Quanto vale para a construção de uma nação encontrar perspectivas para desenvolver uma produção científica e tecnológica perene? Em tempos sombrios, de escassez e ameaça ao financiamento público para a pesquisa, preparamos um episódio para contar a história do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. Fundada em 1951 com a justificativa de defender a soberania nacional, a agência é hoje uma das principais financiadoras da pesquisa científica brasileira.
Para entender a importância do CNPq para a política científica brasileira e para pesquisadores e estudantes das mais diversas áreas, conversamos com a professora Lea Velho, do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Ela trabalhou por mais de 10 anos no CNPq e resgata a importância histórica da agência, avaliando também a sua atual crise financeira. Também conversamos sobre a dimensão do apoio dado pelo CNPq a pesquisadores com a Sabine Righetti, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, que em parceria com Estevão Gamba, da Unifesp analisaram quantos artigos científicos publicados na Web of Science.
Conversamos também com o Eduardo Flores, professor do setor de virologia da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Santa Maria, que teve apoio do CNPq para a instalação de seu laboratório, para pesquisas e para a sua formação e de muitos de seus alunos; e a Olívia Moraes Ruberti, doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Biologia Funcional e Molecular, do Instituto de Biologia da Unicamp, que teme que sua pesquisa seja interrompida, caso o CNPq suspenda os pagamentos das bolsas.
Acompanhe o porquê do CNPq ter se tornado referência histórica e um bom retrato de como o Brasil atual vem lidando com a ciência. O episódio foi produzido e apresentado por Natália Flores e Alisson Almeida. A produção também teve a colaboração de Samuel Ribeiro, Paula Gomes, Rafael Martins Revadam e Camila Cunha e coordenação da Simone Pallone. Os responsáveis pelos trabalhos técnicos são Octávio Augusto, da Rádio Unicamp, e Gustavo Campos. Na seleção de trilhas Caroline Maia e Ana Paula Zaguetto e na divulgação Helena Ansani.
Abaixo, a transcrição do episódio.
Allison Almeida: A ciência brasileira tem estado na pauta nos jornais nos últimos meses.
Natália Flores: O tema vem mobilizando a comunidade acadêmica desde que o atual governo mostrou a clara intenção de diminuir substancialmente os investimentos públicos em pesquisas científicas, e nas universidades, colocando em risco a já frágil política científica nacional.
Natália: Você, ouvinte, já pensou quanto vale a ciência para um país?
Allison: Para a Alemanha vale bastante. Em junho deste ano, o governo de Angela Merkel anunciou um investimento da ordem de 160 bilhões de euros para universidades e centros de pesquisa. O valor será executado na próxima década e será recorde, segundo o jornal Deustche Welle.
Natália: E você consegue estimar o valor da formação de uma cultura educacional científica e tecnológica para superação da pobreza?
Allison: Novamente vamos dar um exemplo do exterior. Investindo pesadamente em educação, criando uma política nacional de desenvolvimento científico e tecnológico e qualificando sua mão de obra, a partir de meados da década de 70 a Coreia do Sul superou a pobreza se tornando um dos principais casos de organização científica e tecnológica no mundo. Os sul-coreanos elevaram consideravelmente seus índices de desenvolvimento que até então eram semelhantes aos do Brasil.
Natália: E quanto vale a ciência para o Brasil?
Allison: Vamos responder essa questão contando para os nossos ouvintes, a história de um grande protagonista da ciência brasileira: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. Ele é um dos principais órgãos de apoio e aperfeiçoamento da pesquisa científica nacional. Por isso, é bem conhecido do pessoal que trabalha em laboratórios de pesquisa.
Natália: Mas nem todos os brasileiros sabem qual é o papel dessa importante agência e o quanto a sua atuação vem transformando a vida de cada um de nós que vivemos no Brasil. Sua criação em 1951 e todo o investimento feito até hoje, refletem o que um dia se pensou sobre o valor, sobre a relevância da ciência para o país.
Allison: Eu sou Allison Almeida.
Natália: Eu sou Natália Flores.
Allison: E vamos mostrar pra vocês como a criação dessa agência de fomento transformou a agenda da pesquisa científica no Brasil e o que está em jogo para a ciência brasileira com a falta de pagamento das bolsas em vigência, suspensão de bolsas e de recursos para projetos.
