Meu divã interior (episódio 1)
mar 31, 2023

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Este é o primeiro episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp, ingressantes do ano de 2020. O projeto é uma adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado em formato de áudio. É também um projeto de extensão da PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura), da Unicamp.

Neste episódio, conhecemos Fabiano, alguém em constante procura de um amor que ainda não encontrou e que segue atravessado pela angústia de uma persistente insônia, em um relato que oscila entre a espontaneidade de uma conversa de botequim e uma pretensiosa reflexão que ele supõe ir além de suas próprias dores – as quais são reveladas em parte para a sua psicoterapeuta Alice, e em parte partilhadas com os ouvintes deste romance radiofônico. 

Introdução – PRÓLOGO 

(Ouve-se Vinheta e logo após música de introdução ao piano acompanhando as falas de Alice, aqui exercendo função de narradora onisciente):

Fabiano é uma pessoa comum, assim como eu e você. E se o chamo de Fabiano é porque assim ele se autodenomina. Deixemos então do modo como ele escolheu. Da mesma forma que o poeta fingidor de Pessoa, Fabiano finge suas dores, que podemos supor de fato sentidas, e as apresenta em um relato sem dúvida falseado aqui e acolá e ao mesmo tempo repleto de verdades desnudas, românticas, talvez, com um toque de classicismo.

Os relatos de Fabiano, paradoxalmente, nos revelam pensamentos que ele nunca abriu para ninguém, o que pode nos levar à interpretação de que ele já estava mais para lá do que para cá e resolveu abrir sua caixa de Pandora. Ou não. Em narrativa, tudo (ou quase tudo) é fingimento sincero e verdade floreada. Esse relato de Fabiano oscila entre a espontaneidade de uma conversa de botequim e uma pretensiosa reflexão que ele supõe ir além de suas próprias dores. Se é bem sucedido nisso, deixo para que o digam os cinco ou dez ouvintes desse relato que podemos estimar.

Fabiano: Você acha que pode me ajudar, depois de tudo que eu já tentei? 

Alice: O que você acha, Fabiano? 

[Pensamentos de Fabiano]: Imagino que ela queira saber se eu realmente quero ser ajudado. Mas não vou tentar decifrar isso em seu olhar firme e sereno. Lembro do dia em que Alice fez como a Sharon Stone naquela cena de Instinto Selvagem em que a personagem dela está sendo interrogada como suspeita do assassinato de um amante: a cruzada de pernas mais famosa da história do cinema. A diferença é que essa personagem estava sem calcinha e Alice estava usando uma branca com bolinhas pretas. Pode ser que tenha sido um ato involuntário ou que tenha sido premeditado. Lembrei que ela é junguiana.

Alice: Fabiano, você presta atenção à sua volta?

Fabiano: Sim, até demais.

[Pensamentos de Fabiano]: foi o que respondi. Não sei se ela queria confirmar se eu prestava mesmo. Mas eu não vou falar nada disso a ela. Não tenho coragem. São apenas pensamentos que passam como relâmpago por minha cabeça. 

Fabiano: Não sei. Não sei nem mesmo se o meu problema é psicológico. Se fosse, talvez ter feito yoga e meditação (acompanhamento instrumental e sino tibetano com áurea astral) pudesse ter ajudado. Nem mesmo a acupuntura ajudou. 

Alice: Você parece estar mais preocupado agora com o problema do sono do que com o fato de não querer ficar sozinho. 

Fabiano: É. Não é que eu tenha desistido ou me conformado. Mas acho que preciso resolver primeiro uma coisa pra depois tentar resolver a outra. Preciso ficar bem primeiro. E pra ficar bem, tenho que dormir bem. (som perturbador constante) É básico. Eu nem tenho mais vida noturna. Saí da banda porque tanto os ensaios quanto as apresentações eram à noite. Recuso convites pra shows ou qualquer outro programa que seja à noite. Vou pra cama super cedo, porque sei que vou acordar várias vezes durante a noite. Aumento as horas na cama pra tentar garantir um mínimo de sono reparador, pra não ficar tão cansado. (despertador toca).

