#90 Série Corpo, episódio 3 – Doze por oito
maio 1, 2020

Compartilhar

Assine o Oxigênio

Em “doze por oito”, terceiro episódio da série Corpo, abordamos os vários sentidos da pressão alta. Os entrevistados são o professor Bruno Rodrigues, da FEF/Unicamp, que estuda os efeitos do exercício físico em pacientes com hipertensão resistente, e a professora Soraya Fleischer, antropóloga da UnB que publicou uma etnografia sobre a população hipertensa de um bairro da Ceilândia. A série Corpo faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é financiado pela FAPESP (2019/18823-0) e coordenado pelo professor Bruno Rodrigues (FEF/Unicamp).

SAMUEL RIBEIRO: Esses são relatos que eu recebi por Whatsapp agora durante a quarentena. Eu queria encontrar uma pessoa com hipertensão pra me contar um pouco da sua experiência com a doença, só que eu acabei encontrando muita gente.

SAMUEL: Assim… toda família tem alguém com pressão alta. Aquela tia que passa mal nos aniversários, o avô que tá sempre com a caixinha de remédio do lado, prima, pai, mãe, enfim. A gente tá tão acostumado que nem para pra pensar na quantidade de gente no mundo que tem a mesma doença crônica.

SAMUEL: Tem um dado do SUS que diz aqui no Brasil mais ou menos 1 a cada 4 mulheres e 1 a cada 5 homens têm hipertensão. E no caso das pessoas mais velhas, esse número aumenta muito: a hipertensão pega mais de 60% dos idosos. A gente tá falando de milhões de pessoas com o mesmo problema.

SAMUEL: E já que afeta tanta gente, o que não falta é informação sobre o assunto. Pra controlar a pressão, além dos remédios e da alimentação correta, todo mundo sabe rezar a cartilha: exercício físico ajuda a prevenir a pressão alta! Quem tem pressão alta precisa fazer exercício físico! Exercício físico… exercício físico… exercício físico…

SAMUEL: Tá. Vamos falar disso… Eu sou o Samuel Ribeiro, e esse é o Corpo, um podcast pra falar de pessoas e de movimento. E a gente começa…

BRUNO RODRIGUES: … tá me ouvindo bem, tá sem barulho?

SAMUEL: … com o Bruno.

BRUNO: O meu nome é Bruno Rodrigues, eu sou professor da Faculdade de Educação Física da Unicamp. O meu foco maior é trabalhar pesquisando efeitos e benefícios e adaptações do exercício em portadores de doenças cardiovasculares.

SAMUEL: Um parênteses. Além de ser o entrevistado, o Bruno me orienta na produção do podcast, e isso é até engraçado porque apesar da gente ter algumas coisas em comum, viemos de áreas bem diferentes: ele é pesquisador da área biológica e eu sou um cara super das ciências humanas.

BRUNO: Samuel?

SAMUEL: Por causa da pandemia, a gente teve que fazer uma entrevista à distância…

BRUNO: Samuca?

SAMUEL: … e mesmo a ligação caindo algumas vezes, deu pra gente conversar bastante coisa.

BRUNO: O grande problema da hipertensão é que ela é uma doença silenciosa, normalmente. Então a gente, no meio da correria do dia a dia, a gente não percebe. Mas é, eu me lembro dos picos hipertensivos que minha mãe tinha, os picos de pressão alta que minha mãe tinha… ela passava mal, e a gente tinha que correr com ela, as poucas vezes que ela teve as crises fortes, assim, a gente tinha que correr com ela pro hospital porque realmente tava grave.

SAMUEL: Lá no começo da carreira o Bruno se apaixonou pela fisiologia e por entender não só como o corpo funcionava, mas também quando e por quê não funcionava direito.

BRUNO: Eu comecei a me interessar muito pela doença, né. Ao contrário de muitos que vão por conta da saúde. Aí eu comecei a estudar mais, entrei pra um laboratório de neurofisiologia. A gente estudava Parkinson em animais, e aquilo foi apaixonante!

SAMUEL: Isso foi lá atrás, ainda na graduação. Logo em seguida ele se envolveu com uma pesquisa sobre exercício físico em pacientes com AIDS, e por causa dessa pesquisa ele foi procurar um professor em São Paulo que era especialista em HIV. O Bruno chegou lá querendo fazer pós-graduação…

BRUNO: Mas ele disse pra mim, falou “não, Bruno, eu não tô mais estudando HIV, a minha parte é doença cardiovascular”. Eu falei “então é aqui que eu vou ficar”.