[Ildeu Castro Moreira] … é fundamental que o Congresso Nacional coloque isso como uma questão prioritária para o país. É uma questão de sobrevivência e soberania nacional. Porque o desenvolvimento sustentável, avanço do país, a saída de crise, se não tiver desenvolvimento científico-tecnológico é fake news. [1:13 – 1:34] agora para isso é preciso ter política pública adequada. Feita aqui. E os governos também, evidentemente, colocar o recurso orçamentário adequado. Então a nossa briga aqui hoje, fundamentalmente, um aspecto fundamental dela é reverter essa redução orçamentária crítica. Aqui se falou do CNPq, e está ali o Azevedo [João Luiz Filgueiras de Azevedo, presidente do CNPq] sabe o drama que estamos vivendo, o CNPq é uma casa fundamental para a ciência brasileira…
Allison: Esse foi o Ildeu Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, em audiência na Câmara dos Deputados em março deste ano. A comissão de cientistas que se reuniu na Câmara naquele dia queria um posicionamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, em relação à situação de cortes e contingenciamentos. O próprio Ministério teve 42% do seu orçamento contingenciado em 2019, mas já vem sofrendo cortes orçamentários desde 2015. De março pra cá, a situação se agravou. Pesquisadores de todo o país começam a sentir os efeitos dos cortes das verbas nos laboratórios de pesquisa, nos programas de pós-graduação e temem o caos com a falta de pagamentos das bolsas a partir de outubro. Ao todo 11 mil projetos e 85 mil bolsas de pesquisa financiados pelo CNPq estão em risco. Isso só pensando no cenário de 2019. Pra quem acompanha a evolução da ciência brasileira, fica a pergunta: estamos regredindo?
Natália: Muita gente diz que nos últimos 5 anos está acontecendo um verdadeiro desmonte da ciência brasileira. E pra entender a gravidade da situação, precisamos voltar um pouco no passado, ver como a pesquisa científica evoluiu e se consolidou no Brasil. Quem financia os projetos de pesquisa e o trabalho de milhares de pós-graduandos nas universidades?
Allison: Se hoje podemos falar de uma pesquisa científica pulsante e inovadora no país em áreas da saúde, da agricultura, da computação e tantas outras é porque conseguimos conquistar e manter uma agência para fomentar a pesquisa nacional. Ou seja, para receber e destinar recursos para a produção de ciência e tecnologia.
Natália: E grande parte dessa pesquisa foi desenvolvida nas universidades públicas do país com recursos administrados pelo CNPq. Conversamos com a professora Lea Velho, do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, que trabalhou no corpo técnico do CNPq por mais de dez anos. Ela dá um exemplo de como que o setor agrícola brasileiro só conseguiu atingir destaque mundial por causa da ciência e do apoio financeiro recebido da agência.
Lea Velho: Se você disser o seguinte, o PIB brasileiro, as principais commodities brasileiras elas só produzem o que produzem e trazem os benefícios pro país que trazem porque elas têm um enorme conhecimento acumulado, a partir da formação das pessoas fora. O nível de produtividade que nós conseguimos em açúcar e álcool é em grande parte devido ao melhoramento genético. Que foi feito aqui. Isso é uma coisa que eu acompanhei. A universidade foi chave, foi absolutamente chave e a Embrapa nunca fez nada de cana de açúcar. O café, boa parte nós devemos ao IAC, e a outras universidades, a ESALQ, etc. E a soja? A história da Soja? A soja só tem a produtividade que tem – e é a única cultura brasileira que se compara à produtividade da soja americana (é a única) – não existe outra cultura que o Brasil tenha o nível de produtividade que a cultura tem nos Estados Unidos. Isso foi graças ao melhoramento feito aqui. Pra ser plantada no Brasil central, ela teve que ser melhorada. Ela começou na Universidade Federal de Viçosa, não foi a Embrapa, a Embrapa nem existia.
Allison: A pesquisa agrícola brasileira dependeu da criação de uma rede de instituições científicas. As universidades têm um papel importante nesta rede, como comenta a Lea.
Lea Velho: É importante dizer pra essas pessoas que sabem a importância do agro, que sem muita pesquisa nesse país, e essa pesquisa é importante que seja dita, não é só Embrapa, até porque quem trabalha na Embrapa foi formado nas universidades. E hoje a maioria dos pesquisadores da Embrapa são formados aqui. Então nós estamos renovando essa força da pesquisa agrícola no Brasil com pessoal formado nas universidades, que vem de uma tradição de pesquisa, do Instituto Agronômico, do Butantã. Essas coisas não brotam, sabe? A gente é boa em pesquisa agrícola porque a gente foi boa em biologia porque essas pessoas foram lá e fundaram a Esalq. São coisas que andam junto. Isso leva tempo, isso leva amadurecimento.
