Neste episódio, acompanhamos Fabiano em algumas desventuras amorosas arranjadas em um aplicativo de namoro e suas dificuldades – dentre risadas, músicas, cobras e lagartos – de encontrar alguém que cumpra as suas expectativas.
Meu divã interior é um romance radiofônico, fruto de um projeto de extensão da PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura) e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp, a partir de romance homônimo de Rodrigo Bastos Cunha. A adaptação foi feita por Antero Vilela e Helena Chiste.
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Roteiro
ALICE: Você tinha dito pra mim que estava procurando alguém no Tinder. Conta como foi essa experiência.
FABIANO: Eu não dou muito certo com essas coisas. A primeira vez que eu entrei nesse aplicativo foi há mais ou menos uns dois anos, por indicação de uma amiga minha. Pra ela, deu super certo. Ela até me ensinou a usar. Quer dizer, mais ou menos. Demorei um tempo pra perceber que deslizar pra esquerda significa uma coisa e deslizar pra direita significa outra. Mas eu não entendo por que tanta gente acha que só a imagem basta pra fazer uma escolha. Um monte de gente nem escreve nada sobre si mesmo no próprio perfil.
ALICE: Você chegou a sair com alguém? Combinou algum encontro pessoalmente?
FABIANO: Sim. A primeira pessoa com quem eu saí me pareceu legal e acho que a gente tinha algumas afinidades. Ela também é professora. De física. Ficamos amigos pelas redes sociais. Não sei que amizade é essa, porque a interação entre a gente é mínima.
ALICE: Isso acontece. Então, se essa é a primeira, você saiu com outras.
FABIANO: Sim. Com a segunda, foi um pouco diferente. Ela é sua xará. Alice. Nos encontramos num show da Ana Salvagni, por sugestão minha. Era um teste pra ver se o nosso gosto musical batia, e queria que alguém como a Ana testemunhasse minha tentativa de ficar com alguém.
ALICE: Por que ter uma testemunha é importante pra você?
FABIANO: Não sei. Se ninguém vê, é como se fosse uma mentira, uma ilusão. Depois do show, fomos a uma padaria ainda aberta.
ALICE DO TINDER: Aceita chá?
FABIANO: (ri) Eu não gosto, obrigado.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Conversamos por um bom tempo. Ela tinha passado por coisas bem pesadas, parecia estar tentando uma virada na vida, assim como eu. Nos despedimos com um abraço. Voltamos a nos ver, ela foi pra minha casa. Ofereci bolo e café. Expressei duas preocupações minhas sobre a possibilidade de ficar com ela. Uma era que eu não sabia se conseguiria lidar com o convívio com o pai dela, que ela tinha dito ser conservador, de direita. Contei que tentei ter uma relação respeitosa com o pai da minha ex, mas o meu jeito reservado e quieto era visto como hostil. A outra preocupação era
FABIANO: que eu estou esperando o resultado do pedido de bolsa que fiz para passar um período pesquisando no exterior e sinceramente, acho estranho começar um namoro e logo depois… sumir… por um tempo.
ALICE DO TINDER: Legal você estar me contando isso, Fabiano. Isso é importante para você, tá tudo bem!
FABIANO: Na despedida, me beijou. Na boca. Eu não tava preparado pra isso. Achava que a gente ainda não se conhecia o suficiente pra saber se queria ou não aquilo.
ALICE: E aí dessa vez foi você quem não quis continuar a encontrar?
FABIANO: Fui eu, mas não foi logo de cara. A gente ainda saiu uma vez prum concerto de orquestra. Eu consegui falar pra ela que não tava preparado pra namorar. Ela me entendeu. Contei pra ela que eu fiquei de olho, por um tempo, em uma flautista da orquestra. Escrevi uma história em que ela aparecia como personagem. Alice sugeriu que eu fosse falar com ela no intervalo do concerto. Preferi esperar acabar e aí, sim, fui falar com ela. Não deu em nada. Ela disse que…
FLAUTISTA DA ORQUESTRA: …Não terminei de ler. Eu comecei, mas achei muito parecida com Desmundo da Ana Miranda.
FABIANO: Não entendi se eu devia ficar lisonjeado pela comparação ou indignado por uma acusação de plágio. Nunca li nada da Ana Miranda pra saber.
ALICE: Esse foi seu último encontro com alguém que você conheceu pelo Tinder?
