Meu divã interior é um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp, a partir do romance homônimo, escrito por Rodrigo Cunha e neste sexto episódio o protagonista Fabiano parece preferir a yoga à psicanálise, mas é por um bom motivo. Uma grande paixão surge, dessa vez essa é a pessoa certa! Até o tarot confirmou, não tem como dar errado.
Meu divã interior é um projeto de extensão PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura).
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Roteiro
PENSAMENTOS DE FABIANO: Embora eu não me lembre exatamente, imagino que tenha feito menos tempo de terapia com Nadini do que com Alice. Nadini cobrava caro demais e como meu sono não melhorava e eu não via perspectiva de mudança nos relacionamentos, achei que aquilo não valia a pena. Minha terceira tentativa foi a psicanálise. Procurei, primeiro, o pai de uma colega de escola do meu filho. Na sessão experimental, ele foi bastante desbocado, bem mais do que nas festas de criança a que eu havia ido no prédio dele. Percebi, pelos livros da estante, que ele era lacaniano. Sempre me incomodou um pouco o quanto a psicanálise parecia colocar o sexo como centro de todas as questões psíquicas. Esse foi um dos motivos do rompimento de Jung com Freud. Após o período de críticas à abordagem de Freud, foi Lacan quem propôs a retomada das ideias freudianas. No caso desse meu psicanalista, especificamente, que contrastava uma barba máscula com um jeito afeminado de falar, me incomodava a importância que ele dava para a fantasia. Segundo Lacan, a fantasia vem do que falta ao sujeito, que está em constante busca do seu objeto perdido. Sei que a noção de fantasia é muito ampla, mas para mim era evidente que ele estava falando de sexo. Para ele, todo mundo tem suas fantasias sexuais. Se eu não tivesse, seria uma aberração? Por que eu sabia que ele estava falando de sexo? Esse tema foi o mote para ele dizer:
PSICANALISTA: Talvez você não se sinta à vontade de contar suas fantasias, já que temos um círculo de relações em comum entre pais da escola.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Acho que ele devia imaginar que eu tinha um desejo contido por sua mulher. Em uma das festas no seu prédio, lembro de perceber que ele me flagrou olhando pra ela. O meu olhar não tinha nada a ver com um desejo sexual. Eu tentava decifrar o enigma daquela mulher tão interessante e ao mesmo tempo tão estranha. Em função do meu suposto desconforto em expor minhas fantasias a um conhecido, ficava a meu critério seguir a terapia com ele ou pedir indicação de outra pessoa.
FABIANO: Você tem razão. E além da relação dos nossos filhos e de pais de amigos deles, você também fez análise com a minha primeira namorada.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Eu não estava inventando. Pedi a ele indicação de outra pessoa. Jung conta, em suas memórias, que dedicou muitos anos de sua vida a analisar suas próprias fantasias. Não consigo me lembrar de nada tão elaborado sobre minhas fantasias pessoais, ao contrário de Jung que descreve com riquezas de detalhe suas alucinações e sonhos . Tive um sonho muito recorrente na minha juventude. Eu sonhava que sabia voar. Não era um super-poder. Era uma capacidade que eu descobri que tinha. Eu não possuía asas. Sentia a sensação do movimento de impulso com os braços. Quase como se estivesse nadando no ar. Sentia também a sensação de atrito do meu rosto com o ar durante o vôo. A sensação do vôo é maravilhosa! Lá do alto, eu não era mais um míope. Assim como Clark Kent, eu não voava de óculos. E via tudo abaixo de mim com muita clareza. (pausa) Outro sonho que teve uma certa recorrência, podemos chamar de pesadelo. Eu caía em queda livre de uma altura muito grande, mas sempre acordei antes de me esborrachar no chão. Não era uma sequência do sonho em que voava, são sonhos distintos que aconteciam em momentos distintos. Pode até ser que um tenha alguma relação com o outro, mas a interpretação disso foge ao meu alcance. (pausa) Também vivi, acordado, uma grande fantasia, por um longo tempo. Foi uma imensa paixão, que nas palavras de Vinícius de Moraes, na canção lindamente musicada por Tom Jobim, seria “uma ilusão que é só desilusão”.
