Série Termos Ambíguos – #3 – Racismo Reverso
ago 1, 2024

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Este é o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, baseada na publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”. O termo tratado neste episódio é Racismo Reverso. A partir do que a professora da UFRJ Fátima Lima escreveu no dicionário, e de entrevistas realizadas com a diretora executiva da ONG Koinonia, Ana Gualberto, da jornalista, diretora da consultoria Ser Antirracista, Paula Batista e do advogado Thiago Amparo, este podcast traz a resposta à pergunta: Racismo Reverso existe?

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Daniel Faria: Em janeiro deste ano, no estado de Alagoas, um homem negro virou réu em ação de injúria racial movida por um cidadão italiano branco. O italiano prestou queixa-crime após ser chamado de, entre aspas, cabeça europeia e escravagista, pelo réu, e teve a denúncia aceita pelo Ministério Público daquele estado, com base na lei N° 14.532, de 2023, que tipifica o crime racial. Porém, no artigo de número 20 desta lei consta que o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. 

Tatiane Amaral: Essa nota foi publicada no portal de notícias antirrascista Notícia Preta. Os comentários que seguem a nota são bastante indignados, como não poderia deixar de ser. Um disse: “só faltou o italiano ser minoria para a denúncia ter sentido, né?”. Outra pessoa afirmou: “Nada a ver o uso dessa lei para defender colonizador”. Segundo a defesa do homem negro, “Ao usar a lei para punir um homem negro de suposto racismo cometido contra um homem branco, de origem europeia, a ação admite a existência do ‘racismo reverso’. Isso representa uma verdadeira aberração jurídica, nas palavras do advogado”.

Daniel: Taí, a gente chegou ao tema deste episódio: Racismo reverso. Mas, será que isso existe? Faz sentido essa expressão cada vez mais propagada por vozes racistas ou de extrema direita no Brasil e em outros países? Eu sou o Daniel Faria.

Tatiane: E eu sou a Tatiane Amaral. E esta é a série Termos Ambíguos, que traz a cada episódio a explicação de uma categoria das muitas popularizadas pelos discursos da extrema direita em anos recentes. Essas categorias são analisadas nos verbetes da publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”. 

Daniel: Esta série é uma produção do Observatório de Política e Sexualidade, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, e do podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp. 

Vamos falar sobre racismo reverso, mas não dá pra falar desse assunto sem antes falar de RACISMO, que o dicionário Aurélio define como preconceito e discriminação direcionados a alguém em razão de sua origem étnico-racial. Embora essa definição seja aparentemente neutra, ela se refere à opressão e à discriminação que resultam da ideologia ou crença na superioridade da raça branca sobre as demais. Ou práticas de subordinação e exclusão baseadas na cor da pele ou origem étnica das pessoas “não brancas”. Ou seja, o questionamento do racismo é o questionamento de uma longa história de opressão, desigualdade e injustiças sócio-raciais. 

Tatiane: Há muito tempo as pessoas negras e de outras etnias têm interrogado de frente as teses da superioridade branca que está na origem da escravidão moderna. O combate ao racismo é antigo, e parece não ter fim, porque o racismo parece não ter fim. Desde o século 18, pelo menos, a crítica ao racismo elaborada por autores e autoras negras tem sido fundamental para nutrir a luta antirracista em todo mundo. São exemplos o ex escravizado Olaudah Equiano que lutou pela abolição da escravidão na Grã Bretanha, no século 18, assim como Frederick Douglas e Luis Gama, intelectuais abolicionistas do século 19, nos EUA e no Brasil.  Mais perto de nós, temos o movimento Black Power e os Panteras Negras, nos Estados Unidos, mas também o Movimento Negro Unificado no Brasil, cujas vozes intelectuais mais conhecidas foram Abdias do Nascimento e Lelia González. Não fossem essas lutas, estaríamos ainda mais longe de alcançar a igualdade racial. 

