Meu divã interior (episódio 7)
jun 20, 2023

Compartilhar

Assine o Oxigênio

Neste sétimo episódio de Meu Divã Interior, Fabiano divaga sobre sonhos que teve e tem tido com Alice, além de conversar sobre antigos desejos que permearam por sua vida, entre lembranças com sua ex-namorada e a relação com seu irmão. Meu divã interior é um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp, ingressantes do ano de 2020. Trata-se de um projeto de extensão PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura). ___________________________________________________________________________

Roteiro

Personagens:

  • Fabiano
  • Alice
  • Ex namorada 
  • Irmão de Fabiano

Alice: Então, Fabiano, você conseguiu se lembrar de seus sonhos e anotar o que sonhou? 

Pensamentos de Fabiano: indagou Alice.

Fabiano: Sim

Pensamentos de Fabiano: Respondi, abrindo um caderno. 

Fabiano: Acho que alguns sonhos são estimulados por coisas que eu vi ou que aconteceram um pouco antes. Uma noite, sonhei com uma prima do meu pai. Nós estávamos, ao que parece, em um ponto de ônibus cheio de gente. Comentei que a diferença de idade entre ela e o meu irmão não era muito grande e que eu não tinha percebido isso quando era criança. Ela falou que eu era o bebê de todo mundo da família. Ela fez um sinal para um carro que passava. O motorista parou e entregou uma almofada pra ela. Geralmente, meus sonhos são curtos. Ou pelo menos o que eu lembro é pouca coisa.

Alice: Esse sonho foi estimulado por alguma coisa que aconteceu antes?

Fabiano: Sim. Essa prima do meu pai postou sua contagem regressiva pro aniversário que estava chegando. Por isso eu pensei nessa coisa da diferença de idade entre ela e o meu irmão. Quando a gente é adulto, alguns anos de diferença entre uma pessoa e outra parece muito pouco, mas do ponto de vista de uma criança, qualquer ano a mais é muito tempo.

Alice: Verdade. Os outros elementos do sonho, o lugar, a entrega da almofada, têm algum significado pra você?

Fabiano: Eu não identifico o lugar do sonho como um lugar conhecido. Essa prima nem é do tipo que anda de ônibus. O final, com a almofada, pra mim, é só maluquice de sonho, mesmo.

Alice: Você costuma sonhar com pessoas da sua família mesmo que não haja um estímulo anterior, como aconteceu nesse caso?

Fabiano: Sim 

Pensamentos de Fabiano: Respondi, consultando minhas anotações novamente. 

Fabiano: Outro dia, sonhei com outra prima minha. Eu estava fritando ovo. Vi que ela pegou a frigideira e falei pra ela tomar cuidado com o óleo quente. Respingou um pouco na blusa dela. Não me lembro muito bem desse sonho, mas acho que ela estava usando uma calça social, estilo masculino. Passei um papel toalha onde tinha caído óleo. Depois, acho que ela foi ao banheiro para se trocar.

Alice: Você achou pouco usual sua prima aparecer no sonho usando calça social masculina?

Fabiano: Como é um detalhe que cheguei a lembrar, devo ter achado. Pode ser que já tenha visto ela vestida assim, mas não é o estilo dela.

Alice: A curiosidade descuidada dela te diz alguma coisa?

Fabiano: Doideira de sonho, Alice.

Alice: E o seu gesto de limpar o óleo que respingou nela?

Fabiano: Você acha que é um desejo contido de tocar na minha prima?

Alice: Eu queria saber o que você acha, Fabiano.

Fabiano: Não me lembro de ter sentido um prazer especial em limpar a blusa dela com um papel toalha. E também não me lembro de ter deixado minha prima embaraçada. Pareceu uma coisa bem natural, espontânea.

Alice: E depois de acordar, pensando no sonho?

Fabiano: (ainda irritado) Não sei. Achei legal ter sonhado com ela. Eu gosto muito dessa prima.

Pensamentos de Fabiano: Talvez Alice tenha percebido que não conseguiria arrancar de mim muito mais sobre esse sonho. E indagou:

Alice: O que mais você anotou aí, Fabiano?

Fabiano: Algumas noites atrás, eu sonhei com a minha primeira namorada, que na época em que namorei, era a melhor amiga daquela que viria a ser a minha futura esposa e mãe do meu filho. Foi um primeiro namoro tardio. Não é que eu não tenha ficado com outras garotas antes, mas ela foi a primeira que ficou publicamente comigo na condição de namorada.