Fui o primeiro a chegar e ser recebido por Luna, a professora, naquele que seria o meu primeiro dia de aula de yoga. É muito fácil ficar deslumbrado à primeira vista com aquele tipo de beleza que os publicitários adorariam colocar em um anúncio e produtores de cinema e televisão não hesitariam em contratar. Eu, que não costumo acreditar em coisas transcendentais, percebi, não sei como, que a beleza de Luna ia muito além do que os olhos podiam ver. Uma espécie de “aura clara”, diriam os que crêem nisso. Antes dos outros alunos chegarem, o namorado dela apareceu pra combinar alguma coisa com ela. Fomos apresentados. Só então, percebi que ela usava uma aliança de compromisso na mão direita. “Claro que essa informação tinha que surgir logo de cara, no primeiro dia! Ela é mesmo muita areia pro meu caminhão”, foi o que pensei. Depois que os alunos chegaram, a maioria, mulheres, antes de começar a aula, duas pessoas falavam sobre política e o comentário de Luna em torno do tema que conversavam me deu a impressão de que ela era alienada politicamente. Muito tempo depois, re-interpretei essa cena e entendi que a percepção de Luna estava muito acima dos assuntos mundanos e o comentário aparentemente alienado seria apenas um desvio estratégico de um assunto que só poderia trazer energias negativas naquele momento que tínhamos escolhido para uma prática centrada no equilíbrio entre o corpo e o espírito. Já era, nesse tempo, a interpretação de um apaixonado.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Eu e outras duas mulheres éramos os alunos mais assíduos. Quando passei a ficar mais tempo ajudando Luna a guardar os tapetes e outros materiais, percebi que seus assuntos comigo eram distintos dos que tinha com as alunas com quem mais conversava. Ela falava sobre sua vida pessoal. E se queixava bastante do namorado.
LUNA: Ai… É complicado…
Ele tinha conseguido um trabalho na Espanha e queria que Luna fosse com ele pra lá. Para ela, faria bem ao namorado essa ida para o exterior, para aprender a se virar sozinho. Luna o achava um mimado.
LUNA: Eu sou quase como a mãe dele!
Moravam juntos. Luna contou que ele reclamava quando acabava papel higiênico e não tinha iniciativa de ele próprio comprar.
LUNA: Sabe? Sempre teve tudo na mão…
Também criticava, às vezes, a roupa que ela tinha escolhido usar quando iam sair à noite
LUNA: As minhas roupas? Acredita?
E teve a infeliz ideia de comemorar um aniversário de namoro em uma churrascaria. Luna é vegetariana.
LUNA: (suspiro fundo de incômodo)
E é evidente que o namorado sabia disso.
LUNA: Complicado…
PENSAMENTOS DE FABIANO: A rotina de Luna estava longe de ser aquela coisa tranquila e zen que podemos imaginar para uma professora de yoga. Essas aulas não deviam ser financeiramente suficientes e eu achava mesmo a mensalidade muito barata. Ela também trabalhava como monitora em uma brinquedoteca e interpretava personagens infantis em festas de criança. E além disso, fazia mestrado em psicologia. (pausa) Mesmo sabendo de sua rotina agitada, arrisquei-me, um dia, a convidá-la pra tomarmos um café na minha casa. Ela aceitou, aí passamos várias horas em uma deliciosa conversa sobre nossas vidas, nossos pais, nossos sonhos realizados ou a realizar. Eu não sabia o que, exatamente, eu significava para ela, mas só podia interpretar que tinha alguma importância, tanto pelos assuntos íntimos, quanto pelo tempo que dedicou a mim naquele dia do café na minha casa. Já não era mais possível eu esconder de mim mesmo o meu encanto por ela, mas a aliança estava sempre ali a frear minha ilusão. O namorado já havia ido pra a Espanha e esperava uma decisão de Luna.
