio Library.