Allison: Ou seja, as universidades têm sido historicamente no Brasil, o lugar de formação de recursos humanos, e onde mais se produz ciência no país. Segundo estudo de 2018, realizado pelo Clarivate Analytics, 99% das pesquisas nacionais são feitas nas universidades públicas. E grande parte desses projetos de pesquisa recebem apoio do CNPq.
Natália: E qual a dimensão desse apoio em termos numéricos?
Allison: Olha, os pesquisadores Sabine Righetti, da Unicamp e Estevão Gamba, da Unifesp, fizeram um levantamento dos artigos científicos da Web of Science de pesquisas financiadas pelo CNPq e divulgaram os dados em um artigo sobre o tema no jornal Folha de São Paulo. A Sabine nos contou como foi feito esse levantamento.
Sabine Righetti: O que que a gente fez? A gente foi a essa base, Web of Science que é a mais importante que existe hoje, né, que indexa periódicos científicos e a gente viu de 2013 a 2017, cinco anos portanto, que é um período que a metodologia científica considera que é um período bom pra fazer uma análise, porque não tem oscilações de produção, cinco anos, a gente viu nesses cinco anos quantos artigos brasileiros declaravam que tinham apoio de alguma fundação, era mais ou menos metade, e dos que declaravam que tinham apoio, quais tinham apoio do CNPq, então eram 6 de cada 10. Então quem disse que tinha alguma forma de apoio, 6 em cada 10 tem apoio do CNPq.
Allison: Um terço da pesquisa nacional recebe algum tipo de financiamento do CNPq. Segundo a Sabine, esse número pode ser ainda maior, já que é o pesquisador quem faz essa declaração de fomento na hora de submeter seu artigo.
Sabine Righetti: Pode ser maior, a gente acha que é maior, principalmente porque normalmente quando um pesquisador pensa em apoio, ele pode pensar se aquela pesquisa recebeu alguma verba pra comprar equipamento. Muitos pesquisadores esquecem das bolsas, então por exemplo, pesquisadores altamente produtivos no Brasil recebem uma bolsa chamada produtividade, que falando bem didaticamente, é como se fosse um extra no salário porque ele produz bastante ciência. E aí você vai subindo no nível de produtividade que você tem né. São vários níveis. Então muitas vezes o cientista que é um bolsista produtividade do CNPq esquece que ele é produtividade. Então muitas vezes ele esquece de falar que ele tem um aporte do CNPq no estudo dele. Então a gente acha que esse número é bem maior do que o 6 em cada 10.
Allison: Como começou a história do CNPq e como ele alcançou essa capilaridade, a ponto de financiar pesquisas de várias áreas do conhecimento de todo o Brasil?
Natália: A agência foi criada em 1951, seguindo o exemplo da França e dos Estados Unidos, que também criaram seus conselhos de pesquisa naquela época. A demanda por uma agência de fomento à pesquisa partiu da necessidade de defender a soberania nacional. Não é por acaso que a proposta de criação do CNPq foi feita por um militar. Em 1946, o Almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, representante do Brasil na Comissão de Energia Atômica do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) defendeu publicamente a criação de um Conselho Nacional de Pesquisas. Para isso, seria preciso articular a comunidade acadêmica e o governo brasileiro. O que aconteceu três anos depois, no governo do Eurico Gaspar Dutra.
Allison: A largada foi dada após a Conferência da ONU em 1946. No entanto, se quisermos ser realmente fiéis à história precisamos lembrar que o Conselho nasceu de uma demanda da comunidade acadêmica brasileira. Reza a lenda que o biólogo e cientista Carlos Chagas foi para Paris em 1938 conhecer o Conselho Nacional de Pesquisas Francês. Na volta, ele apresentou uma proposta de criação de um conselho parecido para o Governo Vargas. Ela foi engavetada e só viria a ganhar corpo e ser implementada após algumas tentativas na década de 50.
Natália: A professora Lea Velho comenta que o CNPq foi criado numa época em que a ciência era vista como um motor para o progresso.