LUNA: Não sei ainda…
Ela não queria abrir mão de tudo o que fazia pra viver à sombra dele. Havia conquistado sua independência muito cedo e gostaria de conquistar mais. Almoçamos juntos um dia e conversamos sobre esse seu dilema.
FABIANO: Quem sou eu pra te dar um conselho, mas acho que você merece alguém melhor do que esse seu namorado. Alguém que te respeite, que te valorize!
PENSAMENTOS DE FABIANO: Eles se falavam com alguma regularidade por videoconferência. E mantinham, à distância, a rotina de brigas que já tinham por aqui. Um dia, ela apareceu na aula sem aliança. Delirei de felicidade! Quase explodi por dentro quando senti Luna me tocar para corrigir uma postura em determinado exercício. Mas a aliança voltou à sua mão pouco tempo depois. No entanto, eu sabia que uma relação cambaleante não tinha como sobreviver à distância. E ela estava decidida a ficar no Brasil. Luna conseguiu um espaço em sua agitadíssima agenda para dar uma passada rápida no lançamento do meu primeiro livro. E aproveitou para me convidar para a sua defesa de mestrado. O namorado tirou férias e veio para a defesa. Confesso que não entendi boa parte da apresentação de Luna, mas certamente achei bastante interessante, e inusitada, para um trabalho acadêmico. Pelo menos para mim. Luna falou de mandalas, hinduísmo, budismo, taoísmo, confucionismo e também de psicologia! Sobretudo, de Jung.
LUNA: Obrigada por ter vindo, Fabiano! Significa muito pra mim!
PENSAMENTOS DE FABIANO: O namorado só olhou de longe, desconfiado.
Em uma manhã de sábado, chovia torrencialmente e fui mesmo assim à aula de yoga. Parecia ser o único maluco disposto a sair de casa naquela tempestade para não perder uma aula. Luna já havia comentado, em certa ocasião, que sabia ler cartas de tarô. Como dificilmente alguma aluna apareceria naquele dia, perguntei se ela tinha um baralho ali e se podia ler o tarô para mim. Fiz esse pedido inspirado em um episódio que assisti de uma série da TV Brasil chamada Entre o Céu e a Terra. Um personagem cético observou que uma moça lia a mão de outra, e mesmo não acreditando naquilo, pediu que ela também lesse sua mão. A pergunta inicial que fiz para Luna foi a mesma que o personagem cético fez à quiromante:
FABIANO: Quando eu vou encontrar o grande amor da minha vida?
(som de carta)
LUNA: Em breve.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Creio que a segunda carta falava sobre como estava o cenário atual. Havia nuvens.
LUNA: Há algo que precisa ser dissipado para que você consiga ver as coisas com mais clareza.
FABIANO: O que é preciso fazer para que essas nuvens se dissipem?
PENSAMENTOS DE FABIANO: A carta seguinte mostrou um par de alianças. Luna interpretou que uma união precisava ser rompida para que o laço definitivo com o grande amor acontecesse. Pouco tempo depois da leitura do tarô, compartilhei uma postagem de uma amiga minha, que dizia que se voltasse a ficar de novo com alguém, queria que fosse com uma pessoa disposta a ser minha namorada para o resto da vida. A primeira a curtir essa postagem foi Luna. E no mesmo dia, ela compartilhou o vídeo de um casal de velhinhos, uma senhora em uma cama de hospital e um senhor declarando o seu amor a ela, com o fundo musical de Dick Haymes cantando You’ll Never Nnow, de Mack Gordon e Harry Warren. Um apaixonado como eu só poderia ver a curtida e a subsequente postagem como um sinal. Outro sinal, daqueles a que chegamos por interpretar pelo viés da paixão, evidentemente, foi a indicação de Luna para eu assistir a um filme que em condições normais de pressão e temperatura, não seria o tipo de filme que me atrai. Eu provavelmente não veria se não estivesse tomado pelo “fogo que arde sem se ver”. Era uma espécie de conto de fadas mas adaptado para o público adulto, não era uma animação. A história é do tipo de romantismo utópico no qual minha experiência pessoal não permitia acreditar antes da paixão por Luna. Nessa mesma época, caí na besteira de entrar em uma página de jogos que são apenas brincadeiras em cima de uma combinação algorítmica das pessoas que curtem, comentam e compartilham nossas postagens. Perguntei ao jogo quem seria o grande amor da minha vida. E o resultado da minha pergunta foi Luna. Quando notei que ela ficou novamente sem usar a aliança por duas aulas seguidas, esperei a saída das outras alunas e falei a Luna que queria dizer uma coisa a ela.
