Este programa continua introduzindo um panorama sobre como a Genômica é uma ciência transversal e emergente, contribuindo para desafiar as fronteiras do conhecimento de outras áreas científicas. O que muda do #113 é que agora o potencial da Genômica será relacionado a outros dois campos de atuação: conservação de espécies ameaçadas e saúde pública! Para entender melhor isso, os divulgadores científicos Vinícius Alves e Adriane Wasko conversaram com Patrícia Freitas e Lygia da Veiga Pereira. Patrícia é bióloga, professora da UFSCar e tem experiência de pesquisa com Genômica da Conservação Animal, especialmente primatas como o mico leão preto. Já Lygia é física, professora da USP e tem experiência de pesquisa em Genética Humana e Médica. Áudios do jornalista científico Marcelo Leite foram cedidos para o encerramento do programa. A seguir, você tem o roteiro completo para acompanhar a conversa. Sejam todos bem vindos ao segundo episódio de “#114 Essa tal de Genômica” do podcast Oxigênio!
Obs.: A foto do mico leão preto em vida livre é do Felipe Bufalo. O playback do mico leão preto é da ONG Itapoty. As demais imagens e trilhas sonoras são de bancos de uso público.
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Vinícius: Olá, ouvintes! O Oxigênio de hoje é o segundo episódio sobre Genômica. No episódio anterior, já tivemos uma noção de como a Genômica é uma área emergente e transversal no meio científico. E agora vamos falar um pouco sobre como estudos genômicos podem contribuir com duas outras áreas de amplo interesse público. No caso, a conservação de espécies ameaçadas e a saúde pública. Eu sou Vinícius Alves.
Adriane: Eu sou Adriane Wasko e começa agora: “Essa tal de Genômica, episódio 2”
Vinícius: Parte dos pesquisadores que trabalham com conservação da biodiversidade vêm utilizando dados genômicos. Por exemplo no Brasil, há projetos que sequenciam genomas de plantas endêmicas e altamente adaptadas ao ambiente estressante do Nordeste. Já em genômica da conservação animal, podemos destacar projetos com espécies ameaçadas de extinção que estudam genes adaptativos em populações de arara-azul, onça-pintada, tubarão-martelo, mico-leão-preto e outras.
Adriane: Quem pode comentar melhor sobre genômica da conservação animal é a geneticista Patrícia Domingues de Freitas, que por sinal, estudou comigo. Patrícia é professora do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos, a UFScar. Uma de suas linhas de pesquisa é a genômica aplicada à conservação animal, com ênfase no grupo dos Primatas.
Patrícia: A produção de dados genômicos ela surge com o desenvolvimento das tecnologias de sequenciamento do DNA né, lá na década de 70, de 80, mas principalmente nos inícios dos anos 90, quando surgem os projetos genoma, incluindo o projeto Genoma Humano. Na biologia da conservação, esse processo se dá mais pra frente depois dos anos 2000, quando as tecnologias de sequenciamento de DNA se tornam mais robustas a partir do desenvolvimento de métodos que a gente chama de ‘próxima geração’ que permitem a produção de dados genômicos em maior escala.
Vinícius: Ouvindo você agora, Patrícia, eu lembrei que já li que com as técnicas de hoje em dia é possível marcar milhares de genes específicos ou até regiões inteiras do genoma nos indivíduos de uma espécie. Com isso em mãos, eu imagino que a genômica da conservação possa caracterizar geneticamente a população de uma espécie animal ou vegetal que vive em uma determinada área e, também, acompanhar se essa população está mantendo uma boa variabilidade genética com o passar dos anos. É mais ou menos isso?
Patrícia: Bom, a gente sabe que a variabilidade genética é um elemento essencial pra manutenção e viabilidade de uma espécie ao longo do tempo perante as mudanças ambientais. Então a gente costuma dizer que quanto maior a variabilidade genética de uma espécie ou de suas populações, maior o potencial evolutivo daquela espécie. Ou seja, o potencial adaptativo e viabilidade de suas populações ao longo do tempo.
