Meu divã interior (episódio 5)
maio 30, 2023

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Neste episódio, Fabiano reflete sobre religião, crença e espiritualidade, Além de indagar-se à Alice acerca da necessidade de as pessoas criarem fantasias, perpassando pela futilidade das redes sociais e ancestralidade até a sua infância.

Meu divã interior, um romance radiofônico, o qual é um projeto de extensão PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura)  realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp, ingressantes do ano de 2020. 

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Roteiro

Alice: Os seus pais têm alguma religião?

Fabiano: Pra falar a verdade, não faço a menor ideia se meu pai acredita ou deixa de acreditar em alguma coisa. Nunca conversamos sobre isso e eu nunca ouvi ele falar nesse assunto. Mas a minha mãe era católica e espírita ao mesmo tempo, ou pelo menos se dizia. Não do tipo que ia sempre à missa, mas rezava muito. E ia de vez em quando a sessões espíritas. Minha mãe também tinha uma crença própria dela, num mundo ideal, um planeta imaginário que ela chamava de seu “verdinho”.

Pensamentos de Fabiano: Acho que por isso minha mãe estava ok com o fato de eu me sentir um extra-terrestre, mas não digo isso a Alice.

Alice: Você tinha algum tipo de conflito com a sua mãe relacionado à religião?

Fabiano: Eu só ironizava, de vez em quando. Talvez o que eu dizia pudesse ser considerado uma coisa ofensiva. Mas é o tipo de coisa que eu só faria mesmo com uma pessoa próxima como a minha mãe. Por exemplo, quando ela fazia o sinal da cruz enquanto passávamos de carro por uma igreja, eu dizia que era como um soldado que presta continência para seu superior. Ou quando eu saía para viajar e ela dizia:

Mãe: “Vai com Deus, meu filho! Vou ficar aqui rezando pra você fazer boa viagem! Me liga quando chegar!”

Pensamentos de Fabiano: Eu respondia:

Fabiano: “Se Deus é onipresente, é uma redundância dizer ‘vai com Deus’. E se um cavalo atravessar a pista bem na hora que eu estiver passando, você acha que Deus vai tirar o meu pé do acelerador e apertar o freio pra mim? Eu que tenho que fazer isso, mãe!” A reza dela, pra mim, era muito mais uma forma de aliviar o próprio espírito. Mas minha mãe tirava de letra esse meu jeito. Achava graça.

Alice: Pelo visto, o sentido que você via nas orações era muito diferente do dela. Você se lembra de algum momento, de algum acontecimento específico que tenha influenciado essa sua forma de ver as coisas?

Fabiano: Não lembro. Acho que sempre fui desconfiado, questionador. Se a coisa não fazia sentido pra mim, se não me convencia, não tinha como eu acreditar. E eu imagino que desde que entendi como são grandes as desigualdades no mundo, passei a pensar que se existisse um Deus, ele era muito injusto. Aprendi o “Pai Nosso” e a “Ave Maria”. Sei de cor. Mas também aprendi a ficar calado nos natais em que as pessoas davam as mãos para rezar. Eu dava as mãos, mas não rezava. E junto com um amigo meu, que inclusive era filho de pastor, faltava às aulas de ensino religioso na escola.

Alice: O que você sente quando alguém expressa sua crença?

Fabiano: Se me incomodasse com isso, tava perdido, porque a maioria das pessoas acredita em alguma coisa, em algum Deus, pelo menos. E eu acho até que faz bem pra elas a crença. Acho que, no fundo, eu devo me incomodar com a minha falta de crença. Imagino que talvez não seja muito saudável não ter uma. Eu gosto da filosofia budista, mas tem certas coisas do budismo em que eu não acredito. E acho que me identifico mais com o politeísmo do que na crença em um único Deus todo poderoso. Por exemplo, no politeísmo grego e romano, tem o deus do céu, a deusa da terra, o deus do mar. No politeísmo indígena, tem o deus do sol, a deusa da lua, o deus do trovão. Ventos, tremores, marés, trovoadas a cada deus citado. Só que pra mim, não são entidades com forma humana. O ser humano é narcisista demais e imagina deuses à sua imagem e semelhança. Ou então, diz que Deus o criou à sua imagem e semelhança. Esses deuses, pra mim, são o que são: céu, terra, mar, sol, lua, trovão. Ou seja, não são deuses. Tá vendo só, Alice? Nem quando eu tento, chego perto de uma crença. 

Alice: Vamos pensar um pouco nesse incômodo que você diz ter por aquilo que você imagina ser sua falta de crença. – sugeriu Alice. 

Fabiano: Você não acha que o meu problema de sono pode ter alguma relação com o meu ceticismo? Como uma perturbação do que as pessoas chamam de alma, de espírito… Falta de espiritualidade.