Daniel: É Tati, mas nem todos compartilham a ideia de que pessoas negras  – ou de outras etnias tenham os mesmos direitos que as pessoas brancas. Isso em relação à formação escolar, emprego, moradia, bens, acesso à saúde, à educação superior e tudo o mais que tem sido garantido às pessoas brancas desde sempre. Na verdade, foi quando se anunciaram medidas do estado e de outras instituições para promover a igualdade racial que surgiu essa acusação de Racismo Reverso.

Tatiane: Conversamos com Ana Gualberto, que é mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia e História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela também é diretora Executiva de Koinonia, organização cuja missão é mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar serviços a grupos histórica e culturalmente vulneráveis e pessoas em processo de emancipação social e política. Segundo ela:

Ana Gualberto: Racismo reverso não existe é uma grande falácia quando a gente começa a pensar num racismo, numa possibilidade de aplicar a condição do racismo de uma forma inversa para pessoas que não sejam negras ou de povos originários. A gente vai pensar que o racismo é um sistema de controle e de diminuição da humanidade de pessoas não brancas, então a gente tá partindo de um pressuposto que existe o ser humano e existem uns não humanos. Então como que a gente vai aplicar isso de forma reversa? Só se a gente será se a humanidade e voltar a todos os processos para que os povos negros os povos originários se sentissem num processo de superioridade com relação aos caucasianos e isso não tem condições de acontecer. Não tem condições da gente aplicar com pessoas brancas, né, com essa parcela da sociedade, tudo que aconteceu historicamente, socialmente com essas populações não brancas. É impossível.

Tatiane: A professora Fátima Lima é antropóloga e professora associada do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Centro Federal de Educação Tecnológica, também do Rio. Ela foi a autora do verbete Racismo Reverso no Dicionário de Termos Ambíguos, no qual contou  a história dessa categoria, mostrando que de fato surgiu no âmbito dos movimento anti racistas norte americanos, para depois ser desfigurada por setores da sociedade que se opunham a demandas por direitos civis e justiça racial. Vamos ouvir esse trecho do texto na voz de Simone Pallone. 

Simone Pallone: “No início dos anos 1960, o termo racismo negro foi usado quase que exclusivamente pela comunidade negra para nomear questões internas ao movimento negro envolvido na luta por direitos civis. Por exemplo, discussões sobre se a comunidade negra deveria sempre votar num candidato negro, ou se ser negra ou negro era condição imprescindível para que uma pessoa merecesse o voto da comunidade. A pergunta que se fazia era: não será isso uma outra forma de racismo? 

No final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, porém, houve uma virada no uso do termo. Isso aconteceu por conta da intensificação das revoltas contra o racismo. Essas mobilizações já começavam a alterar as relações de poder entre pessoas brancas e negras. A partir desse momento, tanto nas relações cotidianas quanto na mídia, o termo “racismo reverso” passou a ser usado por pessoas brancas contra militantes negras e negros, principalmente do movimento black power”.

Daniel: No Brasil, esse termo apareceu mais tarde, em parte motivado pelas primeiras políticas de reparação racial. A Constituição de 1988, por exemplo, aprovada no ano em que a abolição formal da escravidão completava 100 anos, adotou princípios de igualdade e não discriminação, assim como o direito da população quilombola às terras que ocupavam. Mais tarde,em 2003, foi criado o Dia Nacional da Consciência Negra, em 2010 foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial e, em 2012, foi sancionada a Lei de Cotas para o Ensino Superior.

Tatiane: A partir dessas transformações, pessoas brancas passam a recorrer à acusação de “racismo reverso” sempre que seus privilégios se veem questionados ou diminuídos. Um caso recente que teve grande visibilidade foi o ataque ao programa de trainees da rede de lojas Magazine Luíza, criado em 2021 para capacitar pessoas negras. A iniciativa gerou críticas e debates na mídia, nas redes sociais e até mesmo no âmbito jurídico, tendo sido qualificada por várias vozes como racismo reverso. Ou seja, um programa que seria discriminatório das pessoas brancas. Houve até quem defendesse que poderia ser considerado anticonstitucional por supostamente violar o artigo Quinto da Constituição, que trata de violações aos direitos e liberdades fundamentais. 