Lea Velho: “Então você têm, assim uma declaração de um militar por exemplo daquele super importante que é o Vannevar Bush, que dizia que sem a ciência não há progresso, que sem a ciência não há nenhuma condição de se ter desenvolvimento e bem-estar social. E na esteira desse boom pós segunda Guerra foram criados vários conselhos de pesquisa para financiar a pesquisa, principalmente a pesquisa científica pública. No Brasil, a pesquisa era produto do que as universidades conseguiam fazer ou de financiamentos externos que elas conseguiam, ou com a fundação Ford ou com a Fundação Rockefeller ou a OEA que formava recursos humanos no exterior”
Allison: A criação do CNPq foi a pedra fundamental para estruturar o sistema nacional de ciência e tecnologia. Naquela época, se acreditava que a ciência deveria perpassar o planejamento social e político do Brasil. Com o CNPq, o Estado Brasileiro começou a investir na ciência nacional. Ele foi fundado antes do Ministério da Ciência e Tecnologia, que foi criado só em 1985.
Natália: O conselho tinha autonomia técnico-científica, administrativa e financeira e era diretamente vinculado ao Presidente da República. Pelo menos até 1970. Em 1974, o CNPq passou a fazer parte da Secretaria do Planejamento. E, em 1985, ele foi finalmente vinculado ao MCT.
Allison: Lea Velho ressaltou a valorização que o CNPq sempre deu ao seu corpo técnico, o que fez com que o órgão conseguisse ser dinâmico. Os técnicos são incentivados a fazer especialização, mestrado e até doutorado, o que tem sido muito importante, uma vez que eles lidam diretamente com a comunidade científica.
Lea Velho: Se tem uma cultura institucional no CNPq, que é uma cultura institucional que veio sendo construída desde 1951. É uma cultura institucional de respeito à produção de conhecimento, de estudos sobre formas de produzir conhecimento, de debates, de críticas, eles fazem palestras, eles chamam pessoas. Isso foi com o tempo sendo a cara do CNPq. As pessoas gostam de trabalhar lá, têm um respeito pela comunidade, entende o que a comunidade faz, e não são um bando de burocratas. Essa cultura institucional do CNPq é muito rica, isso é uma coisa que não pode ser perdida.
Natália: Para a Lea, o CNPq é um órgão dinâmico que foi se adaptando às demandas da comunidade científica e da sociedade brasileira ao longo das suas décadas de existência. A comunidade acadêmica cresceu bastante desde 1950 e fez com que a agência de fomento tivesse que reformular seus instrumentos e formas de atuar. A Lea fala um pouco sobre isso.
Lea Velho: O CNPq é uma instituição muito flexível, ela se mostrou nesse período como uma instituição muito flexível, ela foi se adaptando no modo de funcionar, nos seus instrumentos, na maneira como ela faz as chamadas e editais, ela foi incorporando conhecimento de como se faz a gestão de ciência e tecnologia. Nesse período, ela aprendeu a trabalhar coletivamente com as instituições. Então, por exemplo, iniciação científica, há muito tempo saiu do CNPq. Cada universidade tem a sua maneira de alocar esses recursos. Ela foi construindo parcerias com as instituições e mudando a sua maneira de trabalhar.
Allison: Vamos falar um pouco de números para termos uma dimensão do que foi esse crescimento da comunidade acadêmica no Brasil? Em 1970, o Brasil tinha 57 Programas de Doutorado nas Universidades. Em 1985, quinze anos depois, já eram 300 Programas de Doutorado e 800 de mestrado. 5 mil doutores e mestres eram formados por ano.
Natália: Hoje, o número é mais de três vezes maior. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Educação, em 2017 tínhamos 4.345 programas de pós-graduação em 447 Instituições de Ensino Superior. Saltamos de 5 para 18 mil doutores e 43 mil mestres formados em 2015, segundo estatísticas do CNPq. A formação desse pessoal seria inviável sem o apoio das bolsas do CNPq e, depois, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior, a Capes, do Ministério da Educação, agências que trabalham em sintonia.
Allison: Os editais do CNPq financiam projetos em laboratórios de pesquisa de várias universidades. Fomos conversar com o professor e pesquisador Eduardo Flores, do Setor de Virologia da Universidade Federal de Santa Maria para entender a importância do CNPq para esses laboratórios.