Alice: Você tem, Fabiano! Você não precisa ter uma religião para ter uma espiritualidade. A etimologia da palavra “religião” aponta pra pelo menos três sentidos originais no latim: o culto aos deuses, a releitura dos textos sagrados e a religação com algo maior do que nós mesmos, que é interpretado como divino. Muita gente precisa da religião para se reconectar com esse algo maior. Mas essa conexão, que a gente poderia chamar de cósmica, ou se você preferir, com o universo, a natureza, você já tem.

Pensamentos de Fabiano: A lembrança de um mini-documentário feito por minha irmã, na época de estudante, sobre diferentes religiões, em que ela começa falando justamente da palavra latina religare, umedece meus olhos. (breve silêncio)

Alice: (quebrando o gelo) Você quer um copo d’água, Fabiano?

Pensamentos de Fabiano: Faço que sim com a cabeça, sabendo que a água é só um pretexto para Alice me deixar sozinho por um instante, em silêncio, com meus pensamentos.

(breve silêncio novamente)

Fabiano: Imagina o seguinte, Alice. Pensa que esse diálogo que a gente tá tendo agora já tinha sido bolado por alguém e ele só acontece de fato quando uma pessoa lê num livro a nossa história que tinha sido criada por esse alguém, por um “criador”. E se a pessoa que estava lendo essa história fechasse o livro, eu deixaria de existir. Só voltaria quando outra pessoa lesse a mesma história. Não consigo suportar essa ideia, eu quero escrever eu mesmo a minha própria história. Entende por que eu não posso acreditar em Deus?

Alice: O problema não é você não acreditar em Deus. É você achar que isso pode fazer mal pra você. 

Fabiano: Eu não sei se faz mal. Sei lá, só levantei uma possibilidade. Sabe o que eu fico pensando às vezes? Por que os personagens fantásticos, os monstros, os semi-deuses, os bruxos, os super-herois fazem tanto sentido pras pessoas? Por que não fazem o mesmo sentido pra mim? Outro dia, uma amiga minha postou no facebook um relato sobre a história da relação dela com a literatura, uma crônica mesmo. O tipo da postagem que eu gosto e não aquela coisa das pessoas que se expressam naquela forma limitada. Em duas linhas, dá pra falar muita bobagem, mas nada que preste. É só isso o que elas têm a dizer, que concordam ou discordam da bobagem postada por outra pessoa. As pessoas consomem diariamente aquilo que não presta.

Alice: Você estava falando do relato da sua amiga…

Fabiano: Sim. A crônica dela me fez pensar na minha própria história com a literatura. Ela é professora de literatura e tem uma relação visceral com o que lê. Mas eu acho que a realidade já tem ingredientes suficientes para fazer a gente rir, chorar, pensar. A fantasia nunca fez sentido pra mim. Eu nunca entendi por que as pessoas precisam da fantasia e por que as narrativas tinham que ser metafóricas, não podiam ser diretas. 

Alice: Você deve estar se referindo a uma fase mais madura. E na infância?

Fabiano: Tem razão, devo ter gostado de certas coisas que vi quando eu era criança, tipo Guerra nas Estrelas, por exemplo. Sinceramente, não me lembro. Quando vi ET, eu achei a história bonita, mas juro que duvidava de que se houvesse vida fora da Terra, seria daquele jeito, não propriamente à nossa imagem e semelhança, mas bem parecido, com cabeça, dois olhos, braços, mãos, pernas e pés, só que verde.

Pensamentos de Fabiano: Eu já era um adolescente com ideias um pouco mais claras na cabeça. Ou, pelo menos, era o que achava. Quando meu irmão via coisas pretensamente filosóficas que eu escrevia em um caderno, aconselhava-me a ler os filósofos. Primeiro, para saber se já não tinham dito antes aquilo que eu estava dizendo. Segundo, para ver se o que eu estava dizendo já não tinha sido derrubado por outros argumentos.

Alice: Certamente, houve uma virada, uma mudança na passagem da infância para a adolescência. Você se lembra?

Fabiano: Uma coisa que eu me lembro que marca essa passagem é a mudança do meu herói preferido. Deixou de ser o He-Man, do desenho animado, e passou a ser o MacGyver, de Profissão Perigo. Os dois tinham o mesmo dublador, a mesma voz. O MacGyver não tinha super poderes. Era um humano normal, que resolvia os problemas com sua inteligência. Fazia muito mais sentido pra mim, assim como Sherlock Holmes, que eu adorava. 

Pensamentos de Fabiano: Não sei por que nem todo relâmpago que me vem à mente se traduz em algo que digo para Alice. Além do MacGyver, também adorava o Lula e o Juba, de Armação Ilimitada. Continuei.