Daniel: O programa da Magalu foi denunciado ao Ministério Público do Trabalho. Nas denúncias, alegava-se que as pessoas brancas haviam sido discriminadas pelo edital do programa. A Defensoria Pública da União, que  naquele momento era dirigida por uma pessoa indicada pelo então presidente Bolsonaro, abriu uma ação contra a empresa, acusando-a de estar fazendo “marketing de lacração”. 

Tatiane: É, mas apesar do desgaste, prevaleceu a razão, ou seja o princípio de que o racismo está sempre associado a privilégios. Em reportagem publicada no site Conjur, a advogada Christiany Pegorari Conte,  professora de Direito e Processo Penal da PUC-Campinas, argumentou que o Programa Magalu não tinha como objetivo impedir outras raças ou etnias de serem contratadas, mas sim, de corrigir a desigualdade racial de acesso à oportunidades de trabalho. Desde então, outras empresas têm oferecido programas semelhantes voltados 100% para pessoas negras ou com parte das vagas para pretos e pardos.  

Daniel: Mesmo que as ações ou políticas afirmativas sejam fundamentais, justas e urgentes, há gente que não concorda com elas. O caso da Magalu é um exemplo disso, provocando, inclusive,  uma busca intensa pelo termo Racismo Reverso nas plataformas da internet. A gente sabe que há muitos casos em que pessoas negras são preteridas em vagas de emprego, mas ninguém se escandaliza. E quando surge um programa de reparação dessa injustiça, as denúncias explodem. É muito difícil aceitar isso. 

Tatiane: Outra situação mais ou menos recente aconteceu numa edição do Programa Big Brother Brasil, da Rede Globo. Uma  participante negra foi acusada de praticar RACISMO REVERSO porque chamou a colega de casa de “desbotada e sem melanina”. Esse caso, assim como o da Magalu, são citados no verbete do Dicionário de Termos Ambíguos.

E aí eu me pergunto: é importante saber o que diz a Legislação sobre Racismo? O crime de racismo previsto na Lei 7.716, de 1989 pode ser aplicado a uma pessoa negra? Como essa questão legal é tratada no Dicionário de Termos Ambíguos, Daniel?

Daniel: O dicionário relembra que a partir dos anos 1980 a ideologia da democracia racial começou a ser contestada mais sistematicamente pelos movimentos negros no Brasil. Expostas as realidades do racismo no país, o passo seguinte foi consolidar leis e políticas públicas de reconhecimento, reparação e restituição às comunidades negras e seus descendentes. São exemplos a Lei 7.716, de 1989, conhecida como a Lei Caó, e a Lei 9.459, de 2013. Essas duas leis ampliaram as definições de outra já existente desde 1951, que era a Lei Afonso Arinos, que tratava dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Entre um momento e outro, foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, que é a Lei 12.288, de 2010. Ao contrário dos dispositivos legais anteriores, o Estatuto Racial não é punitivo, mas reconhece a desigualdade racial como estruturante e estabelece diretrizes de políticas para sua correção e reparação às comunidades negras.

Tatiane: O fato é que o Brasil é bem amparado legalmente. Mas como observa Ana Gualberto, existe um abismo entre ter a lei e aplicá-la: 

Ana: Do mesmo jeito que o Brasil é um país maravilhoso em confecção de leis, em construção de leis, ele é absurdamente do não cumprimento das leis. A gente não tem pessoas cumprindo sentença de crime de racismo. A gente não tem uma lei que, inclusive foi ampliada agora a lei caô, né para injúria racial, mas essa lei, ela não é aplicada e a gente não consegue aplicabilidade da legislação desde a sua base, quando a gente chega nas delegacias para fazer o registro de um crime de racismo, um crime de injúria racial, no crime de intolerância religiosa, de ódio religioso. A gente já tem ali uma barreira para o registro disso, então o processo de judicialização, ele praticamente inexistente no Brasil com relação a isso. O que muitas vezes a gente vai conseguir quando são casos que envolvem comunidades é uma recomendação do Ministério Público é uma entrega de cesta básica, só que isso não resolve. Na organização onde eu trabalho a gente monitora crime de intolerância e ódio religioso. A gente faz esse monitoramento desses casos e a gente vê, ou não, a não judicialização desses casos, como isso não avança no processo, então o que que você denuncia. 