FABIANO: Provavelmente, você já deve ter percebido, mas eu queria deixar bem claro.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Ao invés de dizer o que pretendia, entreguei a ela um poema que havia escrito em casa. Era uma evidente declaração de amor, que brincava com o nome dela e falava de um náufrago que encontrava o seu porto seguro.
LUNA: Nossa, Fabiano! Obrigada! Eu fico lisonjeada! Não sei nem o que dizer!
FABIANO: Sabe aquela carta do tarô com a aliança, a união que tinha que ser rompida para que eu pudesse ficar com o grande amor da minha vida? Só podia ser aquela que você tinha, Luna! (fala sem titubear) O grande amor da minha vida é você.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Pelo que me lembro, essa deve ter sido a primeira vez, em toda a minha vida, que expressei meus sentimentos a alguém dessa forma. O único caso parecido foi antes do meu casamento, aquele que foi interrompido por um ex. Após um tempo, durante o qual ela tentou descobrir se queria mesmo seguir com o ex ou não, essa pessoa ressurgiu em minha casa. Sua simples aparição me levou ao delírio! Falei que queria me casar e ter filhos com ela. Em resposta, disse que queria ter ouvido isso do ex. E que só tinha ido à minha casa para se despedir. Luna, como taróloga amadora, havia dado uma interpretação genérica para a carta com as alianças. A fatídica tarefa de dar um significado ficou a cargo da minha ilusão pessoal, do meu delírio apaixonado. Embora eu sempre tivesse desejado ficar e dar certo com alguém para envelhecermos juntos, nunca acreditei nessa história de “grande amor da minha vida”. Mas eu já não era mais eu mesmo quando expressei isso à Luna. Sua resposta foi dilacerante:
LUNA: Desculpe, Fabiano, mas o da minha não é você.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Descobri, depois, pelas redes sociais, que ela provavelmente já devia estar namorando, naquela época, um produtor de vídeo com quem tinha começado a trabalhar. Ele fazia o par romântico das princesas que ela interpretava nas festas infantis. Ela e seu par romântico nas festas de criança conseguiram uma participação especial em um capítulo de uma minissérie infanto-juvenil de muito sucesso. Pelo que sei, a carreira televisiva de ambos terminou aí. Depois da minha declaração de amor cego por quem já estava em outra, algumas aulas após, Luna manifestou se sentir constrangida com aquela situação e pediu que eu não fosse mais à yoga. Não quis contrariá-la. Novamente pelas redes sociais, fiquei sabendo que ela não está mais com o videomaker. E declara com a mesma convicção de sempre seu amor pelo namorado da vez.
Você acabou de escutar o primeiro episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC, Pró Reitoria de Extensão e Cultura e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Esse projeto consistia na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico.
Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre.
No próximo episódio: O passado volta para perturbar o sono de Fabiano. Alice tenta desvendar as simbologias que o inconsciente de Fabiano constrói, mas nem tudo ele conta a ela… Continue nos escutando!
Ficha técnica:
Adaptação de roteiro, Direção e Produção:
Antero Vilela e Helena Chiste
Atrizes / Atores, (por ordem de aparição):
Antero Vilela, como Fabiano
Fredbacon, como Psicanalista
Luê Vanoni, como Luna
Trilha sonora original:
Antero Vilela
Edição, mixagem e finalização de áudio:
Vitor Muricy
Apoio:
LABJOR, Podcast Oxigênio do LABJOR e Secretaria Executiva de Comunicação, da Unicamp