Eduardo Flores: O nosso laboratório, do setor de virologia da UFSM, é hoje uma referência em virologia animal na América Latina, e provavelmente um dos laboratórios mais renomados nessa área nas Américas, pela excelência em pesquisa e formação de recursos humanos. Grande parte da infraestrutura do laboratório foi montada graças a recursos do CNPq, por meio de três PRONEX – Programa de Auxílios a Grupos de Excelência, desde 1998. A infraestrutura do laboratório e o funcionamento do laboratório em si também são mantidos graças a recursos do CNPq, principalmente recursos para projetos de pesquisa, bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.
Allison: O laboratório do Eduardo produz pesquisas para o desenvolvimento de vacinas para combater doenças virais em bovinos e outros animais de interesse econômico.
Eduardo Flores: Nós temos aí já 15 a 20 anos de pesquisas. Inclusive, já tem duas patentes registradas de vacinas inovadoras, e possivelmente nos próximos anos pelo menos duas vacinas que foram desenvolvidas no laboratório já estarão disponíveis para o produtor por meio de convênio, projeto de colaboração com indústria. Então, além da pesquisa básica que a gente faz, nós fazemos pesquisa aplicada e dentre essas estaria o desenvolvimento de vacinas para doenças de bovinos de interesse econômico.
Allison: Mas a relação do Eduardo com o CNPq é antiga. Muito antes de pensar em montar o seu laboratório, o Eduardo foi beneficiário do CNPq para se formar como pesquisador.
Eduardo Flores: Toda a minha formação acadêmica e trajetória profissional estão intimamente ligadas ao CNPq. Eu fiz mestrado entre 86/89 com bolsa CNPQ e o meu projeto de mestrado foi financiado pelo CNPq. Fiz doutorado nos Estados Unidos entre 1991 e 1995 com bolsa CNPQ. Após meu regresso em 95 me tornei pesquisador no CNPq. Hoje sou pesquisador de produtividade em pesquisa nível 1B, que é o segundo nível no CNPq. Nesse período, nos últimos 20 anos, tive vários projetos financiados pelo CNPq sejam de editais de Demanda Universal ou projetos temáticos. Formei mais de 40 mestres e mais de 20 doutores, todos eles com bolsas e projetos financiados pelo CNPq. Além disso, nosso laboratório é mantido praticamente com ajuda de bolsistas de iniciação científica CNPq, de mestrandos e doutorandos, todos eles financiados com bolsa de CNPq e CAPES. Ou seja, toda a minha trajetória de pesquisador, formação de recursos humanos foi, e é, totalmente dependente e ligada a recursos CNPq. E eu entendo que essa é uma realidade não minha, mas de milhares de pesquisadores do Brasil.
Natália: A história do Eduardo é a história de milhares de cientistas brasileiros que montaram seus laboratórios e passaram a formar pessoas para trabalhar em pesquisas com o apoio do CNPq e da Capes. E também é a história de milhares de estudantes bolsistas que desenvolvem pesquisas nas diversas áreas do conhecimento, seja veterinária, biologia, ciências sociais, linguística, educação física e muitas outras.
Allison: A contrapartida exigida dos bolsistas pelas agências de fomento, é a dedicação exclusiva ao desenvolvimento do projeto. A garantia de pagamento de bolsas torna o caminho do pesquisador um pouco mais viável no Brasil. Esse é o caso da Olívia Moraes Ruberti, doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Biologia Funcional e Molecular, do Instituto de Biologia da Unicamp. Ela conversou com a gente sobre a sua rotina.
Olívia Ruberti: Eu entro no laboratório geralmente antes das 8, alguns dias eu saio após às 5, isso inclui finais de semana. Então no nosso laboratório a gente também tem alguns projetos com diabetes que os animais precisam ser tratados com insulina, e a gente não pode parar no final de semana, a gente não pode parar no feriado, a gente tem que estar aqui à disposição. E alguns experimentos específicos, eles são longos e a gente não pode parar no meio do processo, então por exemplo se eu comecei um experimento as 8 horas da manhã e ele tem que terminar as 7, eu não posso terminar as 5, ir embora e continuar no dia seguinte. Às vezes eles são overnight até, então é bem complicado. Precisa da minha dedicação exclusiva, não tem outro jeito. É o nosso trabalho né. Se hoje me perguntam “qual é a sua profissão?” eu falo “eu sou pesquisadora, eu sou cientista”, porque eu faço disso meu trabalho, é daqui que eu tiro meu sustento.