Daniel: É incrível ouvir essa fala da Ana porque certamente não adianta ter uma legislação que não é implementada, fiscalizada, e que não exige alguma reparação a quem pratica o crime de racismo. Esse processo só dificulta o combate ao racismo. Mas temos que vislumbrar alguma possibilidade de mudança.

Ana Gualberto: E aí, pensando na questão da lei de cotas, quando a lei de cotas é criada, ela é criada numa perspectiva transitória. Perspectiva da implementação da lei de cotas é que haja uma melhora na qualidade de ensino público e no processo de desigualdades raciais dentro do país para que a gente ofereça as mesmas condições e que a gente vire de um momento e fale que realmente não são necessárias cotas porque a gente tem as mesmas oportunidades, só que isso não avança. Enquanto isso não avançar. Vai ser necessário a gente ter cota sim vai ser necessário e a gente precisava ampliar, inclusive é muito complexo no Brasil 

Daniel: Ana lembra por exemplo que, muitas vezes, pessoas brancas usam as cotas de concursos públicos dentro das Universidades de forma fraudulenta.

Tatiane: Apesar dos possíveis desvios do objetivo, e de pessoas fraudarem o sistema de cotas, as políticas afirmativas são necessárias para começarmos a corrigir essa distorção de direitos na nossa sociedade. A população negra no país é de 55%. São pessoas que se auto identificam como pretas ou pardas. E essa identificação é, por sua vez, fruto dos movimentos de valorização da cultura ancestral afrodescendente, das políticas públicas de reparação, das leis contra o racismo e do conhecimento produzido nas universidades sobre negritude. A sociedade cada vez mais valoriza a cultura negra como uma cultura plural, diversa e que acolhe outras. Vemos mais pessoas negras fazendo sucesso, ocupando cargos importantes, se formando nas universidades, e essas conquistas fazem toda a diferença.

Daniel: Também conversamos com a jornalista Paula Batista, mestra em Divulgação Científica e Cultural, coordenadora de um projeto muito interessante: a SerAntirracista, uma consultoria sobre a qual ela nos contou muitas coisas. 

Paula Batista: Bom, a Ser antirracista é uma consultoria de diversidade, equidade e inclusão racial com foco no letramento racial e na educação antiracista e voltado pra ação, então todas as nossas iniciativas buscam fazer com que a pessoa possa refletir sobre os temas e, a partir disso, também agir no seu cotidiano, aonde está, contra o racismo. Nós atendemos escolas, empresas.

Daniel: A Paula nos disse que a consultoria também é certificadora do Pacto de Promoção da Equidade Racial, iniciativa de uma associação do mesmo nome que se propõe a implementar um Protocolo ESG Racial para o Brasil. ESG pra quem não sabe, não conhece, é a sigla em inglês para Ambiente, Social e Governança, um modelo a ser aplicado pelas empresas privadas. 

Paula: “Então o pacto, ele nasceu no ano de 2022, e chama pacto de promoção da equidade racial. Ele vai olhar tanto para os níveis de diretoria, gerência e liderança. E a partir daí então o trabalho da certificadora é verificar se esses dados que foram inseridos na plataforma são reais mesmo. A gente também calcula as ações que essa empresa está realizando, tanto de ações afirmativas internas quanto de investimento social privado para a comunidade, e para que acelere essa equidade racial dentro da empresa.

Tatiane: Como diz a Paula, sem essa iniciativa a probabilidade de se ter uma equidade racial dentro dos níveis hierárquicos das empresas no Brasil era de 100 anos, e com o pacto há a expectativa de alcançar esse objetivo em 20 anos nas empresas. O que já é um avanço.