Adriane: O tamanho de uma população ou do ambiente natural que ela vive também influenciam na variabilidade genética de uma espécie, certo?
Patrícia: Quanto menor é a população, em geral menor é a variabilidade. Isso não é uma relação direta, mas a gente tem encontrado que populações pequenas e populações mais isoladas tendem sim a ter níveis de variação genética menores e, consequentemente, potencial evolutivo e adaptativo menor.
Vinícius: Esse potencial evolutivo adaptativo basicamente indica quais as chances que a população de uma espécie tem de continuar sobrevivendo em uma área. Se essa população está diminuindo porque seu ambiente está sendo fragmentado ou perturbado pela espécie humana, podemos imaginar que vão sobrando menos indivíduos e menos diversidade genética naquela população. Por exemplo, pode sobrar só indivíduos que já eram aparentados geneticamente e que vão cruzar entre si, o que causa o problema da endogamia.
Patrícia: Então uma das ferramentas da genômica e da genética de populações dentro da abordagem conservacionista é exatamente caracterizar a diversidade genética das populações, caracterizar a divergência ou a diferença genética entre as populações e manejar essas populações de forma a manter fluxo gênico que permita a manutenção da variabilidade genética e não a redução, já que populações com baixa variabilidade genética e redução dessa variação ao longo do tempo tendem a se extinguir. É claro que depende da espécie, depende da história evolutiva daquela espécie, mas via de regra, é isso o que acontece.
Adriane: Estou achando essa área bem interessante! Como eu falei antes, o grupo que a Patrícia tem mais experiência é o dos primatas. Aliás, o grupo de pesquisa dela é um dos que está tocando um grande projeto financiado pelo CNPq que estuda o perfil genômico do mico leão preto que é endêmico da Mata Atlântica do Estado de São Paulo. Isso quer dizer que essa espécie de mico não ocorre em nenhum outro local no mundo, mas sim apenas em habitats de floresta atlântica do estado paulista.
Patrícia: Esse projeto de Genômica do mico leão preto, além de ter o objetivo de caracterizar o genoma da espécie e descrever as sequências de nucleotídeos e as regiões gênicas né que são codificadoras de proteínas e consequentemente determinam as funções biológicas na espécie. Ele também tem o objetivo de estudar as populações remanescentes que ainda estão nos fragmentos de Mata Atlântica do interior do Estado de São Paulo, e as populações que hoje estão em cativeiro como uma forma de assegurar a viabilidade dessa espécie.
Vinícius: Além de endêmica de um bioma e de um estado, o mico leão preto também é considerado uma espécie ameaçada de extinção pela União Internacional para Conservação da Natureza, e também por outras instituições brasileiras que cuidam do nosso patrimônio, da nossa biodiversidade nacional. E mais do que isso, como conta a Patrícia.
Patrícia: Ela foi considerada extinta né no início do século 20 e permaneceu por cerca de 65 anos sem ser observada quando então lá no início da década de 70, alguns animais foram avistados na região do Morro do Diabo, lá no Pontal do Paranapanema. E aí houve a iniciativa de se levar alguns animais para o cativeiro para viabilizar a manutenção dessa espécie também ex situ. Posteriormente, aconteceram novos avistamentos e, desde então, a população do mico leão preto vem sendo manejada com finalidades conservacionistas.
Adriane: Nossa, isso mostra como pesquisas de ciência básica, que levantam e monitoram as espécies que ocorrem em determinados fragmentos de floresta ou regiões, são importantes.
Vinícius Sabe Adriane, e eu tenho uma experiência pessoal com essa espécie que a Patrícia estuda. Há 10 anos, eu estava fazendo um estágio de pesquisa nas áreas naturais de uma empresa de papel e celulose que fica perto de Lençóis Paulista, uma cidade do interior de São Paulo. Eu estava fazendo levantamento por pegadas das espécies de mamíferos que ocorriam em matas ciliares que a empresa mantinha junto com seus talhões de eucalipto. Daí, do nada, em um dos dias de campo, eu ouvi uma vocalização bem característica de alguns animais se mexendo em árvores.