Alice: Sei. Sua necessidade de testemunhas, para que não te pareça uma ilusão, uma mentira.

Pensamentos de Fabiano: – comentou Alice – Incrível como ela, mesmo sem nenhum caderninho, conseguia se lembrar de cada detalhe do que já conversamos!

Fabiano: No sonho, acho que eu tava em uma reunião de escola do meu filho ou alguma coisa parecida. Essa ex-namorada, que eu não vejo e com quem não tenho contato há séculos, apareceu no meio da reunião. Parecia triste. Eu estendi um dos braços, ela apoiou a cabeça em meu ombro. Depois, levantou o rosto e disse:

Ex namorada: “Eu te amo!”.

Fabiano: Não lembro qual foi a minha resposta, mas no fim a beijei.

Alice: O que você sentiu depois desse sonho?

Fabiano: Nada. Achei bizarro sonhar com ela, assim, sem mais nem menos.

Alice: O que essa ex-namorada significa pra você?

Fabiano: Alice, sinceramente, eu juro que pensei muito pouco nela nesses anos todos. Já nem lembrava mais dela, pra falar a verdade. O significado que ela tem pra mim é só o fato simbólico de ter sido minha primeira namorada. Nada mais.

Alice: Percebe o que você acabou de dizer, Fabiano? Você questionava a importância da simbologia e acaba de falar em algo simbólico. Mas o que importa agora, pra pensar no seu sonho, não são os símbolos que nos rodeiam por todos os lados, como o sinal da cruz, que não tem para você o mesmo sentido que tem para a sua mãe e para os cristãos. No caso dos sonhos, Jung diz que o símbolo é a expressão daquilo que é pressentido e não está conscientemente claro. Ter sonhado com o seu consolo à tristeza da sua primeira namorada e com uma declaração de amor dela seguida de um beijo, depois de tanto tempo, não te diz nada?

Fabiano: Acho surreal sonhar com isso. Não tenho um desejo contido de que uma coisa desse tipo pudesse acontecer de verdade. Nunca tive nostalgia ou saudade do tempo de namoro com ela. Que foi muito curto, por sinal.

(Pausa)

Fabiano:  E também não tive vontade de retomar o contato pra saber se estava tudo bem com ela, como se o sonho tivesse sido um sinal. Se não estivesse, eu seria a última pessoa no mundo de quem ela esperaria um consolo. Ela nem deve se lembrar que eu existo.

Alice: Então o sonho não teve nenhum efeito posterior em você? Pensamentos de Fabiano: Gozado, o pior é que teve.

Fabiano: O efeito é que sonhei com ela de novo.

Pensamentos de Fabiano: comentei, olhando para o caderno.

Fabiano: Nesse outro sonho, uns dois ou três dias depois do primeiro, eu estava na sala dos professores de um cursinho pré-vestibular onde eu trabalhei. Alguém entrega a ela umas coisas que ela havia esquecido, junto com um bilhete. Eu a ajudo a desocupar uma caixa. 

“Eu sonhei com você”,

digo, baixinho, em seu ouvido. Fico pensando se ela não ia perguntar como tinha sido o sonho. Ela apenas sorri. Depois diz:

Ex namorada: “Vamos fazer assim. Em fevereiro, eu vou dar uma festa. Você vai e aí a gente fala sobre isso. A festa é pra isso mesmo.”

Fabiano: Pra isso o quê? Rever as coisas do passado? Saber se ainda ficou alguma coisa dentro de nós? Mas fevereiro está tão longe! Depois vejo pela janela uma amiga antiga passando na rua. – “Sorte sua aparecer agora! Eu já tava de saída!”, falei pra ela. E acordei.

Alice: Uma festa no mês de fevereiro te diz alguma coisa?

Fabiano: No caso dela, não faço ideia. Ela é de escorpião. Nada a ver com fevereiro.

Alice: Mesmo dizendo que não sente mais nada por ela e que, conscientemente, não teve vontade de retomar o contato para saber se ela está bem, no segundo sonho, ou seja, no seu inconsciente, você quis revelar a ela o seu sonho, num sussurro. E até ficou na expectativa de que ela te pedisse para você contar o sonho.

Fabiano: É verdade. Eu acho bizarro e surreal, mas ao mesmo tempo divertido sonhar com ela. Mas imagino mesmo que ela ia achar muito estranho qualquer tentativa de retomada de contato.

Alice: No primeiro sonho com essa ex-namorada, você oferece o ombro a ela. No segundo sonho, se mostra prestativo e a ajuda a guardar coisas que entregaram pra ela. Como você vê isso?

Fabiano: Eu não sei o que isso quer dizer, mas acho que porque não guardo rancor e posso ser uma pessoa prestativa. Só que com ela, acho difícil que eu fizesse alguma coisa parecida na vida real.

Alice: Por quê, Fabiano?

Fabiano: Porque a gente é praticamente estranho um pro outro, não se vê e não se fala há muito tempo. Mas você não achou esquisita a parte final do sonho, em que aparece uma amiga que não tinha nada a ver com o período daquele namoro?

Alice: Imagino que você ache esquisito. Eu queria ouvir o que você acha.

Fabiano: Sei lá. Os sonhos são malucos mesmo. Mas sabe o que eu acho? Quando eu percebo que alguma coisa não se encaixa no sonho, meio que dá tilt, o sonho trava e eu acordo. Será que é por isso que eu acordo tantas vezes à noite?

Alice: Você não acha que a estranheza ou a sensação de que alguma coisa não se encaixa é uma interpretação que a sua consciência faz depois que você acorda?

Fabiano: Pode ser que sim. Não sei. Você quer que eu te conte outros sonhos que anotei?

Alice: Sim. Por favor.

Pensamentos de Fabiano: Olho minhas anotações e começo a contar:

Fabiano: Sonhei que eu estava com meu irmão e outras pessoas da família. Não sei dizer onde, só sei que íamos pegar a estrada. Meu irmão abriu uma lata de cerveja. Perguntei: 

“Por que você sempre tem que tomar uma cerveja antes de sair, mesmo que seja sem álcool? Não te dá vontade de fazer xixi no caminho?” Ele rebateu: 

Irmão: E por que, mesmo sozinho, você continua com as mesmas manias de quando era casado?

Fabiano: Retruquei: “O que o cacete de uma coisa tem a ver com o caralho da outra? Você não respondeu a minha pergunta!”

Meu pudor me impede de contar à Alice a minha resposta. Disse a ela apenas que não entendia a relação entre a minha pergunta e a dele.

Alice: Você não vê mesmo nenhuma relação entre uma coisa e outra?

Fabiano: Na hora, não vi. Pensando, depois, achei que podia ser mais ou menos como se ele estivesse dizendo que a gente faz certas coisas sem pensar, meio que no piloto automático. É isso?

Alice: Vamos tentar ver o que as duas coisas significam pra você. Por que você se incomoda de seu irmão tomar uma cerveja sem álcool antes de pegar a estrada? E por que você imagina que ele se incomode com o fato de você continuar sendo tão metódico, quanto você costumava ser quando era casado? E por que te incomoda o fato de ele mencionar que você é metódico?

Pensamentos de Fabiano: Como Alice interpretou tantos incômodos em meu relato tão curto? Eu não mencionei estar incomodado. Não acho que Alice leia meus pensamentos. Ela deve perceber algum sinal, algum franzir de testa… Faz parte da arte do analista.

Em um ensaio que Freud escreveu sobre a escultura do profeta Moisés, feita por Michelangelo, ele menciona o método que um especialista de arte usava para distinguir pinturas originais de imitações. Esse especialista, que Freud descobriu mais tarde ser um médico italiano, não se atinha a traços gerais da pintura e sim a detalhes como as unhas e as orelhas das pessoas retratadas nos quadros. Freud viu nesse método um parentesco com a psicanálise e sua arte de penetrar, através de detalhes que podem passar despercebidos, naquilo que está oculto.

Fabiano: Pode ser que o meu incômodo seja o fato de as pessoas normalmente verem um metódico como uma coisa ruim e não como uma coisa positiva. Pra mim, ser metódico é uma forma boa de organizar a vida.

Alice: E de te fazer acreditar que é você quem está no comando e que pode ter o controle da sua vida – sugeriu Alice.

Fabiano: O que você quer dizer com isso? Você também acha que ser metódico é uma coisa ruim?

Alice: Eu não estou dizendo se é bom ou ruim. Estou dizendo que você não gosta do imprevisto, do improviso, do aleatório. É mais cômodo lidar com o previsível. E como você mesmo disse, você quer escrever sua própria história. 

Fabiano: Eu sei que eu não sou Deus. Eu tento controlar aquilo que eu posso controlar, que são os meus próprios atos. Eu não tenho como controlar os atos dos outros, mas posso tentar, pelo menos, manter o controle dos meus.

Alice: Mesmo sabendo que nem sempre isso é possível.

Fabiano: Sim, eu sei que nem sempre é possível manter o controle. Posso te contar um outro sonho que tem a ver com essa coisa do controle que você tá falando?

Alice: Pode contar.

Fabiano: Sonhei que estava dirigindo em uma estrada e por falta de sinalização errei uma entrada, entrei em uma curva e perdi o controle do carro. Enquanto o carro caía do barranco lentamente, pensei: “Não é possível! Isso não pode estar acontecendo!”. E acordei.

Alice: Como você vê esse seu pensamento sobre o acidente?

Fabiano: A perda de controle parecia sem sentido.

Alice: Você diz que foi por falta de sinalização, mas você nem cogita a possibilidade de ter se distraído e perdido essa entrada?

Fabiano: Eu não sei se eu pensei isso na hora do sonho. Sei que as duas coisas podem acontecer. A minha distração e a falta de sinalização. O que pra mim parece inverossímil é a minha perda do controle da direção do carro.

Pensamentos de Fabiano: A hipótese que eu tentava levantar para a Alice é que tanto a minha incredulidade diante de um acidente pelo qual eu supostamente seria responsável quanto o fato de eu estranhar ao ver uma amiga aleatória na rua enquanto sonhava com a minha ex-namorada, levaram-me a desconfiar desses sonhos e acordar. Um amigo meu do tempo da adolescência dizia ter controle sobre os próprios sonhos. Eu ficava desconfiado, imaginando se esse tipo de coisa seria realmente possível. Será que ele não estava iludindo a si próprio de que tinha essa capacidade de controle? Será que eu interrompia o sonho por não saber como controlá-lo? Será, de fato, que eu interrompia o sonho? 

Fim

Você acabou de escutar o sétimo episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC (Pró Reitoria de Extensão e Cultura) realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. 

Esse projeto consiste na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico. 

Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre. 

Fique com a gente no oitavo episódio, em que Fabiano rediscute as raízes de seu problema de sono em sessões psiquiátricas. Além do mais, reencontra uma antiga amiga da faculdade e vai viajar pro exterior.

Continue escutando, até mais!

Ficha técnica:

Adaptação de roteiro, Direção e Produção:

  • Antero Vilela e Helena Chiste 

Atrizes / Atores e participações especiais, (por ordem de aparição):

    • Helena Chiste, como Alice
    • Antero Vilela, como Fabiano 
  • Maressa Gomes, como Ex-namorada de Fabiano
  • Heitor Brisola, como Irmão de Fabiano

Trilha sonora original:

  • Antero Vilela

Música, edição, mixagem e finalização de áudio: 

  • Vitor Muricy

Apoio:

  • LABJOR, Podcast Oxigênio do LABJOR e Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp

Veja também

Meu divã interior (episódio 9)

Meu divã interior (episódio 9)

Neste último episódio do romance radiofônico Meu divã interior, Fabiano tenta esclarecer uma questão que ronda sua mente: a primeira é como ter o controle sem recorrer a uma fuga da realidade? E pensa que da necessidade de se libertar, há de se encontrar um equilíbrio.

Meu divã interior (episódio 8)

Meu divã interior (episódio 8)

Neste oitavo episódio, a insônia continua e a última esperança de Fabiano está na psiquiatria. Será que finalmente essa nova profissional poderá resolver o seu problema? Ou talvez o remédio que ele precise seja outro, ou alguém….

Meu divã interior (episódio 5)

Meu divã interior (episódio 5)

Neste episódio, Fabiano reflete sobre religião, crença e espiritualidade. Além de indagar à Alice acerca da necessidade de as pessoas criarem fantasias, perpassando pela futilidade das redes sociais e ancestralidade até a sua infância.

Meu divã interior (episódio 2)

Meu divã interior (episódio 2)

Fabiano continua sua busca por uma solução para seu problema de insônia. A medicação prescrita pelo seu médico não fez efeito. Buscando relaxar, Fabiano se aventura em uma viagem ao litoral, lá ele conhece Márcia.

Meu divã interior (episódio 1)

Meu divã interior (episódio 1)

Este é o primeiro episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Você vai conhecer Fabiano, alguém em constante procura de um amor que ainda não encontrou e que segue atravessado pela angústia de uma persistente insônia.