SAMUEL: E aí, do doutorado pra frente, ele ficou nessa de estudar coração, problemas cardiovasculares e exercício. E hoje…

BRUNO: Hoje eu tenho trabalhado com hipertensão. É… a hipertensão em humanos e também em animais. A gente tem feito algumas intervenções nos sujeitos hipertensos, e uma dessas intervenções é o exercício, né. O exercício físico.

SAMUEL: O Bruno estuda um tipo específico de paciente hipertenso, e a gente já vai explicar melhor isso. Mas a ideia geral aqui é tentar entender por quais caminhos o exercício age no organismo e faz com que tenha uma redução na pressão.

SAMUEL: Imagina assim: o coração tá lá, funcionando sem parar pra garantir que o sangue chegue em todos os tecidos do corpo. Do dedão do pé até o couro cabeludo. Os órgãos, o cérebro, tudo sendo irrigado com oxigênio e com nutrientes. Só que ao longo da vida e principalmente por causa daqueles maus hábitos que a gente já sabe…

BRUNO: Fumar, comer gordura, comer muito sal, não dormir direito, tomar muito álcool…

SAMUEL: Não fazer atividade física… Enfim, por causa dessas coisas vão aparecendo problemas no organismo, tipo mudanças nos vasos sanguíneos, por exemplo, que fazem o coração trabalhar mais e mais pra garantir que o sangue chegue onde tem que chegar. Ou mudanças nas áreas do cérebro que controlam o coração, fazendo ele trabalhar com muita força. E aí, claro… a pressão sobe.

BRUNO: E aí, quando a gente mantém essa pressão aumentada do coração sobre os vasos, do sangue passando pelos nossos vasos sanguíneos com uma pressão aumentada, tudo vai ficando ainda mais prejudicado, né, os nossos vasos perdem as suas funções, o coração ele começa a aumentar a parede, né, de músculo desse coração, diminuindo a quantidade de sangue que chega ali pra ser bombeado, enfim. A gente tem uma série de alterações que fazem aumentar a pressão, e quando a pressão tá aumentada, isso vai se prejudicando cada vez mais.

SAMUEL: Esse prejuízo atinge tanta gente no mundo que o tema da hipertensão acaba sendo um dos mais estudados na Educação Física. E já é consenso na área da saúde e do treinamento que o exercício, principalmente o aeróbico, tipo corrida, caminhada ou bicicleta, quando feito da maneira certa, é capaz de controlar a pressão.

BRUNO: “Ah, mas quanto que abaixa a pressão arterial?” Uma média, né, de redução de pressão com exercício é em torno de 5 a 6 milímetros de mercúrio. Aí cê pode me perguntar assim “ah, isso é muito pouco Bruno!”.

SAMUEL: Pra exemplificar: o sujeito que tá com uma pressão de, sei lá, 14,5 por 9,5, acaba caindo pra 14 por 9 depois de praticar exercício de um modo consistente por alguns meses.

BRUNO: É muito pouco? Não é. Na verdade quando a gente olha pra essa queda de pressão, cê reduz ali em torno de 17% a chance de você ter um AVC. Você diminui em torno de 12% a chance de ter um ataque cardíaco. Então é bastante coisa, né.

BRUNO: Eu costumo brincar com os alunos que só não descobriram efeito ainda do exercício na unha encravada, porque de resto a gente já tem muita evidência mostrando que realmente desde a menor porção da célula, até no indivíduo como um todo, no humor, na psique, enfim, o sujeito consegue se beneficiar dessa prática.

SAMUEL: No caso da hipertensão, o Bruno tava explicando que o exercício ajuda porque acaba gerando uma cascata de mudanças positivas em várias partes do organismo, e não dá pra gente entender o corpo de forma isolada. Uma coisa sempre acaba afetando a outra.

BRUNO: O exercício regular diminui pressão, maravilha. Mas como é que ele faz pra reduzir a pressão? Ele melhora nossos vasos sanguíneos, a função de dilatar e ficar mais constricto, ficar mais estreitinho os nossos vasos, então é uma forma de regular a passagem de sangue por essa região. Ele melhora o controle nervoso do coração, né, o controle do sistema nervoso central pro coração, fazendo com que a gente diminua a força de contração desse coração e diminua no final das contas a pressão arterial.