[Pensamentos de Fabiano]: Ao colocar os dois problemas lado a lado, é inevitável lembrar de quando eu disse que sabia que não podia fazer isso, mas se pudesse, queria pedir a ela para me deitar em seu colo e fazer cafuné em mim. 

Alice: A nossa relação aqui não é essa

[Pensamentos de Fabiano]: Eu sabia que não. E falei que não sabia se uma coisa tava relacionada com a outra, mas achava que o meu problema do sono ia se resolver quando eu encontrasse de novo alguém que quisesse ficar comigo, me oferecesse colo e me fizesse cafuné. 

Alice: “Eu também acho”, ela disse.

É só isso mesmo? Não tem mais nada? 

Fabiano: Eu tenho me lembrado de algumas coisas da minha infância e adolescência que têm a ver com a minha solidão. Quando eu era criança, a minha família frequentava um clube. Eu pegava uma bola de basquete e ia pra quadra jogar sozinho. (Som de bola de basquete quicando).

Alice: Você nunca jogou com outras pessoas?

[Pensamentos de Fabiano]: Pergunta esperta. Se ela tivesse questionado se eu nunca “jogava” com outras pessoas, estaria se referindo a esse período específico que eu mencionei. E a resposta seria “não”. 

Fabiano: Sim, joguei. Quando minha família se mudou de cidade, eu entrei numa escolinha de basquete. Um ônibus velho, de um verde escuro como os veículos do exército, que a gente chamava de “Abacatão”, levava a gente pros treinos e também quando a gente ia jogar em outros clubes como visitantes. A molecada chacoalhava o ônibus cantando uma paródia de uma marchinha de carnaval que me assustava, eu não conseguia achar aquilo divertido.

Alice: Por quê? O que te incomodava?

[Pensamentos de Fabiano]: Não sei por que tenho tanto pudor, mas não vou contar a ela a letra da paródia: 

Jovens cantando: “Se essa porra não virar, olé, olê, olá, eu chego lá. Rema, rema, rema remador. Vou botar no cu do trocador. Se o trocador for vigarista, vou botar no cu do motorista” “Se o motorista for ligeiro, vou botar no cu do passageiro”. 

[Pensamentos de Fabiano]: Pobre coitado do motorista que tinha que conduzir aquele bando de delinquentes ouvindo isso! Eu entendo o uso de palavrões e xingamentos quando as pessoas “estão putas ou com raiva”. Mas como diversão, não consigo entender. Já vi uma pessoa considerada culta, ligada à ciência e à arte, postar numa rede social o termo “cu” de forma totalmente gratuita, não estava manifestando sua raiva em relação a nada, pelo menos não de maneira explícita.

Fabiano: Eu achava agressivo. Não entendia como eles podiam achar graça cantando uma coisa tão agressiva.

[Pensamentos de Fabiano]: Foi só o que consegui dizer.

Alice: E aí você acabava se sentindo isolado no meio do grupo?

Fabiano: Nessas brincadeiras bobas, sim.

[Pensamentos de Fabiano]: Novos relâmpagos de pensamento passam por minha cabeça. A minha participação em algumas brincadeiras bobas mais sérias do que essa foram traumatizantes para mim. Em uma delas, eu tava em um grupo de amigos e começamos a atirar pedras uns nos outros. Uma coisa totalmente estúpida! Não era uma briga. Era só uma brincadeira idiota de um bando de inconsequentes. Sem perceber, escolhi uma pedra com extremidades pontudas e lancei, descuidadamente, em uma direção arriscada demais para aquele tipo de brincadeira. Quase ceguei um amigo. Ele faltou alguns dias à aula, mas felizmente ficou bem. 

Nenhum desses dois amigos se chateou comigo, devem ter assumido sua parcela de culpa pela participação em brincadeiras tão estúpidas. Não chego a me atormentar, como o protagonista de Crime e Castigo, porque nenhum desses episódios culminou em assassinato. Só sei que eles não vão se apagar da minha memória.