FABIANO: Não. Eu ainda tive dois encontros com a Alice, um pra tomar um suco perto da Lagoa e outro pra ver o filme sobre o Erasmo Carlos no cinema. Nesse dia, eu tava mal-humorado. Acontece muito, por causa do problema do sono. Pela manhã, faltei à aula de ioga, não me lembro por quê. A ioga ajudava pelo menos a trazer mais equilíbrio.
ALICE: Sua aula não era à noite?
FABIANO: Durante a semana era no final da tarde, começo da noite. Mas eu também ia no sábado de manhã. (breve silêncio)
ALICE: O que você costuma fazer quando percebe que está mal humorado?
FABIANO: Quando eu não tô muito bem comigo mesmo, tento fazer um esforço pra não deixar o mal humor atrapalhar todo o resto. Fazia tempo que eu não ia prum shopping. Prefiro ver filme em casa. Eu desacostumei totalmente com aquela multidão de gente, com aquele barulho todo, não gosto disso. Ponto pro mal humor. A Alice atrasou pra caramba, chegou bem depois do horário combinado. Ponto pro mal humor. Depois do filme, ela fez comentários sobre o Erasmo Carlos como se ele não significasse nada pra ela. Por que ela não disse isso antes do filme? Podia ter sugerido outro. Fomos a uma livraria e depois de ela circular em busca de sei lá o quê, talvez de coisa alguma ou de uma melhora do clima entre a gente, topamos com o livro Sapiens, de um historiador judeu.
ALICE DO TINDER: …O que você achou?
O OUTRO FABIANO: Eu não gostei de algumas questões desse livro. A visão dele sobre o capitalismo, por exemplo, me deixou incomodado.
FABIANO: E ela falou coisas que deixavam claro que ela não acredita na teoria da evolução de Darwin. Custei a levar a sério. Ali eu tive a certeza de que a gente não daria certo.
ALICE: O que desperta em você saber que alguém não acredita na teoria da evolução?
FABIANO: As pessoas podem acreditar no que elas quiserem e a gente tem que respeitar isso. Convivo com católicos, umbandistas, judeus, espíritas. Acho que não tem nenhum protestante no meu círculo de relações, mas não acreditar na teoria da evolução de Darwin significa negar que somos animais como todos os outros. Somos primatas. Essa negação só pode estar relacionada a um fundamentalismo religioso, como se o ser humano fosse uma criatura divina mais especial que as outras. Não gosto de fundamentalismo. Eu não acho que ciência e religião tenham que se negar uma à outra. As duas são manifestações culturais importantes. Einstein, por exemplo, era religioso. E nem tudo da ciência me convence. Tanto a teoria do Big Bang quanto o Gênesis da Bíblia, pra mim, são contos da carochinha. Mas obviamente muitas ideias da ciência já estão mais do que comprovadas, como o simples fato de a Terra ser redonda e não ser o centro do universo. Desde Copérnico, perdemos esse centro. Galileu e Kepler só confirmaram. Depois, com Darwin, nós, humanos, deixamos de ser o centro da criação divina. Evoluímos e nos reproduzimos como animais, nos amamentamos como os animais.
ALICE: E com Freud, descobrimos que não somos sequer o centro de nós mesmos. As três feridas históricas no narcisismo da humanidade.
FABIANO: Exatamente!
PENSAMENTOS DE FABIANO: – confirmei. Freud seria a minha próxima menção. É paradoxal, porque ele próprio foi um tanto narcisista ao se colocar como responsável pela terceira grande ruptura na história do conhecimento. Outros antes dele já haviam falado em inconsciente, inclusive Schopenhauer. Para o filósofo, nossa consciência seria equivalente à crosta terrestre, à superfície que nos é perceptível. O interior da Terra, em grande parte desconhecido, equivaleria ao inconsciente. Como se a consciência fosse apenas a ponta de um iceberg e todo o resto da grande geleira submersa fosse o inconsciente. O que Freud fez, além de ampliar a noção de inconsciente, que não seria apenas uma oposição ao que é consciente, e sim um sistema psíquico próprio, com suas regras próprias, foi criar técnicas para acessar esse universo desconhecido do submundo de Schopenhauer.
ALICE: Essa questão não é banal. Uma coisa é respeitar um pensamento diferente do seu. Outra é conviver e ter relacionamento mais próximo e íntimo com alguém que tem verdades inabaláveis muito diferentes das suas. É uma coisa delicada. Por isso, é comum as pessoas se relacionarem com alguém do mesmo grupo, judeu com judeu, protestante com protestante, muçulmano com muçulmano. E essa tendência de se relacionar com alguém do mesmo grupo também vale pras profissões. Artista com artista, profissional de saúde com profissional de saúde, bancário com bancário, advogado com advogado. Além de já haver uma maior possibilidade de convívio nas relações de trabalho, é mais fácil para uma pessoa entender a vida da outra do mesmo grupo, a realidade delas é bem próxima. O que não quer dizer que não seja possível se relacionar com alguém de um grupo diferente do seu. É mais difícil, dá trabalho. Mas você não parece estar disposto a ter esse trabalho, pelo menos, nesse caso. FABIANO: O máximo que eu consigo é ser… amigo de uma pessoa assim.