SAMUEL: Isso sem contar os outros efeitos conhecidos, né, tipo a diminuição do estresse, que é um baita fator de risco pra hipertensão…

BRUNO: Mais um ponto pro exercício…

SAMUEL: Diminuição do peso. Melhora do colesterol. Redução da glicemia, que é importante quando a gente pensa que diabetes e hipertensão andam de mãos dadas…

BRUNO: É um combo, exatamente, é um combo. Assim como é difícil a gente ter um… como a gente brinca em pesquisa, né, ter um hipertenso limpinho, que é aquele sujeito que só tem hipertensão. É muito difícil disso acontecer. Normalmente a hipertensão é o reflexo de uma série de outras coisas, né, então… de um sujeito que fumou a vida toda, de um sujeito obeso, é o reflexo de um sujeito diabético, de um sujeito mais velho… é, enfim, vem também com o combo todo.

SAMUEL: Então o exercício acaba atuando sobre outros problemas e, por tabela, melhora a pressão. Tá, beleza. Já deu pra entender que a hipertensão é um problema grave que atinge muita gente, que ela envolve vários fatores e que o exercício físico ajuda bastante. Mas e a pesquisa do Bruno, onde é que ela entra nisso tudo?

BRUNO: Mais especificamente a gente tá trabalhando com sujeitos que têm a pressão alta, só que aqueles sujeitos que tomam uma série de medicamentos e a pressão ainda não fica completamente regulada.

SAMUEL: Que são os chamados hipertensos resistentes. A estimativa é que algo entre 7 a 13% dos hipertensos tenham essa característica genética, e no caso deles os riscos das complicações tipo derrame ou infarto acabam sendo maiores ainda, porque o tempo que o organismo passa com a pressão fora do normal tende a ser maior.

BRUNO: É um sujeito bem complicado de se tratar…

SAMUEL: E aí já que os remédios não funcionam tão bem nessas pessoas, as outras estratégias de tratamento, inclusive o exercício físico, ganham mais importância ainda. O que o Bruno tem feito na pesquisa dele é tentar entender melhor essas outras formas de tratar os hipertensos resistentes, e ele tem estudado não só os efeitos do exercício, mas também a combinação dele com uma outra técnica…

BRUNO: … chamada estimulação transcraniana por corrente direta…

SAMUEL: Que é um nome que assusta um pouco, tem um quê de cientista maluco, de Dr. Frankenstein, mas na realidade é algo bem simples e mais tranquilo do que parece.

BRUNO: A gente coloca uns eletrodozinhos no couro cabeludo, fornece uma pequena corrente elétrica, que não dá pra sentir, não tem nenhuma sensação de desconforto, mas que ajuda a estimular áreas do cérebro que controlam a nossa pressão, os nossos níveis de pressão arterial. Então a gente tem tentado, além do exercício, também mostrar a eficácia, né, de uma nova ferramenta aí pra poder controlar a pressão desses sujeitos, que é tão difícil de ser controlada.

SAMUEL: O legal dessa pesquisa é que ela pega várias áreas do conhecimento. Então parte dos experimentos do Bruno é feita com pacientes, em parceria com a Faculdade de Medicina, e outra parte ele estuda em modelo animal, com ratinhos hipertensos, no Instituto de Biologia.

SAMUEL: O estudo ainda tá em andamento, mas já tá mostrando resultados promissores e pode no futuro ajudar a melhorar muito a saúde de quem é hipertenso resistente.

BRUNO: Exatamente, exatamente.

SAMUEL: Exatamente. E vale reforçar aqui que esses experimentos são todos feitos em ambiente controlado. Então um parênteses pra um momento responsabilidade no podcast: se a sua pressão é alta e você quer conversar sobre o seu tratamento, marca com o seu cardiologista, dá uma passada no centro de saúde… e antes de começar a fazer exercício, procura um professor de Educação Física qualificado que ele vai te orientar certinho e evitar qualquer tipo de problema, porque um exercício feito do jeito errado pode acabar sendo perigoso pra quem é hipertenso.