Allison: A bolsa que a Olívia recebe do CNPq é de 2 mil e 200 reais. No caso do mestrado, a bolsa é de 1.500 reais. Esse dinheiro é o salário do pesquisador e é usado para pagar aluguel, fazer compras no mercado e na feira, pagar transporte, comprar livros, entre outras despesas. Muitos bolsistas já têm família, filhos, então, some-se a esses gastos o que pode consumir uma criança, que dependendo da idade podem ser fraldas, escola, material escolar, roupas.
Natália: Em troca, a ciência brasileira tem mão de obra barata e extremamente qualificada, já que esses alunos trabalham em projetos de alto impacto para o país. A Olívia, por exemplo, pesquisa uma nova terapia para o tratamento da hipertensão.
Olívia Ruberti: Olha, sendo bem sincera, a nossa intenção é realmente salvar vidas. Porque, uma vez que a hipertensão é a doença que mais mata no mundo, se a gente sugere uma terapia que pode diminuir a pressão arterial, que tem grande potencial, é barata, é uma coisa que não demanda muito tempo do paciente, não provoca dor, é simples de fazer, e pode ter um ganho imenso, então a gente pode contribuir com uma grande parcela da população que tá perdendo sua qualidade de vida por conta dessa doença, em decorrência até das consequências dela, então pra nós é uma pesquisa extremamente importante que vai causar um impacto muito grande na sociedade.
Allison: Bem, o que acontece quando a única fonte de renda desses pesquisadores começa a ser ameaçada? Como comentamos na abertura do programa, estamos num momento crítico para a ciência brasileira. Desde 2015, houve redução progressiva dos recursos destinados ao MCTIC. A última cartada foi dada este ano, com redução de 42% do orçamento da pasta. Em 2020, a previsão é que se tenha uma redução de 87% das verbas do Ministério. Essa proposta orçamentária ainda tem que passar pelo Congresso. Mesmo assim, as previsões não são nada animadoras. Qual o impacto destes cortes na rotina de pesquisadores e de laboratórios de pesquisa? Para Lea, o resultado desse retrocesso é bem evidente.
Lea Velho: Se você cortar isso agora vai ter uma fugida de gente pro exterior enorme e é bom que essas pessoas vão, porque pelo menos estão se atualizando, e a gente não sabe quando vai ser capaz de recompor essa tradição e esse acúmulo de coisas que demorou tanto tempo pra gente ter.
Natália: Mas e o que a professora da Unicamp tem a dizer sobre crises passadas? Afinal, vários momentos de crise aconteceram nestes quase 70 anos de trajetória do CNPq, principalmente em períodos de instabilidade política e econômica.
Allison: Um desses momentos difíceis foi quando o CNPq foi inserido ao recém criado Ministério da Ciência e Tecnologia. Entre outras questões, o Ministério não tinha ainda alocação de funcionários, e os profissionais foram cedidas pelo CNPq, ou contratados via CNPq para atuar no MCT. O CNPq tinha 7 institutos de pesquisa que faziam ciência e foram transferidos para o Ministério, obrigando o órgão a se reinventar. Parecia que as atribuições nobres que antes eram do CNPq passariam todas para o Ministério e ao CNPq só caberia ser um mero operador das políticas, como nos conta a Lea.
Lea Velho: Foi um baque pro pessoal da casa que não sabia mais de onde que vinha a orientação, como é que a coisa ia ser. Mas eu acho que ao longo do tempo, isso já faz… 1985 que foi criado o MCT, nesse período teve uma acomodação e o CNPq percebeu que ainda que o MCT cuidasse da coisa, da política num nível mais alto, o CNPq continuava com a função de organizar os editais, de organizar a comunidade acadêmica, de fazer esse contato com a comunidade. Isso ficou.
Natália: A negociação com políticos por recursos financeiros para o órgão, por exemplo, sempre foi problemática. Ainda assim, a Lea diz que o CNPq conseguia contornar essas dificuldades. Na avaliação dela, a tarefa de defender o financiamento da ciência brasileira foi executada de forma primorosa pela agência em muitos momentos da sua história.
Lea Velho: Quando você olha o grande quadro, a big picture, eu acho que o CNPq é uma instituição digna de respeito, por tudo o que ele fez, por todas as dificuldades que teve que enfrentar, em diferentes momentos, por falta de recurso, ter que ir na Câmara e ter que dizer ‘nós precisamos de recurso extra porque bolsa é salário. Existia um compromisso com os presidentes anteriores do CNPq de que bolsa contratada é bolsa paga. Se vai ser renovada é uma outra história, mas no período em que foi contratada ela tem que ser paga. E isso sempre se conseguiu, mesmo nos momentos mais difíceis. Tem crise financeira e tem crise de gestão. Problemas de crise financeira são altos e baixo. O que nunca houve foi suspensão de pagamento de bolsa. Nunca.