Daniel: A Paula destaca que o pacto também está criando um índice focado nas mulheres negras dentro das empresas. 

Paula: A gente sabe que existe uma interseccionalidade entre raça e gênero. É possível identificar que as mulheres negras sempre estão em desvantagem, os piores salários e piores níveis hierárquicos, né? Então, a gente tem mulheres brancas com maior número de formações nas universidades e em seguida vêm as mulheres negras. Então, já foi o tempo em que se acreditava que nós não tínhamos formação para ocupar esses cargos. Hoje, nós já temos formação, mas as empresas precisam amadurecer esse olhar e refletir para que haja a contratação dessas mulheres nos cargos, principalmente de liderança.”

Tatiane: E essa experiência do pacto leva a outras ações, serve de estímulo. Como comenta nossa entrevistada, ver empresas privadas de sucesso adotando ações para a promoção da equidade racial estimula a população negra a estudar, se formar e lutar por posições melhores. Também mobiliza a cobrança de outras instituições. 

Paula: Então, tem alguns movimentos de analisar a questão das cotas no serviço público. Alguns estados já têm isso implementado. O que eu digo é que é um caminho sem volta. Então você já tem esse movimento criado, já tem essas ações que já estão sendo feitas, eu acredito que cada vez mais isso vai sendo amadurecido e, sim, as empresas que já têm esse compromisso social, de responsabilidade social, vai cobrar também das instituições públicas esse compromisso.

Daniel: A educação antirracista e a luta antirracista são modos de dar visibilidade à brutalidade do racismo e nos fazem entender que não dá pra dizer que não tem racismo no país. Já o racismo reverso, voltando ao ponto principal do episódio, não tem como existir. Aqui ouvimos a Paula de novo: 

Paula: É impossível que a gente possa conceber uma ideia como essa porque, para que o racismo fosse, vamos dizer, reverso, a gente precisaria mudar totalmente a nossa história. Então, os africanos escravizassem os europeus e trouxessem para cá. E aí se os europeus brancos fossem escravizados e fosse feita toda a barbaridade que foi feita e toda a violência que foi feita. E aí, a libertação também, da forma como foi feita, sem nenhum direito, sem nenhuma garantia de vida e trabalho, sem nenhum Direito Civil garantido para essa população. E nenhuma reparação humana feita pra essas pessoas. E aí essas pessoas assim vivenciariam uma sociedade em que elas são excluídas. Isso seria um cenário de racismo reverso. Então, a gente teria que voltar na história para que existisse isso, por que o que a gente fala isso? Porque as pessoas entendem o racismo como uma discriminação simples, e o racismo não é isso.

Tatiane: Ana Gualberto complementa falando do papel dos meios de comunicação na educação da sociedade e na luta por espaços iguais para todes.

Ana: Eu sou uma pessoa muito otimista, tá? Eu acredito que eu não vou alcançar isso, mas espero que outras gerações alcancem, mas eu quero trazer uma questão que eu acho que a gente tem que estar muito atento, né? Eu tenho 47 anos e eu lutei muito. Eu queria muito ser Paquita, mas eu não podia ser paquita, né? Nunca fui paquita. Vamos pensar o que a gente tem visto hoje. Quando a gente abre a televisão, os meios de comunicação, a gente vai ver pessoas negras, gays, e isso é um avanço, porque a gente lutou muito para isso.
Mas isso é longe da gente destruir a estrutura racista. Isso ainda tá muito longe e eu acho de verdade que para que a gente consiga reverter esse quadro, a gente precisa que os meios de comunicação, eles têm uma participação das grandes empresas de comunicação que detêm a comunicação de massa que a gente tem no Brasil, que são as pessoas que constroem um senso comum. São essas pessoas que seguem construindo o senso comum. A gente vai ver as concessões da comunicação de televisão e de rádio. Tão todas na mão dessas igrejas com discurso extremamente fundamentalista, com discurso racista, com discurso misógino, com discurso homofóbico. Infelizmente são essas pessoas que constroem o senso comum. Se a gente conseguir alcançar esses meios de comunicação, eu acho que a gente consegue avançar bastante sobre isso.