SAMUEL: A gente faz uma pequena pausa pra ouvir um recado do pessoal do podcast Quarentena, da Unicamp. O episódio volta logo depois.

SAMUEL: Voltando. Uma coisa que o Bruno falou é que a hipertensão, seja a comum ou a resistente, tem um fator hereditário importante. Tem toda a questão dos hábitos de vida, da alimentação, do sedentarismo… mas além disso, se você tem pai ou mãe hipertensos, as suas chances de desenvolver a doença aumentam bastante.

ANA CAROLINA YAMAMOTO: É, eu sou de uma família de hipertensos né, e meu pai teve um AVC, né, um derrame com 40 anos, então a gente fica um pouco preocupado com isso…

SAMUEL: Essa é um dos depoimentos que eu recebi no Whatsapp, da Ana Carolina.

ANA CAROLINA: Meu nome é Ana Carolina Yamamoto, eu tenho 38 anos e me descobri hipertensa há uns 5 anos mais ou menos.

SAMUEL: Alguns anos depois de descobrir a doença, a Ana engravidou e o sonho dela era ter um parto em casa… só que não rolou. Uma atrás da outra, as equipes médicas fugiam dela quando ela dizia que era hipertensa. No final ela conseguiu uma médica que topou fazer o parto natural no hospital. Bom, quando chegou o dia do bebê nascer, a Ana tava em casa se preparando…

ANA CAROLINA: Eu já tava com a doula em casa, eu chamei a enfermeira pra ela ver se tava tudo bem, pra gente ver se era a hora de ir pro hospital ou ainda dava pra ficar mais um pouco em casa. A enfermeira chegou, sorridente, tranquila, mediu minha pressão e falou “olha, a gente precisa ir pro hospital agora”. Daí eu falei, “tá bom”. Comecei a juntar minhas coisas, a abraçar a mãe, a mãe tava lá, meu pai. Daí ela “não, para, a gente vai pro hospital agora!”. Minha pressão tava 17 por 11.

SAMUEL: Ela já tinha perdido uma amiga por conta de eclampsia, então sabia que aquilo não era brincadeira. A Ana foi pro hospital, a equipe médica tomou todos os cuidados e o parto foi um sucesso. Só que agora ela era mãe, e a hipertensão ganhava outro peso.

ANA CAROLINA: Lidar com a ideia de ser hipertensa é lidar com o conceito também de tudo que aconteceu com o meu pai e o medo que aconteça comigo, ainda mais agora que eu tenho filho. Mas aí eu tive um pico de pressão, fui parar no hospital de novo, com a cara formigando, foi horroroso. Aí eu resolvi começar a me cuidar, isso foi no final do ano passado. Toma remédio, vai no cardiologista, faz o checkup, tava começando a fazer atividade física… começou a pandemia. E quem é grupo de risco na pandemia? Hipertenso.

ANA CAROLINA: Eu não sei. Essas coisas invisíveis são muito complicadas. Porque a gente depende de uma conscientização muito maior. Se eu tô sangrando eu sei que eu tenho que fazer logo até que aquilo estanque. Mas a hipertensão é como se fosse uma micro hemorragia, que vai levando a gente sem a gente perceber.

BRUNO: Se todo mundo sabe, ou se grande parcela da população mundial sabe que faz bem, a informação chega, sabe que previne e trata doença… por que que 50% da população mundial é sedentária ainda? Eu acho que esse é o grande ponto.

BRUNO: É… óbvio, população mais carente, que trabalha o dia todo, pega transporte público, enfim, acaba não tendo a possibilidade de praticar. Aí é uma outra história, mas eu acho que uma grande possibilidade de estudo seria pegar aquelas pessoas que sentem prazer, e que aderem muito bem a programas de atividade física, de exercício físico, e aquelas que não conseguem nem ver, que quando tem uma menor dificuldade ela desiste daquele determinado programa de atividade, ou desiste da academia, ou para de caminhar com os amigos, enfim. Por que que esse hábito é tão difícil de ser criado, né?

SAMUEL: Essa é uma pergunta de ouro pra Educação Física e pra área da saúde como um todo, e tem sido a preocupação de vários profissionais e pesquisadores. Mas a gente sabe que a questão é complexa e envolve fatores sociais, culturais, econômicos…

BRUNO: Acho que esse é um dos pontos mais cruciais aí pra gente descobrir nos próximos anos, ã… como é que a gente faz pras pessoas aderirem aos programas…

SAMUEL: Foi pra falar um pouco desses outros fatores que eu liguei pra Soraya, que também pesquisou hipertensão, mas vem de uma área completamente diferente da do Bruno.