Allison: Fazem parte do sistema de apoio à pesquisa e pesquisadores no país, as fundações estaduais de amparo à pesquisa, mas poucas têm o recurso garantido, outras têm problemas no repasse do recurso. O estado de São Paulo tem uma situação privilegiada com a Fapesp, mas mesmo com o volume de recursos nunca conseguiria fazer o papel que o CNPq realiza em São Paulo, como conta Lea.
Lea Velho: Quando eu penso, assim, em uma comparação com a gloriosa Fapesp, que paga os projetos e etc. A gente tem que entender que a Fapesp no Estado de São Paulo, ela é uma adicionalidade, ela vem depois que o salário de todo mundo tá garantido. Se ela tivesse que bancar o número de estudantes que a Capes e o CNPq bancam, ela jamais ia financiar pesquisa. Então, assim, desmontar o CNPq é um problema em São Paulo também, é um enorme problema, porque aqui estão o maior número de estudantes de mestrado e doutorado. E a Fapesp não tem a menor condição de bancar isso e não vai usar o dinheiro dela nisso. Não é o objetivo da Fapesp essa formação de recursos humanos.
Natália: Os cortes e contingenciamentos que estamos tratando, já estão sendo sentidos pelos pesquisadores que estão na bancada dos laboratórios. E quem acha que os efeitos vão ficar só ali dentro, nos laboratórios das universidades e institutos de pesquisa, está enganado. A falta de recursos pode prejudicar diversos serviços para a comunidade. No caso do laboratório de Virologia da UFSM, o Eduardo comenta que o impacto imediato vai ser a paralisação de serviços de diagnóstico de doenças virais em animais que hoje atende produtores rurais de vários estados.
Eduardo Flores: Em curto prazo o corte de recursos impactará na paralisação de diversos serviços entre os quais a cessação de serviços de diagnóstico, pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Muitos dos diagnósticos que são feitos para exportação de animais também deixarão de ser feitos e nós somos um dos poucos laboratórios do Brasil que realizam esses testes. O estado sanitário do rebanho bovino, que também depende desses diagnósticos, pode também ficar comprometido, com a interrupção das atividades de diagnóstico e pesquisa. Em resumo, cortes de financiamento pelo CNPq tem impacto não só na pesquisa, desenvolvimento e formação de Recursos Humanos, como também pode afetar outras esferas da cadeia produtiva, podendo comprometer, inclusive, a certificação sanitária nos rebanhos. No segundo momento, comprometer esforço de exportação de produtos animais.
Natália: No longo prazo, a crise da pesquisa brasileira vai afetar o desenvolvimento do país e a própria manutenção de pesquisadores brasileiros aqui.
Olívia Ruberti: Hoje eu acordo e fico pensando em saídas, pra onde eu vou, porque eu não quero abandonar a pesquisa, eu não posso – primeiro que eu não posso – porque como eu disse eu tô no meio do experimento, que envolve vidas. Eu não posso simplesmente largar animais lá e deixar, não tem outra pessoa pra me substituir, porque cada um tem a sua pesquisa e precisa se dedicar, eu não posso pedir pra outra pessoa me substituir. O que eu tenho feito é procurado outras oportunidades, de repente um emprego com horários mais flexíveis, em que eu possa fazer os meus experimentos nos outros horários. Mas, infelizmente, a maior parte dos pesquisadores tem pensado muito em sair pra fora do país.
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Livros consultados:
SCHWARTZMAN, S. A Space for Science – The Development of the Scientific Community in Brazil. The Pennsylvania State University Press, 1991.
Outras fontes de informação:
Folha de São Paulo – Sob risco de colapso, CNPq financia um terço da ciência nacional https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/08/sob-risco-de-colapso-cnpq-financia-um-terco-da-ciencia-nacional.shtml
Jornal da USP – Pesquisadores temem colapso das agências de fomento à ciência no Brasil
Jornal da USP – Nos países desenvolvidos, o dinheiro que financia a ciência é público
https://jornal.usp.br/ciencias/nos-paises-desenvolvidos-o-dinheiro-que-financia-a-ciencia-e-publico/
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