Vinícius: Quando eu e meus colegas nos aproximamos, vimos que era um pequeno bando, uma meia dúzia, de mico leão preto! Acho que tivemos sorte.
Patrícia: Existem populações de vida livre, mas que são populações com baixa densidade populacional, e que estão restritas a fragmentos de Mata Atlântica muitas vezes desconectados, dado o alto grau de fragmentação dessa floresta. As populações de vida livre sofrem constantes ameaças. Não só pelo desmatamento, mas também por outras influências antrópicas, como por exemplo, a própria caça e tráfico ilegal dessa espécie.
Adriane: Considerando que cada fragmento florestal tem algumas características ecológicas particulares e que os eventos que aconteceram em um fragmento podem não ter acontecido em outro, podemos esperar que as pressões seletivas também variem entre as populações de mico leão preto que não interagem. Isso ao longo das últimas gerações, pode diferenciar uma população da outra, genomicamente falando.
Patrícia: A partir dos dados genômicos, eu posso comparar populações, eu posso encontrar dados interessantes que possam ser utilizados para indicar os melhores reprodutores, para indicar os animais que devem ser translocados ou reintroduzidos. Então eu posso gerar dados úteis ao manejo que possa ser realizado em cada um desses ambientes, tanto ex situ quanto in situ, mas que também possa ser integrado.
Vinícius: Até agora a gente focou em projetos de pesquisa que envolvem outros seres vivos, mas por que não falar também de um projeto de pesquisa que o objeto de estudo é o ser humano?
Adriane: Recentemente, grandes mídias deram cobertura para o projeto DNA do Brasil que envolve pesquisadores da USP, o Ministério da Saúde, empresas privadas de saúde como a Dasa e até a plataforma de dados do Google Cloud.
Vinícius: O objetivo geral desse projeto é audacioso: mapear os genes de milhares de brasileiros para prever e tratar doenças, ainda mais considerando que a população brasileira é altamente miscigenada.
Adriane: Para conhecermos um pouco sobre isso, conversamos com Lygia da Veiga Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP e pesquisadora coordenadora do projeto DNA do Brasil.
Lygia: Apesar de todos nós sermos humanos, o genoma de cada um de nós não pode ser idêntico, senão seríamos todos clones. Cada par de ser humano é 99,9% idêntico em relação ao seu genoma. Esse 0,1% das diferentes letras entre os genomas de uma pessoa e o de outra é que são responsáveis pelas nossas características individuais.
Vinícius: E a partir desse 0,1%…
Lygia: O objetivo é eu saber quais são os genes e as variações que existem em quais genes que são responsáveis por uma pessoa ter maior predisposição a desenvolver, não sei, Alzheimer, hipertensão, asma, diabetes…
Adriane: Você pode estar se perguntando qual a viabilidade de um projeto que sequencia milhares de genomas no Brasil, pois isso parece muito caro né. Como é isso, Lygia?
Lygia: Produzir as sequências, fazer o sequenciamento, é um trabalho muito braçal e muito caro, que requer equipamentos complexos de manutenção cara. Se eu fosse instalar isso dentro da universidade, o custo por genoma seria muito alto. A nossa estratégia foi contratar esse sequenciamento por empresas que prestam esse serviço. Ao contratar o serviço da DASA para fazer esses sequenciamentos, a gente está tendo uma economia de provavelmente 3x.
Vinícius: E como está sendo realizada a amostragem da população brasileira que é tão heterogênea e pode ter variações genéticas entre regiões?
Lygia: A gente foi atrás de grupos de brasileiros que já são muito bem caracterizados do ponto de vista clínico e comportamental, como por exemplo, os participantes do estudo longitudinal da saúde do adulto, o projeto Elza. Esse é um projeto que tá em andamento há mais de 10 anos, acompanhando 15 mil brasileiros. Outra característica é que a gente quer captar toda a diversidade genética existente no Brasil. Então se você olhar a distribuição desses 15 mil brasileiros, os estados de origem, a gente tem gente de todos os estados do Brasil.