SORAYA FLEISCHER: Bom, o meu nome é Soraya Fleischer, eu sou uma antropóloga que trabalha aqui no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, e desde a minha graduação eu tenho a antropologia da saúde como um tema que me interessa, e também tem orientado as minhas pesquisas né. Então a saúde, a doença, os tratamentos, o SUS, o sofrimento, né, por conta de adoecimentos, são temáticas que me interessam de forma geral.

SAMUEL: A Soraya já fez pesquisa sobre doenças dermatológicas, doenças pulmonares, sobre parto, sobre HIV… enfim, e ela é autora de um livro chamado “Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão”, que foi uma pesquisa feita no bairro da Guariroba, na Ceilândia, lá no Distrito Federal.

SAMUEL: Em 2008 a Universidade de Brasília abriu um campus novo ali na Guariroba e a Soraya fazia parte da equipe de professores que ia estruturar o curso de Saúde Coletiva. Ela queria conhecer o bairro, as pessoas e as relações delas com a saúde… e a primeira coisa que ela fez foi acompanhar os alunos que moravam ali pra que eles apresentassem a região pra ela.

SORAYA: E aí eu comecei também a pedir pra eles me apresentarem pra família deles, pra os vizinhos, né, começar a me contar essa história. E aí eu fui conhecendo quem tava em casa durante o dia, não eram geralmente os pais dos meus alunos, eram geralmente os avós, os tios-avós, os vizinhos mais velhos, e tal.

SAMUEL: E o que a Soraya queria saber era como que aquelas pessoas tavam vivendo a questão da saúde no dia a dia…

SORAYA: E aí elas começaram a me mostrar, de uma forma muito interessante, sabe? Elas falaram assim “ah, Soraya, o melhor pra eu te mostrar sobre o que que eu tô vivendo aqui em termos de saúde, é te mostrar o que que eu tô tomando”. Aí elas se levantavam ali da varanda, elas iam lá pra dentro, e voltavam com uma caixinha de sapato, geralmente, cheia de remédio.

SORAYA: Aí elas iam tirando assim de dentro da caixa de sapato, as cartelinhas de remédio, as caixas, as bulas. E elas iam me falando “esse aqui, esse aqui eu tomei por causa disso, esse aqui eu tô tomando, esse aqui é ótimo, esse aqui tem gosto de framboesa, esse aqui eu não tomo mais, enjoei, esse aqui minha vizinha me deu, esse aqui minha mãe me passou”, e por aí ia né. E eu fiquei muito impressionada com isso, com essa quantidade de medicamentos circulando, e uma recorrência de medicamentos pra diabetes e pra hipertensão arterial. E aí eu falei “bom, é aí, é aí que eu vou entrar, né, vou entrar a partir das caixinhas de sapato cheias de remédio, as farmacinhas domésticas, digamos”

SAMUEL: Ela foi por esse caminho e decidiu que ia tentar entender a questão da hipertensão. Só que aconteceu uma coisa engraçada. Ela perguntava pros moradores se eles tinham hipertensão ou se conheciam alguém que tinha, e eles respondiam…

SORAYA: “Não, eu não tenho”, “não, não conheço ninguém” e tal. E eu falei “gente, mas como é que pode? Porque eu tô vendo as caixinhas cheias de captopril, de enalapril, e ninguém tem hipertensão? E AS, e não sei o quê, afinador de sangue, não sei o quê? E aí as pessoas não têm hipertensão?”. E eu voltava pra casa intrigada com aquilo, né. Por que que ninguém tem hipertensão, se elas tão tomando esses remédios?

SAMUEL: A Soraya tava fazendo a pergunta errada.

SORAYA: E aí, um dia, eu vi uma senhora conversando com a vizinha dela, e ela mencionou alguma coisa do tipo “fulana, você viu a cicrana, tá com a pressão muito alta! passou mal ontem da pressão!”. Aí eu “ahá! Essa é a palavra!”. Aí eu comecei a perguntar então “a senhora tem problema de pressão?”. “Ah, eu tenho, meu marido tem, meu filho mais velho tem, a vizinha de lado tem, a minha irmã que mora duas ruas pra lá tem, o meu cunhado tem”. Pronto. Aí eu consegui a chave, né, pra poder conversar com as pessoas.

