Este é o primeiro episódio da série QUARENTENA, um podcast criado pela Carolina Sotério e pela Raquel Torres, para tratar de questões relacionadas ao período de isolamento social imposto à população brasileira, assim como em outras nações, devido à Covid-19. A ideia é mostrar como as pessoas estão lidando com a quarentena, com os cuidados para evitar contágio e disseminação da doença, com os medos, as incertezas e possibilidades de ocupar o tempo. Também vão mostrar como a tecnologia está auxiliando nesse período e o que os cientistas estão trazendo de descobertas e soluções, e outros assuntos relevantes para atravessarmos esse período estranho que estamos vivendo. A cada quinze dias a Carol e a Raquel vão trazer um novo episódio da série, que é parte do Trabalho de Conclusão do Curso das duas alunas no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor.
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Segue a transcrição completa do programa.
Como diria Raul Seixas, “Foi assim no dia em que todas as pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa”. A partir das recomendações da Organização Mundial da Saúde e órgãos competentes sobre a pandemia do novo Coronavírus, o isolamento social foi decretado. Todos foram orientados a permanecer em quarentena e adaptar suas rotinas ao home office. Assim, instaurou-se a QUARENTENA.
No entanto, migrar para um mundo à distância exige uma série de medidas as quais não pudemos nos preparar anteriormente, desde questões materiais até questões que envolvem nossa própria mentalidade. É uma essa discussão que o Oxigênio traz à tona: Como está a real situação das famílias com seus trabalhos? E quem não possui ferramentas digitais para se adaptar à educação e/ou trabalho à distância? Estamos incluindo ou excluindo digitalmente as pessoas?
Colaboram conosco neste episódio: Carolina Marangoni (estudante de arquitetura do IAU/USP que estava em intercâmbio na Itália durante a pandemia de Coronavírus), Nicole Flores (servidora do IBGE/MG, mãe e estudante da modalidade EaD), Bernardo Sorj (professor aposentado da UFRJ, sociólogo e autor de trabalhos sobre o impacto social das tecnologias) e Christian Dunker (professor da USP e psicanalista).
O programa compõe a série QUARENTENA, idealizada e produzida por Carolina Sotério e Raquel Torres, sob orientação da professora Simone Pallone de Figueiredo, do Labjor/Unicamp. A narração é de Carolina Sotério. Este episódio integra a força-tarefa do LAB-19 na cobertura sobre o novo Coronavírus.
Carol: Ainda ontem as ruas estavam cheias. Eram carros, ciclistas, pedestres e o mundo todo a milhão. De uma hora pra outra, acordamos num planeta vazio. Algo muito menor que nós mesmos foi ganhando forças e deu origem a um problema de ordem mundial. Reuniões canceladas, prateleiras vazias, indo de um extremo ao outro na questão da empatia.
Agora somos todos internautas vivendo dentro de um telão. Muitos de nós sendo parte das estatísticas na televisão. Em meio a tantas questões, tudo ficou à distância. A COVID-19 trancou a porta de nossas casas e nos colocou em um momento de profunda reflexão. A Internet, que rompeu tantas fronteiras, hoje reforça a nossa distância. Como adaptar as nossas rotinas ao meio digital? Como lidar com a nossa mente nesse isolamento social às pressas e transição para a web? E como fica quem não tem acesso à informação?
Carol: Você está ouvindo o QUARENTENA. Eu sou a Carol e no episódio de hoje falaremos desse “Mundo à distância”.
Carol: Como diria Raul Seixas, “Foi assim/No dia em que todas as pessoas/Do planeta inteiro/Resolveram que ninguém ia sair de casa/ (…)/E o aluno não saiu para estudar/Pois sabia que o professor também não tava lá”
De acordo com os últimos dados do INEP, o Brasil possui mais de 8 milhões e meio de estudantes matriculados em cursos de ensino superior. Uma parcela deles em situação de intercâmbio, ou seja, realizando estágios em universidades, empresas e institutos ao redor do mundo.
Carol: Quem entende bastante dessa situação é a Carolina, estudante de arquitetura que estava na Itália, um dos epicentros da pandemia do novo coronavírus, quando tudo começou…
Carolina: Tudo começou no dia 22 de fevereiro, que foi um sábado. E, assim, pra gente ter noção de como as coisas estavam normais, na sexta-feira eu tinha ido fazer uma viagem à Bergamo, que é uma outra cidade ali perto de Milão e que hoje está numa situação muito crítica. Então, aí eu lembro que a próxima semana foi um pouco mais tensa nesse sentido de que as coisas começaram a parecer mais sérias e que a gente via muitos guardas e muitas viaturas na rua mesmo e realmente controlando esse “não estar em casa da população”.