Alice: O que mais você lembra desse período? 

Pensamentos de Fabiano: Trazendo-me de volta ao presente, para falar de outras coisas do passado.

Fabiano: O basquete, pra mim, era lindo! Uma arte! O balé dos esportes! O tênis também tem seus momentos de balé. E o futebol tem bailarinos como o Garrincha. Tem até um filme que mescla cenas dele e do Fred Astaire. Mas os giros e os saltos no basquete me lembravam muito o balé. Hoje em dia,  (vozerio de jogo de basquete + torcida + bola batendo no chão) quando tô andando na rua, no caminho de casa para o supermercado, às vezes dá vontade de dar um salto simulando um arremesso com uma bola imaginária nas mãos. Obviamente não faço isso. Pareceria um doido. Por isso, também não estou contando a Alice. Não quero que ela pense que tenho manias.

Eu sonhava em um dia participar dos jogos olímpicos não para brilhar como atleta, mas para conviver com atletas de todo o mundo em uma vila olímpica. E pra paquerar as jogadoras de vôlei, que pra mim eram as mais bonitas. Com o time que a gente formou naquela escolinha, disputamos um campeonato. A gente ficou em último lugar. Mas foi uma experiência legal.  

Alice: Você já pensou em fazer balé?

Fabiano: Não. Eu gostava de ver só. Cheguei a acompanhar as aulas de uma prima. Mas eu imaginava que o esforço físico era muito grande. E do jeito que eu sou perfeccionista, acho que seria muito desgastante pra mim tentar sempre alcançar a perfeição. No basquete não, o movimento de parábola (barulho da bola voando + “chuá”) do voo da bola que sobe e cai certeira, num “chuá”, direto na rede, sem tocar no aro, é tão bonito! 

Alice: Você fez amigos no basquete?

Fabiano: Acho que sim. Mas não devo ter tido nenhum grande amigo, que tenha sido marcante, porque não me lembro de ninguém especificamente.

Alice: Você se sente frustrado de não ter continuado no basquete?

Fabiano: Não. Eu acabei não ganhando muita altura. Do meu tamanho, o cara só consegue ser o armador do time. E pra ser armador, tem que ser craque. Eu não era nenhum craque. Jogava mais ou menos.

Alice: E a adolescência? Você disse que também tem se lembrado de coisas desse tempo.

Fabiano: Quando eu era adolescente, fazia uma coisa até pior do que jogar basquete sozinho. Era patético! Sei que é comum adolescente se isolar no seu próprio quarto, é uma fase de muitos conflitos internos… Mas eu não me isolava só pra tocar violão pra mim mesmo. Isso até que é uma coisa legal de se fazer. Eu jogava jogos de tabuleiro sozinho! Tipo Banco Imobiliário! Simulando ser diferentes jogadores! Não é patético?

Alice: Você tinha um motivo pra fazer isso.

[Pensamentos de Fabiano]: Em uma das nossas primeiras sessões de análise, eu disse a Alice que não me identificava com a forma com que as pessoas se relacionavam hoje em dia pelas redes sociais. Lembro de ter dito que eu me sentia um ET no ambiente digital e que as relações ali, para mim, não eram verdadeiras. (ápice do crescente) Por isso, eu usava pouco as redes sociais, o que me tornava anti-social. (fim do crescente) O que eu não disse a ela é que me sentir um ET não era uma novidade em minha vida. Quando eu era criança ou já um pré-adolescente, falei para minha mãe que eu não era o filho dela. Que ele tinha sido abduzido por ETs e eles tinham me colocado no lugar dele. 

Não creio que fosse algo equivalente às personalidades n01 e n02 que Jung diz ter vivido na adolescência, uma social e cumpridora das obrigações cotidianas e a outra voltada para devaneios secretos em momentos de solidão. Imagino que todos nós devemos ter algo parecido com essas duas personalidades. Jung também associava a sua personalidade n01 ao mundo do pai e a n02 ao mundo da mãe. Não sei se é possível generalizar, mas sei que o meu lado sonhador vem de minha mãe e que o meu lado prático e responsável vem do meu pai. Isso é muito claro para mim. Embora tenha vindo da minha mãe uma frase que me marcou profundamente e mudou para sempre o meu senso de responsabilidade. 

Mãe de Fabiano: Meu filho, eu não vou te obrigar a gostar da escola nova, não vou te obrigar a ir à aula, não vou te obrigar a estudar. Mas você precisa saber a importância disso, escolher uma profissão, se formar e depois trabalhar. Você não vai poder contar com a gente pra sempre. Um dia, eu e o seu pai não vamos mais estar aqui. 

[Pensamento de Fabiano]: Era como se a personalidade n02, a mãe festeira, que tocava violão e cantava boleros, estivesse fazendo momentaneamente o papel da personalidade n01. O fato de eu dizer para minha mãe que era alguém trazido por ETs para substituir seu filho era algo que parecia ir além do desajuste social aparentemente comum na adolescência.

Cheguei a acreditar que eu era o tal índio que desceu “de uma estrela colorida e brilhante”, que veio “numa velocidade estonteante” e pousou “no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante”. Talvez, mais do que acreditar, eu tivesse uma vontade, um desejo de ter sido aquele índio. Por uma razão: Eu sentia que quase dois milênios haviam se passado e a humanidade parecia não ter entendido ainda o que Jesus havia dito. Nem os cristãos, nem ninguém. Parecia haver a necessidade de um novo messias que surpreenderia a todos por “poder ter sempre estado oculto quando terá sido óbvio”. 

E como eu era um jovem bastante pretensioso, imaginava que essa podia, talvez, ser a minha missão, ser esse tal messias. Muitos anos depois, li nas memórias de Jung, que

Fabiano e Alice: “a possibilidade e a esperança de uma reaparição de Cristo já é discutida em muitos lugares” e, segundo ele, “essa espera surge hoje sob uma forma que não é igual a do passado … Trata-se do fenômeno universal dos discos voadores”. 

[Pensamento de Fabiano]: demorei a reagir ao comentário de Alice sobre meus jogos solitários. Acho que ela deixou uma pergunta subentendida, mas não esperou eu voltar dos meus devaneios relâmpagos.

Alice: Eu sei que você gosta de uma explicação racional pra tudo. O seu problema do sono pode ter raízes profundas, que não são fáceis de acessar. Você já tentou análise com diferentes pessoas. O acesso às origens depende mais de você do que do analista. É evidente que o problema é sério, dormir bem é tão fundamental quanto se alimentar ou beber água. Mas a manifestação desse problema, mesmo que tenha causas remotas, é relativamente recente. Há outro tipo de incômodo que tem acompanhado você ao longo de toda a sua vida. Você se sente diferente. Num certo sentido, diferente, todo mundo é. Pra você, a sensação da diferença tem um efeito forte. E com isso, você se sente só. E isso te incomoda. Acho que a gente pode tentar trabalhar um pouco em cima disso. Pensa nisso nos próximos dias e a gente pode retomar na semana que vem a partir daí. 

Antero Vilela: Você acabou de escutar o primeiro episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC (Pró Reitoria de Extensão e Cultura) realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Esse projeto consistia na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico. 

Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre. 

Fique com a gente e acompanhe o Fabiano numa viagem para a praia e como ele conheceu a Márcia. 

Até logo!

 

Ficha técnica:

Adaptação de roteiro, Direção e Produção:

  • Antero Vilela e Helena Chiste 

Atrizes / Atores e participações especiais, (por ordem de aparição):

    • Helena Chiste, como Alice
    • Antero Vilela, como Fabiano 
  • Sara Morais, como Mãe do Fabiano
  • Anna Vilela, Auris Brisola, Fabíola Morais, Heitor Brisola, Sara Morais e Tales Santeiro, como Molecada do ônibus 

Trilha sonora original, edição e mixagem de áudio: 

  • Antero Vilela 

Arte da capa: 

  • Caos Haru (@caos_haru)

Apoio:

  • LABJOR, Podcast Oxigênio e Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp.

 

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