SAMUEL: Então ela foi se aproximando, foi conhecendo um pouco mais daquele cotidiano, e começou a acompanhar os moradores nos diferentes grupos que eles frequentavam. Tinha o grupo da pressão, do programa hiperdia, que é um grupo de acompanhamento de hipertensos no centro de saúde. O grupo da oração, o grupo do forró, o grupo da ginástica… e aí ela foi ouvindo as pessoas e notando que a palavra pressão significava muito mais pra elas do que só a hipertensão arterial.

SORAYA: A hipertensão, você consegue controlar tomando seu captopril, né. Mas… isso é hipertensão. Agora, a pressão alta, sobretudo a pressão emocional, ela não é resolvida plenamente com remédio da hipertensão. Então aí as pessoas tavam falando de um outro conjunto de sentidos que pressionava, né, que fazia uma série de emoções acontecerem naquela pessoa e ao redor dela, que não permitia que a saúde ficasse estável.

SORAYA: Então, eu lembro de uma vez, né, de um senhor, que chegou… a gente tava na fila… na sala de espera esperando o grupo da pressão, e ele chegou, ele tava assim visivelmente transtornado, eu falei assim “mas o que que aconteceu hoje?”, ele falou assim “a minha filha mora comigo, ela tem três filhos, e eu ajudo ela então a cuidar dos meus netos, e a gente não consegue um dia sequer fazer com esses meninos estejam prontos a tempo de eu colocar eles no carro e levar pra escola, pra chegar na hora… é uma brigaiada com essas crianças, ela não tem pulso, eu não consigo fazer esse povo ficar pronto, eles chegam na escola atrasados, eu chego aqui com essa pressão destrambelhada pra ser medida, e aí toda vez que eu venho no posto então é isso, e eles sempre me vêem aí com meu 18 por 12, meu 20 por 16, então fica parecendo pro doutor que eu tô sempre o tempo inteiro sem cuidar da minha pressão”.

SAMUEL: Em volta da pressão alta, sempre tinha algum problema com a família, com a casa ou com o vizinho… sempre algum tipo de pressão que ia além do sangue, do coração e dos vasos. Até a pressão do próprio atendimento médico!

SORAYA: E aí muitas vezes eles falavam de forma irônica “ah, hoje tem o grupo da pressão”. Eu falava “da pressão alta?”, “não, da pressão do doutor mesmo”. Né? E eu acho incrível, porque é isso. Como é que um programa, o hiperdia, que é um programa teoricamente muito interessante, porque você faz um acompanhamento… mais do que uma consulta curativa, a doença crônica precisa de acompanhamento, né, continuado, então… a ideia de encontros frequentes é excelente, mas não adianta se o encontro é pra puxar a orelha de todo mundo.

SAMUEL: O que a Soraya foi percebendo é que, para aquelas pessoas, a hipertensão não tava separada das outras questões da vida. E a situação da saúde não era tão fácil de explicar, e nem tão simples de resolver.

SORAYA: Então muitas senhoras falavam pra mim assim “Soraya, eu as vezes evito minha filha, de ligar a televisão, porque o que vem da televisão é a pressão da vida”. Então elas ficavam sabendo de enchente não sei aonde, de seca não sei aonde, de desvio de dinheiro, de gente que morre em fila de hospital, sabe? Notícias que vinham do mundo inteiro e que super, é… afetavam essas… essas senhoras e esses senhores, né.

SORAYA: Então tinham várias maneiras de usar, tinham nuances diferentes que somavam pra poder entender porque que as vezes a pressão arterial ficava descontrolada. Ela era o efeito de um monte de outras pressões, né.

SAMUEL: Então eram explicações complexas pra uma situação de saúde que também era complexa. E a Soraya foi me falando que não bastava pensar a hipertensão só por aquele tripé que todo mundo conhece, que é medicamento, exercício físico e mudança da alimentação.

SORAYA: Tudo bem. Eu acho que é um começo, eu acho que é muito interessante, mas ele não pode ser apresentado somente como uma receita pra seguir a ferro e fogo. Não é fácil seguir essa receita por uma série de questões, né.