Tatiane: Nossas entrevistadas deixaram claro que o racismo nunca está dissociado das estruturas de poder, ou seja a uma suposta hierarquia racial, na qual a raça, entre aspas, superior tem privilégios e as demais não têm direitos. É por isso que a acusação de “Racismo Reverso” é usada também contra os povos indígenas do Brasil. Por exemplo, na discussão sobre o Marco Temporal, em que são acusados de quererem ou usufruírem de “privilégios” territoriais. Uma acusação que apaga os séculos de massacres e violência contra esses povos. 

Daniel: E pra gente encerrar esse episódio, é interessante voltar a reflexões da  Paula ainda sobre a falácia do racismo reverso pois ela se relaciona com as críticas e propostas da Ana sobre papel da comunicação nos processos de luta contra racismo nas suas várias manifestações. 

Paula: Não há possibilidade de existir na nossa sociedade. Então eu falo que é uma desonestidade quem traz esse tipo de informação, e as pessoas acabam aceitando isso por conta da desinformação. Mas também de uma ideia dentro da nossa sociedade que é o medo das pessoas de perderem o espaço. A gente observa, né, nas dinâmicas do racismo que as pessoas temem que elas percam espaço. Então elas querem sempre e verem melhores do que outras. As pessoas negras terem os mesmos direitos que elas, não são regalias, são os mesmos direitos que as pessoas brancas, ela começa a se sentir ameaçada.

Daniel: Ou seja, a expressão racismo reverso é mesmo uma invenção perversa. Quando ouvir esse termo, ou melhor dizendo, essa acusação, pare e pense: De onde ele vem? Para que que serve? A quem beneficia?  

Tatiane: E antes de terminar, temos que fazer uma atualização sobre o caso tratado como injúria racial que apresentamos no início desse episódio. Só pra lembrar, um homem negro foi acusado de praticar racismo reverso ao chamar, por uma plataforma de mensagem, um italiano branco de “cabeça branca, europeia e escravagista”. O caso ainda está em julgamento, mas pedimos professor da FGV SP Thiago Amparo, um esclarecimento sobre o tema. Antes dele tratar especificamente do caso, ele reforçou o que já comentamos aqui sobre o racismo reverso.  Vamos ouvir.

Thiago Amparo: Quando a gente fala sobre racismo, a gente tem que, primeiro, ter em mente a ideia principal do racismo que é fundamentado em teorias hierarquizadas de poder, ou seja, que alguns grupos em razão de sua raça, cor, etnia, seriam melhores em algum sentido, mais evoluídos, mais desenvolvidos ou algo parecido, do que outros grupos. Quando a gente tem uma história de séculos de escravidão, você tem história de séculos de desigualdade racializada, desde violência policial até outras desigualdades que compõem esse sistema de racismo. 

Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, o que a gente está falando é o seguinte: que não existe racismo reverso nesses dois sentidos ou seja,  não existem teorias que coloquem pessoas brancas historicamente como subalternas, como menores, como inferiores, né? E também não existe uma história onde você tenha, sistematicamente, pessoas que hoje, em razão de sua raça e cor, são consideradas privilegiadas em algum sentido. Não existe uma história de opressão sistemática contra pessoas brancas, né?, como a gente tem com relação a pessoas negras e outros grupos. Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, tá falando que não existem essas duas coisas.

Daniel: Pois é, mas quando uma acusação de racismo reverso chega a um tribunal, como mostramos no início deste episódio, como pode ou deve ser tratada, Thiago? 