Carol: Com o passar do tempo, as restrições foram ficando cada vez mais e mais rigorosas no mundo inteiro. Mas a Itália marcou as redes sociais pelas imagens que refletiam a vontade de estar junto em meio a falta de exatidão sobre o dia que viria pela frente.
Carolina: Foi uma situação muito complicada que sentia um clima de tensão e de medo e de apreensão e de tristeza, sabe. E a gente olhando o pessoal na sacada. Então, às vezes, uma criança brincando na sacada sozinha, ou alguém conversando no telefone na sacada… A gente presenciou episódios dos italianos se juntarem nas sacadas em algum momento do dia e aplaudir o sistema de saúde ou, por exemplo, começar a cantar nas sacadas. Então que era uma forma de espantar um pouco esse medo né, e essa preocupação. Foram momentos muito emocionantes.
Carol: Com o problema crescendo ao alcance dos olhos, as universidades tiveram que encontrar uma forma de dar continuidade às suas atividades em meio às medidas de isolamento…
Carolina: E aí quando a gente recebeu o e-mail do Politécnico de Milão – acho que lá pelo dia 15/16 de março – falando que, por conta da situação atual, que muitos alunos estrangeiros também já tinham voltado pros seus países, o reitor e a comunidade acharam melhor manter as aulas a distância né, online por todo o semestre. Então, mais ou menos a cada algumas semanas alguns cursos iam entrando nessa modalidade.
Carol: Pra Carolina, isso tudo foi novidade e uma grande adaptação. Mas pra Nicole, que cursa Ciências Contábeis na modalidade EaD, essa já uma realidade de longa data. As facilidades e dificuldades de conciliar estudos, maternidade e, agora, isolamento social, são comentadas por ela.
Nicole: A gente brinca que EaD significa “Estresse à Distância”…
Agora, nesse momento de quarentena, eu acredito que o que menos sofreu impacto foi o meu curso a distância, porque não mudou nada basicamente né, a gente só tá continuando a grade conforme estava planejado… O que mudou, na verdade, foi que a gente ia realizar a avaliação presencialmente, mas agora a gente vai realizar ela virtualmente, pelo menos a primeira avaliação. Só que tem essa diferença com relação ao sistema da faculdade a distância e os cursos presenciais. É que o sistema a distância já está preparado .
Carol: Sem dúvidas, a gente percebeu…
Nicole: Tanto que eu estou vendo muitos colegas – que fazem faculdade presencialmente – estão tendo muitas dificuldades. Tanto os professores em não saber lidar com plataformas a distância, ou se estão acostumados a gravar vídeo, talvez até roteirizar uma aula mesmo, né. E os alunos não estão acostumados, têm muitos cursos nem existem a distância. Se você for ver, por exemplo, o curso de direito né. Não existe curso de direito a distância no Brasil. E algumas faculdades mesmo não têm nem plataformas pra poder preparar de uma hora pra outra esse ambiente virtual pros alunos. E eu acho que seria interessante, a partir desse momento que a gente tá vivendo, quem sabe as faculdades se prepararem mais pra poder conseguir oferecer conteúdos virtuais pros alunos que eu acho que, na medida do possível. E eu não vejo, assim, problema em as faculdades, aos poucos, irem se adequando mesmo. E também irem se adequando à realidade dos alunos. Hoje em dia têm muitos alunos fazendo uma segunda graduação ou a terceira graduação ou uma pós-graduação. E eu acho que você usar diversas ferramentas abre mais as portas das faculdades pra diversas pessoas conseguirem uma formação melhor, né. Assim, as ferramentas que a gente tem hoje em dia ajudam muito, e-mails, inclusive grupos de whatsapp, a gente interage muito por grupos do whatsapp pra tentar diminuir essa distância.
Carol: Mas será que estamos todos preparados pra lidar com as plataformas digitais assim, tão de repente? No Brasil, estima-se que cerca de 80% da população possua acesso à internet, de acordo com dados do IBGE. Afinal, falamos agora de uma inclusão ou exclusão digital? Sobre isso, Bernardo Sorj, sociólogo, professor aposentado da UFRJ e já consagrado “homem das ideias”, faz alguns apontamentos a respeito da EaD.