SAMUEL: Ali na Guariroba, por exemplo, que é um bairro antigo, a maior parte da população era de migrantes do nordeste e de Minas Gerais que participaram da construção de Brasília. Então no caso da alimentação, tem toda uma questão de identidade e de trajetória envolvida.

SORAYA: Bom, cê pega um senhor de 70 anos, migrante, nordestino, né. É, a pessoa que compra o ingrediente geralmente vai ser a nora dele, né. Então a pessoa mais jovem daquela escala, é… geracional daquela casa que faz esse trabalho de ir até a feira e comprar o ingrediente. Quem cozinha pode ser essa nora, como pode ser a esposa desse senhor, ou a filha dele. Então quem vai pilotar o fogão é as vezes uma outra pessoa, que vai fazer tempero, a quantidade de óleo, a receita, o prato, e tudo isso.

SAMUEL: Parece simples, mas não é. Como que a gente pode pedir pra um cearense deixar de comer farinha? Ou pra um mineiro abrir mão do torresmo? Ou fala de moderação pra alguém que quando era jovem comia pouco, mas hoje depois de trabalhar a vida inteira pode comer muito?

SORAYA: Eu conheci um senhor que ele falou assim “eu posso pagar hoje uma peça inteira de queijo, eu posso! E eu vou comer esse queijo num final de semana inteiro, sozinho, por que eu posso, né”.

SAMUEL: O que a Soraya me explicou é que naquele cotidiano da Guariroba o corpo era algo muito mais coletivo do que individual. A questão da saúde, da alimentação, dos tratamentos, dos cuidados… tudo isso ia além dos indivíduos e envolvia a família toda, o entorno, a história daquelas pessoas… Então nem sempre era suficiente que o médico ou a enfermeira ficasse dando pito no idoso por causa da pressão descontrolada. E pro exercício físico a situação também não era tão simples.

SORAYA: Como eu tinha te falado né, os homens 30, 40 anos, trabalhando com a construção civil, e as mulheres no trabalho doméstico. Então eles tinham usado o corpo a vida toda no trabalho deles, né, eles tinham exercido ocupações braçais. Carregado muito saco de cimento, passado muita roupa, carregado muita criança no colo. Então quando os médicos, as enfermeiras falavam “vocês precisam se exercitar”, era difícil aceitar isso, porque era assim “olha, eu já… eu já exercitei a vida toda. Agora eu tô aposentado, eu quero sossego. Eu mereço ficar tranquilo”.

SAMUEL: O exercício físico acabava sendo associado com o mundo do cansaço, do trabalho braçal, da labuta, e isso aquelas pessoas já conheciam bem.

SORAYA: Então era difícil conseguir adesão e conseguir convencê-los de que tinha que fazer polichinelo, corridinhas, ou alongamentos e pilates, sabe?

SAMUEL: E aí foi até engraçado na entrevista, porque a Soraya, mesmo vindo por um caminho bem diferente, acabou chegando numa pergunta parecida com a do Bruno.

SORAYA: Então eu acho que é preciso pensar nisso pra adaptar, no caso do hiperdia né, que o exercício físico é tão importante. Mas como é que você desenvolve coisas que sejam valorizadas por esses senhores e senhoras?

BRUNO: Acho que esse é um dos pontos mais cruciais aí pra gente descobrir nos próximos anos, como é que a gente faz para as pessoas aderirem aos programas, né.

SAMUEL: A minha conversa com o Bruno e com a Soraya foi longe, e deu pra ver que nada é tão simples quando a gente fala de pressão alta. Tem hipertenso que toma um monte de remédio e mesmo assim não consegue controlar… e tem remédio que melhora a hipertensão, mas não dá conta de reduzir as pressões da vida. Tem os benéficos do exercício físico, que são muitos, muita coisa sendo estudada e descoberta… mas tem também um desafio pra pensar em como democratizar esses benefícios no meio de tanta história, de tanta trajetória, de tanta desigualdade e de tanta diferença.

SAMUEL: E no meio dessa pressão toda trazida pela pandemia de Covid-19, eu resolvi perguntar pros dois qual foi a maior pressão da vida deles. E aí, claro, as respostas foram bem de pesquisador mesmo.

SORAYA: No nível profissional eu acho que escrever a tese de doutorado foi uma das grandes pressões, né. Não só a questão do tempo, isso não era exatamente o meu problema, mas era de produzir alguma coisa que estivesse à altura das expectativas que a minha orientadora tinha em relação a mim, que o programa de pós-graduação onde eu estava também tinha, que o meu financiador, né, assim, o CNPq que custeava a minha bolsa, o contribuinte que pagava tudo isso, enfim, eu me sentia um pouco… era forte essa pressão, que eu mesma botava em mim, né, assim, de uma responsabilização da produção científica.

BRUNO: Foi o momento em que eu terminei minha faculdade, em Londrina, e fui pra São Paulo na loucura assim, sem nada certo, fui pra São Paulo pra tentar fazer o mestrado e o doutorado, enfim, minha pós-graduação. Esse foi o maior momento de tensão, principalmente porque não tinha grana, não tinha direito lugar pra ficar. Caí de paraquedas em São Paulo [RISOS]

SAMUEL: E a sua pressão arterial, como é que tá?

BRUNO: [RISOS] Minha pressão tá em ordem, embora eu tenha me sentido um pouco pressionado né, nesses últimos… em tempos de pandemia, mas… tá em ordem, tá em ordem sim. Doze por oito!

SAMUEL: O episódio fica por aqui. O Corpo é uma produção do podcast Oxigênio, do Labjor/Unicamp, e faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é feito na Faculdade de Educação Física e tem financiamento da FAPESP.

SAMUEL: A idealização, produção, entrevistas, roteiro e edição desse programa foram feitas por mim, Samuel Ribeiro. O projeto é coordenado pelo professor Bruno Rodrigues da FEF e pela professora Marina Gomes do Labjor. E quem coordena o Oxigênio é a professora Simone Palone, também do Labjor.

SAMUEL: E se você gostou do episódio, dá um alô pra gente nas redes sociais. A gente tá no Facebook, Instagram e Twitter, é só procurar por Corpo Podcast.

SAMUEL: Ah, deixo aqui o meu agradecimento especial a todo mundo que compartilhou suas histórias de hipertensão comigo. A Ana Carolina, a Ângela, a Arlete, a Cláudia, o Diego, a Edinalva, a Olívia, o Oscar, a Pâmela e a Selma. Até a próxima!

Músicas

“Balti” by K2.
“Base Camp” by K2.
“Our Fingers Cold” by K2.
Blue Dot Sessions (https://www.sessions.blue).

Veja também

#174 – Um esqueleto incomoda muita gente

#174 – Um esqueleto incomoda muita gente

Novas descobertas sobre evolução humana sempre ganham as notícias e circulam rapidamente. Mas o processo de aceitação de novas evidências entre os cientistas pode demorar muito. Neste episódio, Pedro Belo e Mayra Trinca falam sobre paleoantropologia, área que pesquisa a evolução humana, e mostram porque ela é cheia de controvérsias e disputas.

# 171 – Adolescência – ep. 2

# 171 – Adolescência – ep. 2

Alerta de gatilho: Este episódio da série “Adolescência” trata de temas difíceis, como depressão, ansiedade, impulsividade e sentimentos ligados às relações familiares, entre eles conflitos entre pais e filhos e também como lidar com essas questões. Ao falar destes...

#169 – Depois que o fogo apaga – Parte 2

#169 – Depois que o fogo apaga – Parte 2

Seguimos falando sobre o processo de recuperação de museus e acervos que pegaram fogo no Brasil. Quais são as etapas até a reabertura? Quem participa desse processo? Ouça como está sendo o trabalho no laboratório da Unesp em Rio Claro, o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

#168 – Depois que o fogo apaga 

#168 – Depois que o fogo apaga 

Incêndios como os que ocorreram no Laboratório de Biociências da Unesp de Rio Claro, no Museu Nacional e no Museu da Língua Portuguesa causam a perda de material valioso de pesquisa e de espaços de trabalho e convivência; e como é o processo de reconstituição dos lugares e dos acervos?

#167 – Ciência estampada no peito

#167 – Ciência estampada no peito

Neste episódio falamos sobre camisetas com temática de ciência, um estilo que vem ganhando força com mais oferta de produtos e porque as pessoas estão cada vez mais preocupadas em expor sua admiração pela divulgação científica. Que tal vestir essa ideia?