A vida é uma milonga, o título da dissertação de mestrado de Cristiana Fellipe Silva, foi inspirado na música de mesmo nome, de Fernando Montoni e Rodolfo Sciammarella. A canção fala da necessidade de o dançarino bailar nas milongas. Também diz que é muito triste um milongueiro ficar só assistindo os outros bailarem. Para a autora, a canção compara as milongas com a nossa vida, pois remete para a necessidade de o ser humano dançar no baile da vida, ou seja, de ser protagonista da sua história.
A partir do envolvimento pessoal com a dança, que é desde 2009, considerada patrimônio imaterial da humanidade, Cristiana Fellipe Silva pesquisou, utilizando teóricos da antropologia do corpo e urbana, os bailes de tangos com um ritual de liminaridade, ou seja, como ritos de passagem. Outra preocupação da autora foi investigar as milongas a partir das relações de gênero.
Segundo a história oficial, o tango, inicialmente, era bailado somente entre os homens imigrantes que chegavam ao porto de Buenos Aires, região do rio platense, hoje um dos bairros mais tradicionais de Buenos Aires – San Telmo. A dança era uma forma de esses imigrantes expressarem suas saudades da terra natal e isso se mesclou com a cultura afrodescendente, dos negros que também chegavam nestes espaços. O tango era considerado uma dança demoníaca diabólica, sendo bailado pelas prostitutas e escravas; as “boas” moças não podiam dançar com esses homens. Aos poucos o baile foi se popularizando entre os operários e trabalhadores e as mulheres conquistaram seu protagonismo neste universo. Do fim do século XIX até os anos 1980 a prática de bailar era passado de pai para filho e somente na década 1990 o tango passou a ser ensinado nas academias. Embora a Argentina leve a fama de ser o país do tango, a dança é também bastante tradicional no Uruguai. Em Montevidéu, há vários bairros tradicionais que realizam milongas todos os dias.
A técnica de pesquisa utilizada pela autora consistiu na participação observante e a observação participante – ou seja, ao mesmo tempo em que a autora observou as milongas de São Paulo, Uruguai e Buenos Aires, ela participava desses bailes. Além disso, ela entrevistou tangueiras de várias díades entre 20- 30 e acima de 70 bailam e concluiu que o ambiente das milongas é intergeracional, onde pessoas de várias idades participam e dançam entre si. A maioria das entrevistas foi formal, mas, Cristiana também recolheu dados importantes por meio de conversas casuais que ocorriam nas mesas dos bares das milongas e nos banheiros femininos onde as mulheres se trocavam. Além disso, conversou com os homens de diferentes idades para entender a dinâmica do baile de tange. A milonga é um baile cheio de rituais e gestuais específicos, que devem ser respeitados. Por exemplo, não existe a prática de o homem convidar verbalmente a mulher para a dança, mas sim realizar o “cabeceio”, uma leve inclinada da cabeça mostrando para a mulher seu interesse por ela. O cavaleiro – termo usado para os homens nas milongas – contudo, só realiza o cabeceio se a dama faz a “mirada” – olha com desejo e vontade de dançar. Além disso, não se dança mais do que quatro tandas – ou seja, 4 músicas com a mesma mulher. Ao contrário do que se imagina, a pesquisadora encontrou ações das mulheres na dança; são saberes e poderes trocados o tempo todo dentro do baile – “a mulher tem um poder incrível com a mirada”, afirmou Cristiana – é ela quem domina o rapaz e não o oposto. Eles aguardam olhar marcante da mulher para que eles realizem cabeceio. A autora enxerga a dança como uma narração; “é uma espécie de diálogo sem palavras no qual um propõe uma história por meio da troca corporal, simbólica”. Assim, embora a dança tenha começado como uma hegemonia masculina, Cristiana identificou uma forte presença feminina não só no espaço dos bailes, como também hoje elas dão aulas sozinhas, têm academias, organizam as milongas; é mais um espaço que era hegemonicamente masculino, mas que, aos poucos, foi sendo conquistado pelas mulheres.
Matéria de Lívia Batin
Locução de Simone Pallone