Sorj: O conceito de inclusão digital como sabemos é muito amplo, né. Se estamos falando de pessoas que tem acesso a algum tipo de instrumento de comunicação digital, e hoje iphones são microcomputadores na realidade, o nível de inclusão digital, desse ponto de vista, é muito grande, muito amplo. O problema é que, como sabemos, inclusão digital não se refere somente a ter acesso à algum tipo de instrumento de comunicação eletrônico. Na verdade estamos falando da capacidade e na possibilidade de utilização desse instrumento como uma ferramenta de educação seja de trabalho. E, obviamente, aqui o cenário muda muito, pois depende muito obviamente do nível educacional, que como sabemos, no Brasil, ainda deixa muito a desejar, e depende do tipo de trabalho. Até, de fato, para certos trabalhos autônomos. Então, embora seja um instrumento importante no dia normal das pessoas – especialmente do setor informal – nesse contexto ele resolve pouco.
A pergunta que se coloca é: vai ajudar essa ferramentas eletrônicas? Em boa medida sim, mas fundamentalmente para setores de serviços qualificados, para pessoas que normalmente já trabalham em frente ao computador, sendo essa atividade facilmente – ou com certa dificuldade – mas de certa forma transferida para o home office.
Carol: E será que todos nós conseguimos nos conectar?
Nicole: Ninguém perguntou pros funcionários se todo mundo tinha computador em casa, se todo mundo tinha acesso à Internet em casa. Então, assim, todo mundo parte da ideia de que todo mundo já tenha essas coisas. Eu acho que não está sendo flexível. Mas eu notei que houve uma compreensão por parte dos professores que prorrogaram basicamente todas as atividades, eles estão entendendo que os alunos estão tendo que trabalhar em casa. E sinto que há essa compreensão porque também há a nossa compreensão dos alunos em saber que o professor está trabalhando. Por mais que seja um professor que trabalhava à distância, ele contava com o apoio presencial né, um apoio presencial nos polos da faculdade a distância e agora tá todo mundo em casa. Então pra ele também muda, né. Se ele precisa de um apoio de informática, o suporte da informática não está mais lá presencialmente, né. Tá todo mundo em casa.
Carol: Migrar para um mundo a distância mudou os nossos dias. Estamos em um outro contexto e nos adaptarmos a essa nova realidade é um esforço muito além do home office. O isolamento não começa e nem termina quando fechamos as portas de nossas casas.
Nicole: Olha… eu acho que, não só pra mim, mas pra todo mundo tem sido um momento muito conturbado. Mudou, assim, totalmente minha rotina, eu acho até difícil falar que eu tenho uma rotina, né. Cada dia está sendo um dia diferente. Conforme eu tenho pensado, né: tentar viver um dia de cada vez e conseguir realizar minhas tarefas na medida do possível, né. Com relação à minha rotina mesmo, eu estava acostumada a acordar, deixar minha filha na escola de manhã, ir para o trabalho. Assim, de uma hora pra outra a gente até se vê sem rumo mesmo. E tentar manter mesmo porque eu acho que eu, dentro da minha casa, já me sinto muito estressada, mentalmente cansada, mesmo. Pra mim tem sido um momento bem apreensivo né, porque eu acho que a nossa saúde envolve, muito além da saúde física, nesse momento é uma saúde mental, que a gente tem que manter mesmo, né.
Carol: Sem dúvidas, esse isolamento social e mudança repentina de nossas rotinas pode afetar o psicológico humano. Sobre isso, o psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, tem algo a dizer:
Dunker: O isolamento, ainda mais o isolamento que acontece de uma forma assim tão abrupta… Interessante que nós sabíamos que a quarentena iria chegar, que essa é uma medida sanitária usada por vários países, mas tem certas coisas que a gente só acredita quando realmente acontece. Isso dá a medida do traumático, daquilo que é novo, com relação qual a gente não tem muita experiência para comparação. Isso tocou, afetou nossa rotina – nosso conjunto diário de pré-decisões – que é mais ou menos assim que a gente pode definir uma rotina. Não tenho que pensar: escovo os dentes, entro no carro, chego trabalho, no trabalho tem ali as demandas que são locais. É como se tivesse uma armadura, né? Um conjunto de pré-decisões que já foram tomadas por você. Então, levantar e organizar um novo cotidiano dará um trabalho adicional, um trabalho grande. Muitas pessoas estão exaustas nessas primeiras semanas de quarentena, porque, sem se dar conta, estão tendo que levar adiante as demandas laborais e de estudo e, ao mesmo tempo, reerguer seu cotidiano, e isso implica decisões – como as coisas vão ser feitas, ponderações, experimentações, recuos, assistematicidades – uma série de dificuldades que eu acho que são nebulosas ou invisíveis.
Carol: Na medida do possível, migramos para o virtual. Na música de Raul Seixas, empregados, patrões, guardas, padres e fiéis interrompiam suas rotinas pois não havia mais ninguém nas ruas. Nesse momento, vivemos algo similar e lidamos com a essência de muitos serviços.