Fabiano: Depois disso, por não ver muito sentido na fantasia, sempre gostei de ler biografias, de assistir filmes baseados em fatos reais. E meu gênero preferido sempre foi o romance histórico. Meu preferido. Sabe o que eu fico pensando às vezes? De onde vem o gosto das pessoas?

Pensamentos de Fabiano: E sem esperar resposta da Alice, porque percebo que ela quer ver onde vão dar minhas divagações, emendo:

Fabiano: Eu sei que tem alguns gostos que são culturais. Por exemplo, gostar de pequi. Quem não é do cerrado, pode ser que nem conheça essa fruta. Sei que tem pessoas que influenciam os nossos gostos. Primeiro, nossos pais. Depois, algum professor que toca mais a gente. Mas dois filhos que escutam as mesmas músicas que os pais costumam ouvir, um pode se apegar mais ao Chico e o outro ao Caetano. De onde vem esse apego, essa identidade?

Pensamentos de Fabiano: Uma amiga me perguntou, certa vez:

Amiga: “Cê” sabe que quem gosta de café de verdade toma sem açúcar, né? 

Fabiano: “Você gosta de café sem açúcar e eu gosto de café com açúcar! Dá licença?”.

Pensamentos de Fabiano: Por que não dou a Alice os exemplos que relampejam em minha mente? Quando eu e minha ex-mulher ainda éramos namorados, ela quis que assistíssemos juntos a um filme que ela adorava. Devo ter gostado do filme mas não me emocionei como ela, não chorei. Por que ela criou a expectativa de que o filme causasse os mesmos efeitos em mim? Por que se decepcionou por eu não ter adorado? 

Alice: Se eu te dissesse que pelo menos parte do que você se questiona tem origem na ancestralidade, na herança genética, eu sei que você não se convenceria facilmente, Fabiano. Você falou de coisas muito diversas. Vamos tentar nos concentrar na questão da fantasia – sugeriu Alice.

Pensamentos de Fabiano: Eu não sei de onde vem o meu gosto pela música clássica. Não me lembro do meu pai ouvir. Só que eu detesto música contemporânea. Acho que é qualquer coisa, não faz sentido pra mim. O jazz por exemplo, que é considerado um gênero mais sofisticado, não é qualquer um que gosta. Eu gosto das canções do jazz. Mas não tenho a menor paciência pro improviso que os músicos acham o máximo. Acho um saco o improviso!

Alice: Fabiano, isso tudo têm relação com o mistério da fantasia. E também têm relação com uma questão que já apareceu antes aqui nas nossas conversas e inclusive na sua fala de hoje sobre o tema da religiosidade. Você já me perguntou uma vez se eu fazia interpretação de sonhos. Acho que nós podemos tentar, juntos, conversar sobre seus sonhos, ver o que eles significam pra você. Tenta se lembrar do que você sonha. Tenta anotar alguns sonhos pra depois a gente conversar sobre eles. Pode ser?

Fabiano: Sim, vou tentar lembrar e anotar. Posso só te fazer uma pergunta sobre aquela coisa da ancestralidade?

Alice: Claro!

Fabiano: Por que duas pessoas com as mesmas origens têm características tão distintas, em termos de gostos, de personalidade, de visão de mundo?

Alice: Da mesma forma que uma pode ter os olhos do pai e a outra o sorriso da mãe, uma o temperamento da avó paterna, a outra o jeito de andar do avô materno, e mais uma infinidade de outras combinações possíveis. 

Pensamentos de Fabiano: “OK, você venceu, batata frita!”, foi o que pensei, sem dizer nada. Apenas sorri.

Você acabou de escutar o quinto episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC (Pró Reitoria de Extensão e Cultura) realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. 

Esse projeto consiste na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico. 

Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre. 

Fique com a gente no sexto episódio, em que Fabiano parece preferir a yoga à psicanálise, mas é por um bom motivo. Uma grande paixão surge, dessa vez essa é a pessoa certa! Até o tarot confirmou, não tem como dar errado.

Continue escutando a gente, até mais!

  • Ficha técnica:

Adaptação de roteiro, Direção e Produção:

  • Antero Vilela e Helena Chiste 

Atrizes / Atores e participações especiais, (por ordem de aparição):

    • Helena Chiste, como Alice
    • Antero Vilela, como Fabiano 
  • Sara Morais, como Mãe do Fabiano 
  • Anna Vilela, como Amiga

Trilha sonora original:

  • Antero Vilela

Edição, mixagem e finalização de áudio: 

  • Vitor Muricy

Apoio:

  • LABJOR, Podcast Oxigênio do LABJOR e Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp 

 

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