ALICE: Tudo bem. É uma escolha sua. E as nossas escolhas têm suas consequências. Depois desse dia do cinema, você desistiu de tentar conhecer alguém através de aplicativo? FABIANO: Quase. Eu fiquei um tempão sem usar, mas resolvi tentar de novo depois que voltei do exterior. Saí com outras duas pessoas. A primeira tinha um nome bem diferente. Abadi. Na troca inicial de mensagens, comecei perguntando a origem do nome. Era árabe. Daí começamos a falar sobre comida árabe. Combinamos de nos encontrar numa sorveteria. Descobri que o lugar onde ela trabalha fica perto de onde a minha banda ensaiava e no meio da conversa, descobri também que o nome dela não era exatamente aquele do seu perfil no aplicativo.
ABADI: Me disseram que não seria bom expor o nome verdadeiro. Mas acabei não seguindo o conselho à risca porque Abadi é o meu sobrenome.
O papo foi legal, descontraído. Ela é do tipo de pessoa que, de vez em quando, encosta a mão no braço da outra pessoa enquanto fala. Eu gosto disso. Do contato. (pausa)
ABADI: Já morei no México sabia…
Casou por lá, mas não deu certo. Fico sem entender por que as pessoas não perguntam logo de cara se a gente já foi casado, se tem filhos.
ALICE: Você não colocou essa informação no seu perfil?
FABIANO: Dei uma pesquisada sobre o comportamento das pessoas nesses aplicativos e vi que essa informação sobre filhos pode ser deixada pra depois. Muita gente nem procura saber se a pessoa é legal quando vê que tem filhos. No caso das mulheres, muitas pensam que o cara ainda é casado e é só um safado procurando sexo fora do casamento.
ALICE: Mas você contou pra ela que tinha um filho, né?
FABIANO: Contei, e ela não achava isso um problema. Não sei se foi sincera. Eu resolvi falar de política pra ver até que ponto ela seria tolerante pra conversar com alguém que não pensa exatamente como ela.
ABADI: Entendo o seu ponto de vista, só não concordo.
Ela pareceu entender o meu ponto de vista, que não era muito distante do dela, só diferente e falou de uma irmã gêmea dela que tinha um posicionamento totalmente oposto ao dela. São coisas difíceis de entender, pessoas criadas no mesmo ambiente, pelos mesmos pais.
ALICE: Ninguém é igual a ninguém. Nem os irmãos gêmeos.
FABIANO: Eu sei. Mas é estranho. Eu disse que esperava que a gente pudesse se ver de novo. Ela me deu um abraço carinhoso, muito gostoso. Eu estava me sentindo leve, não exatamente apaixonado, mas desfrutando o momento. Mandei uma mensagem no dia seguinte tentando expressar isso. Ela chegou a fazer meditação antes de me responder e falou que tinha gostado muito da conversa, mas não sentiu um clique entre a gente; não acreditava que daria pra sermos amigos.
ABADI: Não tem aquele frio na barriga sabe?
PENSAMENTOS DE FABIANO: Um dos dois ia acabar se machucando. Eu respondi dizendo que achava um encontro muito pouco pra sentir esse tal clique, e que poderia ser amigo dela numa boa. Ela não respondeu, mas também não desfez o match no Tinder. Deixou o suspense no ar.
ALICE: E a outra pessoa, como foi?
FABIANO: Com a última, parecia que a gente já estava se entendendo desde o início. Ela comentou numa das fotos que eu postei no meu perfil tocando guitarra. Falou o quanto achava bom alguém tocar um instrumento. Daí eu me lembrei de “Tigresa” do Caetano, que termina falando justamente isso e mandei um áudio cantando e tocando “Tigresa”. Ela adorou!
ALICE: Vocês ficaram muito tempo trocando mensagens, antes de combinar um encontro?