O movimento artístico-cultural, mais do que nunca, tem estado conosco nas mídias digitais. São indústrias do audiovisual liberando conteúdo para nossos computadores e televisões. São artistas independentes se apresentando nos telões. Os serviços de entrega representaram um reforço, trazendo até a nossa porta produtos do lado de fora. E desse outro lado estão profissionais que ajudam no combate à doença e mantêm o funcionamento das coisas. A famosa linha de frente está desde o gari que recolhe o lixo ao cientista que insistentemente estuda uma vacina. Mas como será quando pudermos retornar às ruas normalmente? Quem seremos depois desse episódio? Como se completa a canção de Raul Seixas quando a Terra voltar a girar?
Dunker: Interessante como a nossa convivência com as telas já está se aprofundando muito, trazendo novos malefícios que a gente não sentia tão fortemente, quando isso era uma parte menor do nosso cotidiano. A redução, especialmente de telas muito pequenas, o celular, a temporalidade que a gente tem nesse tipo de troca, linguística, a temporalidade mais acelerada, a impessoalidade, que advém da relativa perda da corporeidade nessa comunicação. Tudo isso são elementos um pouco iatrogênicos desse método de conversação. Pelo que trazem uma redução da experiência, uma perda de aspectos importantes da experiência, inclusive os intervalos. Na linguagem digital a gente vai aprendendo a passar de uma coisa pra outra, muito rapidamente – em um clique, fecha a tela, abre outra, está no zoom, está no google teams, Skype – e vai passando de uma coisa pra outra, sem aquele intervalo tão benéfico para a restauração psíquica. Acho que precisamos, depois dessa experiência, reinventar, moderar talvez o nosso uso de telas, entender que não basta passar de um universo para outro, que isso gera uma expectativa de aumento de produtividade que não se realizará. Nossa produtividade cai quando você está num ambiente de tela – seja porque você perde a conexão, seja porque você perde informação, seja porque você perde detalhes de informação, seja porque você se cansa mais. Pode escolher um motivo, mas a vida não é a mesma quando a gente está especialmente em largas jornadas de trabalho pela via da linguagem digital.
Dunker: Há muitas coisas interessantes pra aprender nessa situação. É possível que ela tire de nós o melhor e o pior; ela pode colocar certos afetos, como o desamparo e reposicionar certos discursos – como a relação entre populismo e a ação coordenada à fins. Penso que algum grupo vai sair mais ressentido e mais humilhado, vai sair se sentido mais abandonado, talvez percebendo certas realidades nos contratos sociais que nós propagávamos antes; e outra parte vai entender que esse é o momento de repactualização; que é possível inventar coisas novas, que é possível inventar novos tratos e, inclusive, que é possível se experimentar diferente. Dentro de casa, com a solidão, com a solitude, nessa nova experiência.
Carol: O que precisamos ter em mente é que tudo vai passar. O mar bravo vai acalmar e o dia vai nascer de novo. O caos vai se tranquilizar na medida do possível e a gente vai ser diferente. Que, de algum jeito, possamos aprender com o agora pra não errar daqui pra frente. Se cada um fizer sua parte, podemos projetar um amanhã melhor do que o hoje. Precisamos pensar coletivamente, e uma rede de apoio agora pode ser crucial pra muita gente. É necessário empatia e compreensão, na medida em que for possível.
Apesar da distância física, espero que a mensagem chegue até você nessa grande rede digital. Estamos juntos, mesmo cada um na sua casa. Nesse mundo à distância, em um abraço virtual.
Carol: Eu sou a Carol e esse foi o QUARENTENA.
Fontes:
BRASIL – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação do Ensino Superior 2018 Notas Estatísticas.
BRASIL – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf. Acesso em: 30 Mar. 2020.
Músicas:
Bella Ciao Cover: https://www.youtube.com/watch?v=teLW4ebo5oA
Cityscape at Bus Stop: https://freesound.org/people/Leossom/sounds/169634/
Ghost Byzantine: https://www.sessions.blue/?fwp_energy=2&fwp_sort=date_desc
Secret Pocketbook: https://www.sessions.blue/?fwp_search=secret&fwp_energy=2&fwp_sort=date_desc
Louver: https://www.sessions.blue/?fwp_search=louver&fwp_energy=2&fwp_sort=date_desc
Our only lark: https://www.sessions.blue/?fwp_search=our%20only%20lark&fwp_energy=2&fwp_sort=date_desc
Cases to rest: https://www.sessions.blue/?fwp_search=case&fwp_sort=date_desc