Adriane: Mas isso é uma amostra suficiente e com poder estatístico para identificar todas as variantes associadas a doenças comuns?
Lygia: O Ministério da Saúde entra então no projeto agora permitindo que a gente aumente esse número de 15 mil para 150 mil. Isso ia ser lançado este ano logo depois do carnaval, mas o corona mudou tudo. Mas de qualquer jeito, o Ministério da Saúde á com uma política nacional de medicina de precisão já montada que vai incluir a genômica populacional.
Vinícius: Lidar com dados pessoais de saúde é uma situação delicada e pode esbarrar em questões éticas. Ciente disso, Lygia comenta que …
Lygia: É óbvio que a gente tem que usar todos os procedimentos éticos oficiais e com o maior rigor e cuidado. Nos Estados Unidos, por exemplo, já existe uma legislação que protege o sigilo das informações genéticas das pessoas, que essas informações não possam ser usadas contra aquele indivíduo, por empregadores ou seguradoras de saúde. Então, a gente tem que seguir todo o caminho de aprovação em CONEP, de termos de consentimento onde fique muito claro quais são os benefícios e quais são os riscos desses indivíduos participarem das pesquisas.
Vinícius: Acho que agora entendi melhor como a Genômica é transversal e amplia as fronteiras de outros campos de interesse tanto da ciência quanto da sociedade. Mas assim também fica mais desafiador pra gente acompanhar as novidades que a Genômica está por trás.
Adriane: Concordo, Vinícius. Mas mesmo um geneticista ou um biólogo molecular não consegue acompanhar a produção científica da área como um todo. O que vale destacar é a importância de se divulgar, de forma compreensível, alguns desses avanços para a sociedade em geral, o que nem sempre é fácil. Marcelo Leite, colunista da Folha de São Paulo que cobriu e discutiu novidades da Genômica por muitos anos, reconhece que a conversa com especialistas não é fácil..
Marcelo: As pessoas têm que pensar com a própria cabeça, e pra isso, elas precisam de uma base; não de um conhecimento profundo e técnico do especialista. Nenhum especialista tem conhecimento sobre tudo, ele é um especialista, ele conhece genética, mas não conhece, sei lá, taxonomia.
Vinícius: Então, em outras palavras, o jornalista sugere que a população seja melhor informada.
Marcelo: Não acho que cabe ao público em geral ou que há utilidade para ele em se aprofundar na Genômica. Ele precisa ter sim uma noção geral, o mais fiel possível do funcionamento da Genômica, das conquistas da Genômica, do seu funcionamento, das suas práticas e dos seus resultados para julgar as diferentes instâncias da sociedade, o quanto de recurso e atenção esse campo deve receber do governo, das instituições de fomento e por aí afora.
Adriane: Pois é, e isso mostra como a cultura científica contribui para uma cidadania mais ativa.
Marcelo: Faz parte dos requisitos para a atuação da cidadania que você tenha alguma cultura científica sobre Genômica, sobre célula-tronco, sobre reprodução assistida, sobre biotecnologia, sabe, pra não ficar sendo só uma marionete na mão de quem manipula melhor esses conceitos.
Vinícius: Este programa do Oxigênio vai ficando por aqui. As entrevistas e o roteiro foram realizados por mim com a colaboração da Adriane Wasko e da Caroline Maia, além da supervisão da Simone Pallone, que é coordenadora do Oxigênio. Os trabalhos técnicos foram do Octávio Augusto da Rádio Unicamp e do Gustavo Campos. A divulgação teve a colaboração da Helena Nogueira.
Adriane: Se você gostou, conta pra gente nas nossas redes sociais, ou em uma resenha no seu agregador de podcasts preferido!
Vinícius: Se puder também compartilhar com alguém da família, do trabalho ou do seu círculo de amizades que goste de ciência e genômica, é uma super força pra gente.
Adriane: Até a próxima!