FABIANO: Difícil afirmar, o tempo das pessoas é muito diferente. Eu tento não precipitar o encontro e ao mesmo tempo demonstrar interesse mantendo o diálogo, porque tem gente que simplesmente para de mandar e de responder as mensagens. Pode ser que quem desiste prefere combinar o encontro logo que dá match. Sei lá! É muito difícil entender as pessoas nesses aplicativos. Ela tinha comentado que trabalhava muito e tinha pouco tempo livre. Respeitando sua dedicação ao trabalho, perguntei o que ela estava pensando em fazer num feriado próximo. Daí ela mostrou que é workaholic mesmo e disse que ia trabalhar no feriado. Mas depois eu acho que ela acabou se arrependendo e me chamou pra tomar um café no final da tarde. Eu topei. Ela atrasou tanto que eu até podia ter ido embora, mas decidi ficar. A conversa tinha que valer muito a pena pra compensar. Quando ela enfim chegou, achei que era menos atraente e charmosa do que nas fotos, talvez influenciado pelo mau humor de ter tido que esperar tanto. Mas acho que eu não tava de mau humor.
ALICE: No mínimo, incomodado.
FABIANO: É, incomodado.
Ela me contou que –
FULANA DO TINDER: – Estou fazendo doutorado, mas não ponho isso no Tinder. As pessoas podem me achar arrogante. Metida.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Eu falei que já tava tarde pra tomar café, por causa do meu problema do sono e ia pedir outra coisa pra tomar.
FULANA DO TINDER: Fabiano, sei como é difícil, eu já tive problemas com sono também. Nossa, minha pesquisa atrasou demais por causa disso. Agora, semanas depois, continuo trabalhando inclusive nos feriados pra pôr tudo em dia. O problema de sono tinha a ver com a B12, é que sou vegetariana. Mas foi só começar a suplementar que passou! Mas fica de olho, não são só veganos e vegetarianos, qualquer pessoa pode ter deficiência dessa vitamina.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Quando ela enfim me deixou falar, eu perguntei se ela já teve relacionamentos duradouros, se já tinha sido casada, se tinha filhos.
FULANA DO TINDER: O quê?! Não. (Ri. Levemente agressiva) Ter filho é ter dor de cabeça… e problemas de sono. Aí não tem vitamina que melhore.
Pensamentos de Fabiano: Então quando eu disse que tinha um ela ficou muito sem graça!
FULANA DO TINDER: Ah… eu só acho que não sou esse tipo de pessoa.
FABIANO: Achei a conversa toda bem ruim, pra falar a verdade, bem diferente de nossa troca de mensagens.
ALICE: Você demonstrou isso pra ela?
FABIANO: Não. Eu não queria ser indelicado. Ela me mandou uma mensagem depois perguntando quando a gente ia se ver de novo e eu respondi que tinha percebido que não tava preparado para namorar de novo. Ela surtou e disse que só queria ser minha amiga, que ela não tinha me pedido em casamento, falou cobras e lagartos e o escambau! Pô, a maioria das pessoas não entra no aplicativo pra namorar? Quando eu fui dispensado, não surtei. Fui dispensado por uma que não quis ser minha amiga; a outra quis. Cada um é cada um, não precisa surtar!
ALICE: Você mesmo disse, Fabiano, cada um é cada um. Uns surtam, outros não. Você percebe que fez com ela o mesmo que aquela outra garota fez com você?
FABIANO: Percebo. A diferença é aquela outra acreditar no tal clique, que alguns chamam de amor à primeira vista. Com esses dois casos, aprendi que é mais fácil pra mim saber o que não quero; já pra saber o que quero… preciso de mais tempo.
Encerramento
Você acabou de escutar o terceiro episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC (Pró Reitoria de Extensão e Cultura) realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp.
Esse projeto consiste na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico.
Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre.
Fique com a gente no quarto episódio, acompanhando nosso protagonista em busca de outras formas de solucionar seu problema de sono num episódio marcado por uma certa dose de… irritação e alguma outra de… fundamentalismo (que ele mesmo não suporta, diga-se de passagem).
Até logo!
- Ficha técnica:
Adaptação de roteiro, Direção e Produção:
- Antero Vilela e Helena Chiste
Atrizes / Atores e participações especiais, (por ordem de aparição):
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- Helena Chiste, como Alice
- Antero Vilela, como Fabiano
- Letícia Naciben, como Alice do Tinder
- Anna Vilela, como Flautista da orquestra
- Sofia Inatti, como Abadi
- Thaís Santos, como Fulana do Tinder
Trilha sonora original e música:
- Antero Vilela
Edição, mixagem e finalização de áudio:
- Vitor Muricy
Apoio:
- LABJOR, Podcast Oxigênio do LABJOR e Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp