# 181 – Série Cidade de Ferro – ep. 3: Entre a vila e a mina
nov 12, 2024

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Este é o terceiro episódio da série Cidade de Ferro, uma série sobre os impactos sofridos pela cidade mineira Itabira, conhecida por ser a cidade natal de Carlos Drummond de Andrade que usou de sua poesia e suas crônicas políticas para denunciar a destruição que a antiga Companhia Vale do Rio Doce – hoje, Vale, provocou na cidade, no Morro do Cauê, principalmente, que se tornou um buraco gigante. Em conversa com Lucas Nasser, pesquisador e advogado itabirano, autor do livro “Entre a Mina e a Vila: violações de direitos em Itabira”, Yama Chiodi, jornalista do Geict, colaborador do O2, mostra que Itabira não é só mineração, é uma cidade que tem memória, que tem povo, que tem multiplicidade e um tecido social muito heterogêneo, com várias experiências e modos de vida.

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Fernanda Capuvilla: A cidade que deu ao país mais de 6 bilhões de cruzeiros, saídos de seu subsolo, e que sustenta, sozinha, 70% da renda de uma grande ferrovia interestadual, continua sendo, paradoxalmente uma das mais desaparelhadas, mais melancólicas e mais esquecidas cidades brasileiras. Esta é a mancha escura, no quadro da indústria da mineração. E seria bom que deputados e senadores mineiros, sem distinção partidária, não somente secundassem aquele parlamentar, mas assumissem a dianteira de uma campanha que, afinal, se resume nisso: impedir que a exportação de hematita – o filé mignon da frase do cel. Juraci – deixe a Itabira, ou a Minas Gerais, apenas os ossos descarnados.
Correio da Manhã, 12 de junho de 1955.

Yama Chiodi: O trecho que você acabou de ouvir não vem do Drummond poeta, mas do Drummond cronista político, desencantando com o mundo pós-guerra e desolado do que foi feito da sua cidade natal. O trecho da crônica, como outros que você escutará nesse episódio, foram publicados no diário carioca Correio da Manhã, na década de 50. E a escolha desse período não é sem propósito. Foi na década de 50 que a então Companhia Vale do Rio Doce construiu sua primeira vila operária. Após sustentar o ferro necessário para a segunda guerra mundial, a Companhia vivia agora um segundo momento de sua produção. A hematita era arrancada da terra não mais apenas nos braços dos leões da Vale, mas com uso de explosões.

[som de explosão 1]

Não por acaso, a primeira vila operária recebia o apelido pejorativo de Explosivo. Longe do centro de Itabira e perto da mina do Cauê, a vila onde viviam os trabalhadores de mais baixa hierarquia da estatal ganhou nome jocoso que caracterizava uma das precariedades de viver tão perto das operações minerárias. O que havia entre a mina e a vila? A primeira vila operária foi também a primeira a ser removida quando o progresso que nunca chega passou com seu trator insaciável.

[ som de explosão 2]

Yama: Eu sou o Yama Chiodi, jornalista do GEICT, e neste terceiro episódio da série cidade de ferro, me encontro uma vez mais com o amigo itabirano Lucas Nasser, autor do livro “Entre a mina e vila: violações de direito em Itabira”. O episódio de hoje tem o mesmo nome do livro, que se encontra disponível pra download gratuito no link da descrição. Se você ainda não ouviu os dois primeiros episódios dessa série, corre lá antes pra ouvir.

[ Vinheta Cidade de Ferro ]

Yama: No episódio de hoje, a gente deixa a poesia de lado por um instante ao olhar pra geografia de Minas Gerais. Em uma das incríveis passagens do livro de José Miguel Wisnik sobre Drummond e a mineração, o autor diz que, abre aspas, “Os pontos culminantes da literatura mineira estão entranhados na geografia física, e em Minas Gerais a geografia física, entranhada na experiência individual e coletiva, é geografia humana”. E é isso que a gente busca aqui hoje. A geografia humana no coração da montanha, às margens da mina do Cauê. Das muitas remoções que aconteceram e acontecem até hoje, uma vila operária ganha protagonismo. Distante do centro de Itabira, mas perto da mina, a Vila Explosivo foi pioneira e o lar da família materna do Lucas.

Lucas Nasser: O Explosivo, além dela ser uma primeira vila operária da Vale, muito emblemática, porque ela cedeu espaço para a mina do Cauê, inclusive do Pico do Cauê, Famigerado, etc., que está na poesia do Drummond, que não existe mais. Tem uma relação familiar também. Meu avô foi um dos moradores da vila do Explosivo, do Pé de Pombo, minha mãe cresceu no Explosivo, meus tios, então sempre escutei histórias do Explosivo, do Pé de Pombo.

Yama: Sem cerimônia, a vila criada nos anos 50 deixou de existir nos anos 70. A Companhia, ainda estatal, fortalecida em seu propósito desenvolvimentista da ditadura militar, iria começar um dos projetos mais destrutivos da história ambiental do Brasil: o projeto cauê. O mesmo que mudou a paisagem da cidade em definitivo, trocando um pico por um buraco de mais de 200 metros de profundidade. Como lembra José Miguel Wisnik, a maior das ironias que o Cauê dê nome à operação que causou seu extermínio. Do ventre da montanha foi tirado mais do que ferro. Entre outros muitos tecidos, mais e menos humanos, sucumbiu a Vila Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida como Vila Explosivo. Aos moradores que permaneceram quando tudo já era mais precário do que nunca, somente um aviso – uma data final para deixar tudo para trás. Casas, vivências, histórias e tudo que foi construído ao longo de mais de duas décadas. Não houve qualquer indenização, mas a empresa pediu que seus trabalhadores, agora ex-moradores da Vila, buscassem novas casas na cidade, mais distantes das minas de hematita infinita. Mas como operários de baixos salários e trabalho precarizados comprariam casas? Pagando por elas por toda vida, por financiamento viabilizado pela Vale, descontado diretamente dos salários. A quem já tinha casa, vida e comunidade foi retirado tudo. Em troca, receberam uma dívida que muitas vezes sequer acabou antes que os trabalhadores morressem. Longe dali, no Rio de Janeiro, duas crias Itabiranas pareciam fugir de seu destino mineral em trocas públicas que duraram décadas. O poeta desencantado com sua cidade engolida pela mineração, e a sede da Vale do Rio Doce – que retirava tudo de Itabira e não devolvia nada. Se recusava até mesmo a estar presente na cidade onde nasceu. Se na poesia e nas páginas dos jornais Drummond não deixava descansar o descaso e a destruição de sua cidade natal, a Companhia não deixava por menos sua mais famosa persona non grata. Em anúncio publicado em 20 de novembro de 1970 no jornal O Globo, que divulgava a escala faraônica do Projeto Cauê, não restava dúvidas sobre quem era o inimigo número um da estatal. Dizia o anúncio em letras garrafais: Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro.

[ Transição – trem 2]

Fernanda: Nem haveria propriamente triunfo: ninguém quis derrotar a Cia. Vale do Rio Doce. O que se passou foi um desses episódios da crônica familiar, em que um dos cônjuges, por muito amar o outro, reclama contra sua falta de assiduidade, e vai buscá-lo no bar ou à mesa de buraco, onde ele permanece indefinidamente, esquecido de que seu lugar é na poltrona caseira, junto ao primeiro cônjuge e aos filhos. A Vale do Rio Doce levou a ausência a um ponto intolerável; gostou loucamente do Rio de Janeiro, e quase não se lembrava mais de que era uma senhora casada com o povo de Itabira.
Correio da Manhã, domingo, 17 de julho de 1955.

Yama: Em seguida, converso com o Lucas sobre direito à cidade e suas motivações como pesquisador e como militante para pesquisar Itabira. Depois, recupero trechos de nossa conversa sobre a Vila Explosivo. E por fim, refletimos um pouco sobre o momento atual e como a experiência de Itabira com as remoções e com o terrorismo de barragem tem a ensinar pra gente sobre as práticas de mineração no Brasil.

[ Transição – trem 1]

Yama: Lucas, vamos começar contando pros nossos ouvintes como que você começou a trabalhar com violação de direitos. Advocacia popular não parece uma escolha óbvia para recém-formados em direito, né?

Lucas: Acho que é uma escolha de vida, né? Eu falo não é do direito, de advocacia em específico, mas é uma escolha de vida… a luta política, então a advocacia popular veio nesse lugar.

Yama: Aham. E porque você fez essa escolha?

Lucas: Após formado, eu tive um contato com um do trabalho mais rígido do escritório, eu vi que não era aquilo que eu queria, fui para a advocacia popular atuando com violações de direitos humanos, né? Então atuei com desde violações de direitos humanos no sentido distrito da coisa, né? No penal, prisional e sobretudo aí na questão da terra, que era algo que sempre me despertou. Então, assentamentos rurais, ocupações, fazendo a defesa que nem sempre a Defensoria dá conta, e além da Defensoria não dar conta de ter também uma interlocução e sobretudo uma construção com as lutas populares, assim.

Yama: O Lucas além de advogado e pesquisador no campo de direito à cidade, é militante do PSOL de Belo Horizonte. A pesquisa de mestrado dele, que ganhou o prêmio de dissertações da UFMG, foi o que deu origem ao livro Entre a Vila e a Mina, sobre o qual a gente tem falado. Continuando a conversa, eu perguntei pra ele sobre como ele deu prosseguimento à pesquisa no doutorado e porque decidiu continuar pesquisando Itabira.

Yama: Você continuou com a pesquisa em Itabira no doutorado…

Lucas: É uma questão socioambiental que é muito gritante, no caso de Itabira, que a gente começa a se questionar e que nos afeta no sentido do afeto. Então, no doutorado da continuidade dessa pesquisa de violações de direitos, no caso de Itabira e do quadrilátero que alguns movimentos chamam de quadrilátero aquífero, porque mineração só é possível com água e é onde tem as maiores reservas de água do estado de Minas Gerais. Então, é isso, pesquisador hoje dessa linha de território, direito à cidade, territórios, da Faculdade de Direito da UFMG.

Yama: Eu queria que você falasse um pouco sobre direito à cidade. Acho que muita gente não sabe o que é. Das muitas definições possíveis né?

Lucas: Mas tem uma definição, Yama, do David Harvey, que acho que é muito interessante, que coloca assim, o direito à cidade é mais do que uma liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos. É um direito de mudar nós mesmos, mudando a cidade. E aí ele leva para uma esfera de um direito coletivo, não é individualizado, não é só ter acesso à água, à esgoto, a participar do processo deliberativo. Ele coloca no sentido que se o homem está condenado a viver na cidade porque ele criou, modificando essa cidade, ele refaz a si mesmo. Então, a gente coloca também a liberdade de fazer e refazer a nossa cidade como se fosse algo de refazer a nós mesmos. Então, é um direito humano muito precioso que ao mesmo tempo é negligenciado.

Yama: O David Harvey que o Lucas citou é um geógrafo inglês e um dos maiores intelectuais da geografia urbana do mundo. Ele é professor de antropologia e geografia na Universidade de Nova Iorque.

Pensando em direito à cidade nesses termos… um dos conflitos que envolvem Itabira tem relação com a baixa autonomia das cidades em relação aos estados quando se trata de mineração e outros problemas socioambientais.

Lucas: Isso, exatamente.

Yama: Porque ocorrem esses problemas no âmbito dos licenciamentos, por exemplo?

Lucas: O licenciamento, tem uma autorização no âmbito municipal, mas o licenciamento é feito no âmbito estadual. Tem um sistema que chama CODEMA, que dá essas diretrizes, são diplomas nacionalizados, mas quem decide mesmo, quem opera ou deixa de operar, é o COPAM, que é o Conselho Estadual. Acaba que o município tem muito pouca autonomia de fazer esse contraponto. Acho que, por exemplo, o que a gente tem na Serra do Curral de Belo Horizonte. Acho que para quem não conhece, da mineração que foi autorizada na Serra do Corral, foi uma reunião do COPAM, que foi aprovada, uma reunião online, na madrugada, que foi aprovada… o município mesmo era contrário, tinha vários pareceres, um posicionamento até da administração pública municipal, contrário ao empreendimento, ele foi aprovado da mesma forma. Então, acho que isso demonstra, da fragilidade e da pouca autonomia que o município tem em relação à mineração.

Yama: Para além das particularidades legislativas que dificultam com que municípios a conseguir proteger as cidades de impactos ambientais, situações como a que Lucas descreveu que aconteceu em Belo Horizonte demonstram a importância da organização política para pleitear pautas ambientais junto ao poder público. Você já se perguntou quais os planos dos políticos que você votou para as barragens de rejeitos presentes e futuras? Será que algum deles recebeu financiamento de campanhas de mineradoras?

[ Transição – trem 2]

Fernanda: Casa para empregado nunca foi benefício coletivo; é, no máximo, individual, ditado pelo próprio interesse da empresa. Toda organização de vulto constroi essas moradias, como dá escola aos filhos de seus auxiliares. É despesa a incluir no custo operacional. (…)
Grande serviço à cidade, que do contrário talvez se visse compelida a fazê-lo. Esta a concepção que a Cia. tem do patronato e dos direitos sociais do trabalho. Quero apenas ver a Cia. cumprir seus deveres sociais, pois não é uma empresa particular de comércio, mas uma obra pública, inspirada em alta concepção política de eliminação dos índices subumanos de vida no interior; e é uma obra formada em magna parte com capital da União e alimentada pelas jazidas de minha terra. (Pausa)

Não adianta dizer que 70% da população de Itabira vive em função das atividades da Cia. Responderei que 100% da Cia., inclusive a Estrada de Ferro Vitória a Minas, vive em função de Itabira.
Correio da Manhã, 12 de junho de 1955.

[ Transição – trem 2]

Yama: Neste bloco recupero alguns trechos da conversa com o Lucas em torno da Vila Explosivo.

Vamos começar do começo. Me fala da formação da Vila, nos anos 50.

Lucas: A Vale foi construída com base do que chamam dos leões da Vale, era um trabalho muito braçal, muito degradante mesmo, e depois entrou esse processo de dinamitação, feito com as explosões, um processo muito arcaico, e a vila operária tinha que ficar perto da mina para facilitar, para ficar à disposição, e também alienado também de outras possibilidades. Então esse nome é por causa dessa proximidade, por causa desse processo que acontecia, da mineração de explosões.

Yama: Qual era o perfil dos moradores de lá? Quem foi morar na vila?

Lucas: Era uma vila operária de trabalhadores da Vale, de um período que a Vale não era tão mecanizada, então as pessoas que vêm são dos distritos e dos municípios ao redor, então tem um perfil de um povo que tem relação com a terra, de povos campesinos que vêm do interior. E aí é uma vila de casinhas, com quintal, com espaço comunitário, tem uma relação também, uma tentativa da relação da Vale, na época ainda estatal da companhia da Mãe Vale do Rio Doce, deu casa, a Mãe Vale deu casa para os trabalhadores, deu onde morar.

Yama: E o que motivou a pesquisar essa vila em específico? Remoções de bairros e vilas são episódios relativamente comuns na história da Vale. Até hoje.

Lucas: O Explosivo, além dela ser uma primeira vila operária da Vale, muito emblemática, porque ela cedeu espaço para a mina do Cauê, inclusive do Pico do Cauê, Famigerado, etc., que está na poesia do Drummond, que não existe mais. Tem uma relação familiar também. Meu avô foi um dos moradores da vila do Explosivo, do Pé de Pombo, minha mãe cresceu no Explosivo, meus tios, então sempre escutei histórias do Explosivo, do Pé de Pombo. Isso é muito curioso, porque ao mesmo tempo que tem um saudosismo, tem em partes uma vergonha de um passado pobre mesmo, com poucos acessos.

Yama: O nome explosivo começou como nome pejorativo e acabou ficando né? E revela um certo conflito social entre os moradores mais centrais de Itabira.

Lucas: O tormento de lidar com isso, das explosões, deu o nome da vila, o apelido da vila explosiva, que na verdade ela se chama Sagrado Coração de Jesus, então popularmente ficou conhecido como explosivo, que já era um nome pejorativo. Aí a cidade legal chamou os habitantes de pé de pombo, porque é uma cidade que se chama de Santa Maria de Itabira, e a cidade legal chamou os habitantes de pé de pombo porque é um pé vermelho, em alusão à terra. Enfim, então você não tem direito à memória a esse território, é um território hoje
pertencente à companhia, era companhia antes, a Vale S.A., pertence aos acionistas da Vale.

Yama: Você falou aí de pé de pombo. Conta pro pessoal que ainda não leu o livro o que era isso?

Lucas: É um lugar precário, então as pessoas para ir à escola, para ir aos bares, escutei muito isso no relato, da pessoa ter dois sapatos, levar um sapato na bolsa assim e chegar perto do local trocar, porque o pé de pombo é referência à terra, o pé de pombo é a terra, levar um sapato na bolsa assim e chegar perto do local trocar, porque o pé de pombo é referência à terra, a terra vermelha. Então é o paninho molhado para passar, para não ficar aparecendo a poeira ali, o trem vermelho e identificar a pessoa, fulano é do pé de pombo, fulano na verdade é operário da Vale, filhos de operário da Vale, como se fosse algo a se envergonhar de morar de favor pela mãe doce num lugar mais afastado.

Yama: E como que sua família chegou lá?

Lucas: Meu avô, ele vem de uma comunidade que chama Morro de Sant’Antônio, pertence à Santa Maria de Itabira, que é ali no entorno, hoje é uma comunidade quilombola, e minha avó é da comunidade que chama Os Gatos, eu nem sei o nome oficial dos gatos, mas era um distrito, são duas vilas campesinas. Meu avô era “amansador de burro”, quando eles casaram precisava de emprego formal, surgiu o boato na região que tinha oportunidade de emprego formal, então foi. Estou dizendo isso para mostrar que tem um perfil de pessoas campesinas que foram morar ali na vila, era uma vila operária mesmo, de trabalhadores da época companhia Vale do Rio Doce. Então eles eram trabalhadores mesmo da Vale, de baixa hierarquia, digamos assim, que tinha a vila operária, a vila engenheira também, na cidade, tem os locais que eram bem diferenciados e fragmentados.

Yama: Uma característica bastante particular do explosivo e que acabou dando a tônica de seu desmembramento é que as casas sempre pertenceram à Vale. Nunca foi oficialmente de seus moradores. Quando chegou a hora desocupar aquele território pra mina expandir, já na implementação do Projeto Cauê, não foi só o pico da montanha que se dissipou. Mas as vidas de muitas pessoas como as que moravam na vila Sagrado Coração de Jesus. Quando a gente pensa nisso, aquele verso do Drummond onde ele diz que “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê” ganha novos sentidos

O que você pode me dizer do processo de remoção das pessoas e da posterior destruição da vila? Pra onde foram os moradores do explosivo?

Lucas: Essa vila foi vila durante muitos anos, ela tem uma diáspora, cada um vai para um canto da cidade, e ainda esse trabalhador que é removido, ele fica endividado com a própria Vale. Na verdade a Vale lucra duas vezes, além de remover e expandir a mina, endivida o trabalhador com o programa de crédito dela para comprar a moradia dela. E é muito doido que tem relatos que assim, eu mudei, a Vale me ajudou a financiar e eu paguei a casa inteira, teve gente que morreu e aí tá quitado, porque como é o financiamento com banco, deve ter algum
tipo de seguro, mas ainda assim as pessoas diferenciam, quem faleceu e não teve que continuar pagando e aquele trabalhador que sobreviveu, que pagou a vida inteira esse financiamento que era descontado em folha. Então na verdade era a garantia que a Vale vai receber, o desconto na sua folha salarial, esse financiamento imobiliário e é isso.

Yama: A casa não era das pessoas, né? Então elas próprias foram convencidas de que não podiam pleitear nada indenizatório, mesmo vivendo na vila por quase duas décadas…

Lucas: Essa relação se deu pelo fato de ser uma vila operária mesmo, construída pela Vale, reforça esse caráter que é ela que define quem mora, quem deixa de morar, que está fazendo uma concessão, que não seria obrigado, enfim. As pessoas tinham um direito de uso, parece que não tinham a propriedade da vila, então meio que você fica com uma dívida de gratidão, a mãe doce te dá um lugar para morar, então você tem uma relação de favor, você acha que é algo que estão te fazendo, você ter uma moradia, então não tinha uma relação de
enfrentamento.

Yama: E como as pessoas ficaram sabendo que teriam que sair de lá?

Lucas: Falam que começou um boato que o pessoal teria que sair, não teve uma negociação, a pessoa tem que sair até tal dia, e aí vocês podem olhar um lugar para vocês morarem na cidade, que a Vale vai te ajudar a apagar esse lugar, então as pessoas saíram muito tranquilos, se não a Vale vai me ajudar a apagar um lugar que é meu, que esse lugar aqui era a Vale, então a relação da vila era como se a vila fosse da Vale mesmo.

Yama: Eu depois perguntei pro Lucas sobre a memória da vila. Se os moradores que ele entrevistou tinham saudades de lá ou se acharam melhor ir para as partes mais centrais de Itabira. Ele me disse que tinha uma dualidade – tem saudade mas tem graças a deus que saímos do pé da mina também

Lucas: É essa dualidade, ao mesmo tempo que é lembrado os perrengues, o reforço dos estigmas, como era difícil o acesso de determinadas coisas, é muito lembrado também a relação comunitária de vizinho, da relação que tinha com o vizinho, que se autoajudavam. De às vezes ter fulano convivendo aqui em casa porque fulano ia trabalhar fora, então de ter as festas também dentro da própria comunidade, de ter uma relação de amizade, de brincadeira entre as crianças, então você vê que também tem um sentimento de pertencimento de comunidade muito forte, e das manifestações que tinha no Explosivo, acho que nunca teve um… é sempre um… “Ah! Era foda ser pé de pombo, mas era gostoso demais”, as pessoas gostavam de morar ali, mas não gostavam quando contrastavam com a cidade.

[ Transição – trem 2]

Fernanda: Perdoem os possíveis leitores desta coluna se o cronista às vezes municipaliza demais e parece dirigir-se apenas aos homens e mulheres de sua paróquia. Mas êste caso do ferro de Itabira é muito menos paroquial do que se supõe a um exame rápido. É o caso típico de um aspecto da economia brasileira, ao longo de nossa história: a exploração sôfrega e inumana de riquezas minerais, para alimentar uma civilização de côrte e de litoral, com sacrifício completo da população do interior.

Sempre se chamou a indústria da mineração de “indústria ladra” porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto. Se em Ouro Preto o ciclo do ouro deixou algumas alguns monumentos que nos comovem e orgulham, a verdade é que a região em volta desenha um mapa de ruínas, e a própria Ouro Preto não tem dinheiro para cuidar de suas igrejas velhas. O que Minas perdeu em ouro chegaria para cobrir de Alhambras cidades que hoje portam a sua miséria, uma prostração intermediária entre sono, indiferença e morte.
Correio da Manhã, quinta-feira, 16 de maio de 1957.

Yama: No dia 17 de novembro de 2023, saiu uma notícia no jornal mineiro O tempo. É uma notícia, mas parece um filme de terror. O jornal anuncia que a Vale fará treinamentos com itabiranos para o caso do rompimento de alguma das cinco barragens que estão bastante próximas da cidade. Somente uma delas, a Sistema Pontal, tem um volume de quase 4 vezes ao que havia na barragem de Fundão, que se rompeu em Mariana. Ela é considerada de Alto
Risco. O treinamento se dará simulando uma situação que pode acontecer a qualquer momento. Quando as sirenes tocarem, os moradores devem deixar tudo para trás e seguir as placas que indicam a melhor rota de fuga. Em outros termos: a remoção forçada pode vir para aumentar a área de exploração, como foi com o Explosivo, mas também se faz presente no constante medo de que a cidade possa ser tomada de lama a qualquer momento. Em cinismo característico, na comunicação da empresa, a Vale diz que “não há qualquer sinal de risco, mas que os treinamentos são para promover uma cultura de prevenção”.

[Explosão 2]

Yama: Apesar de ter muita atividade minerária ainda acontecendo em Itabira, tal como boa parte de Minas Gerais, um problema central são as barragens.

Lucas: Hoje tem uma coisa que a gente até chama de terrorismo empresarial de barragens, que é diante da eminência de rompimento, você dispara a sirene e manda as pessoas saírem de casa. A princípio seria temporariamente, mas tem vários relatos que nem sempre são temporariamente. O caso de uma cidade vizinha de Itabira, Barão de Cocais, é exemplo disso. Mas em Itabira tem duas comunidades que passam esse terrorismo com alguma frequência, que é o Boa Vista e a Pedreira. Tem situações parecidas que vivem esse conflito. Hoje a
configuração é diferente, não é a remoção explícita para a expansão da atividade, mas diante de um risco que nunca é publicizado, que tem pouca transparência na gravidade desse risco, você tem treinamentos com a população para ir para… O nome formal é ilhas de inundação, não ilhas de auto-salvamento, mas são ilhas de desamparo, de caminhos para a morte, digamos assim. Mas essa é a relação hoje de algumas comunidades em Itabira.

Yama: Como as barragens de rejeito impactam o direito à cidade?

Lucas: Eu acho que a cidade é o palco dos conflitos, Itabira é a síntese disso, você tem um conflito: não é a cidade que foi invadida pela mineração, a mineração invadiu a cidade, então por isso que tem barragens perto de regiões urbanas, perto de populações, perto de comunidades, então você tem os efeitos disso, e efeitos diversos, seja da poluição atmosférica, seja de tremor de terra, seja de rachadura de casas, e seja mesmo do modo de vida que é totalmente alterado pela atividade. Então você tem essa situação que conflita com o modo de
vida das pessoas mesmo. As barragens são parte de um episódio de todas as marcas que a mineração traz. A atividade em si é violenta, quando a gente fala de extrativismo é extrair com violência. É diferente a relação que uma comunidade extrativista tem em relação a seringueiros, a catadores, a intensidade do volume. Barragens são um episódio das violências e das marcas que essa atividade traz para a cidade e para a população.

Yama: O que você acha que a experiência de Itabira com a mineração pode ensinar pra gente pensando no futuro da relação das cidades com a mineração?

Lucas: Eu acho que Itabira tem um caráter emblemático, o primeiro ponto é isso, de ser o berço da Vale, de ser uma atividade mais antiga, e aí comparar com as situações que acontecem não só em Minas Gerais, como em regiões portuárias, como a questão do Pará, Itabira foi um laboratório de testes para outras regiões mineradoras. E, sobretudo, a mineradora é que invade a cidade. É uma cidade que já tinha uma vida pulsante, ao seu modo, claro, então eu acho que pode ser, para além do estudo de caso em si, de ser um contra-exemplo… Itabira não é só a mineração, não é só a Vale, acho que isso é uma marca que a cidade tem, mas mostra, Itabira é um exemplo de uma cidade que tem memória, que tem povo, que tem multiplicidade e um tecido social muito heterogêneo, com várias experiências e modos de vida.

[Vinheta Oxigênio]

Yama: Eu sei que eu falei que a gente daria uma pausa com as poesias. Mas já fazendo uma ponte para o próximo e último episódio dessa série, eu queria deixar vocês com mais uma reflexão poética do Drummond sobre a marcha sem ré do progresso.

[ Transição – trem 2]

Fernanda:

Infatigável
O progresso não recua.
Já transformou esta rua
em buraco.

E o progresso continua.
Vai abrir neste buraco
outra rua.

Afinal, da nova rua,
o progresso vai compor
outro buraco.

[pausa em silêncio]

Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem narrou os textos do Drummond foi a Fernanda Capuvilla e quem conversou comigo foi o Lucas Nasser.

Eu queria deixar um agradecimento ao site Vila de Utopia, que disponibilizou todas as crônicas do Drummond no Correio da Manhã e facilitou muito meu processo de pesquisa pra esse episódio.

A edição foi feita pela Elisa Valderano. O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.

A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.

Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.

Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.

Ambos os sons de trens utilizados nesse episódio foram feitos por Sandro Lima e são livres para uso.

Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.

Livro do Lucas Nasser: Entre a vila e a mina violações de direitos
Baixe gratuitamente em: https://experteditora.com.br/entre-a-vila-e-a-mina/

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