Thiago: Quando a gente fala de crimes como injúria racial, como o próprio crime de racismo,  a gente tem, pela lei, a ideia de que vai punir a ofensa à honra, seja de uma pessoa específica ou de um grupo como um todo. Então, quando eu xingo uma pessoa negra com um insulto racista, que que eu tô fazendo? Eu tô xingando aquela pessoa específica e também posso estar ofendendo um grupo como todo, né? Então, muitas vezes, grupos mais conservadores tentam se valer dessa legislação de injúria racial e de racismo para dizer o seguinte: “Olha, pessoas brancas também podem sofrer racismo”. E aí seria o racismo reverso, porque a sua honra poderia ser violada em razão de sua raça e cor. E aí os tribunais muitas vezes tem se discutido, olha, será que seria plausível, juridicamente, você dizer que há um caso, por exemplo, de injúria racial quando uma pessoa branca é xingada por uma pessoa negra? E aí essa pergunta fica no ar. 

Tatiane: É de uma situação como essa que estamos tratando, de um homem negro proferir palavras que ofenderam um homem branco. O professor Thiago continua os esclarecimentos.

Thiago: O caso que tá pendente agora e que vai ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, é um pedido de habeas corpus, onde um homem negro é que é acusado de injúria racial, não contra ele, mas contra o homem branco, e ele tá dizendo: “olha eu não cometi nenhum crime aqui, né?”. E aí a gente pode entender de dois jeitos. De um lado que, não, vale para todo mundo, no sentido de que se é racismo, seria esse injúria racial e o crime de racismo seria também possivelmente feito por pessoas negras, quanto por pessoas brancas, porque isso significaria simplesmente uma discriminação de um grupo em relação a outro, não importa a história desses grupos. Ou a gente pode dizer não, não dá, porque racismo reverso no sentido de que essa legislação foi justamente pensada para proteger grupos historicamente marginalizados, foi justamente pensada para coibir esse tipo de teoria que eu falei que teorias de superioridade de um grupo em relação ao outro, que não existe em relação a pessoas brancas, não têm teorias que vão inferiorizar pessoas brancas de forma sistemática como há e houve na história contra as pessoas negras e também você pode dizer, essa lei só faz sentido se a gente aplica para proteger grupos historicamente discriminados, porque justamente é para remediar essa história de discriminação, né?

E aí pode-se tem especialmente juristas negras, sempre enfatizado que quando a gente fala de injúria racial quando a gente fala de crime de racismo, a gente está falando que não é um crime que ele existe no vácuo histórico, né? São crimes que na verdade existem dentro de um contexto e o contexto é de uma histórica discriminação para pessoas negras e o contexto de teorias que impõem essa superioridade pessoas brancas com relação às pessoas negras, é então não daria para a gente aplicar como se fosse dois lados da mesma moeda. De um lado crimes praticados por pessoas negras por pessoas brancas e o inverso de pessoas brancas pessoas negras, porque o que a gente tá tentando coibir aqui é que esse sistema de poder racializado se perpetue. E aí esse caso agora, pendente no Superior Tribunal de Justiça é crucial para poder dizer, olha que se a injúria racial e o crime de racismo, que hoje a injúria racial  também é um tipo de crime de racismo, se esses crimes eles protegem grupos historicamente discriminados, ou eles também vão proteger inclusive pessoas brancas contra críticas, né? Porque você pode também, em alguma medida se expandir o conceito  dos crimes de injúria racial racismo, toda vez, por exemplo, que alguém escreve uma coluna de jornal criticando pessoas brancas e privilégio branco, sei lá em relação à violência policial, pode ser objeto de uma ação judicial, né? Então justamente isso pode servir como uma arma para que seja utilizado para silenciar pessoas negras, uma legislação que originalmente tinha como ideia central coibir justamente o racismo no país. 

Tatiane: Este foi o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.

Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação de Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de comunicação social – Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. Tivemos também a colaboração de Simone Pallone, na leitura de um trecho do Dicionário. As entrevistas e o roteiro foram feitos pelo Rafael Revadam, jornalista e doutorando em Política Científica e Tecnológica e pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio. A revisão do roteiro foi feita pela Tatiane Amaral, pela Nana Soares, que é jornalista e mestre em Gênero e Desenvolvimento da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.

Tatiane: Você pode nos seguir pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para observatoriospw@gmail.com. O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues.

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