Progressos científicos, especialmente na área da saúde, muitas vezes apresentam novos problemas, que se tornam objeto de nova pesquisa. A história de Sir Peter Medawar, ganhador do Prêmio Nobel de medicina e fisiologia nascido no brasil, mostra como a exploração desses desafios “desenterrados” podem se tornar o objetivo de uma vida inteira de pesquisa.
Peter Brian Medawar nasceu em 28 de fevereiro de 1915 na cidade de Petrópolis, na região serrana do rio de janeiro, tendo crescido em Copacabana. Filho do comerciante libanês Nicholas Agnatius Medawar, e da britânica Edith Downing Medawar, ele viveu no brasil até os 13 anos, quando se mudou para a Inglaterra para receber uma educação secundária britânica, no Marlborough College. Ainda no secundário, Peter desenvolveu seu interesse apaixonado pela biologia, que carregou consigo para a Universidade de Oxford, anos mais tarde.
Após concluir o bacharelado em zoologia, em 1935, Medawar continuou os estudos e pesquisas em diferentes faculdades e institutos vinculados a Oxford, trabalhando com desenvolvimento embrionário e crescimento celular. Foi esse o trabalho que deu ao cientista a base para realizar a pesquisa que o tornou mais famoso.
Com o grande número de vítimas de queimaduras durante a segunda guerra mundial, que conseguiam sobreviver às infecções secundárias por conta do uso da recém-descoberta penicilina, o uso de enxertos de pele tornou-se uma prática mais comum na medicina. Mas nem todos os transplantes dessa natureza funcionavam, e a ciência médica começava a se debruçar sobre uma questão inteiramente nova: o que faz com que um transplante seja rejeitado, e como evitar esse processo para garantir a recuperação e sobrevivência dos pacientes? Enquanto muitos acreditavam que o problema estava relacionado apenas à perícia e aos métodos cirúrgicos utilizados para a realização dos enxertos, Medawar sugeriu uma resposta diferente. Peter começou a investigar e formular sua resposta enquanto trabalhava em parceria com o cirurgião Thomas Gibson, na unidade de queimados da enfermaria de Glasgow. Juntos, eles compararam enxertos realizados com a pele do próprio paciente aos que consistiam da pele de um doador. Quando um mesmo paciente recebia os dois tipos de enxerto, era possível investigar o que estava acontecendo de diferente entre os dois casos, e o que Peter e Thomas viram foi que, além de os pacientes rejeitam apenas enxertos de pele de outra pessoa, essa rejeição acontecia mais rápido quando se aplicava um segundo enxerto do mesmo doador. Isso dava à rejeição de transplantes uma dinâmica característica de processos imunológicos. Pareciam ser as próprias defesas do organismo dos pacientes que estavam rejeitando os transplantes.
Medawar estudou a fundo esse mecanismo de rejeição imunológica de transplantes de pele. Descreveu o processo de invasão de células do sistema imune aos enxertos e, tendo o conhecimento de que era essa a base da rejeição, começou o desenvolvimento de estratégias para resolver o problema.
Após desenvolver métodos para aumentar o tempo de tolerância aos transplantes, utilizando corticosteróides, Sir Peter se dedicou a entender como os organismos “aprendem” a reconhecer e atacar células estranhas. Com isso, seria possível pensar em outras estratégias que não envolvessem substâncias que interferem com a imunidade e o metabolismo como os corticosteróides, que possuem efeitos colaterais e podem ser nocivos à saúde a longo prazo.
Foi nesse processo de investigação, conduzido em parceria com Rupert Billingham e Leslie Brent, que Medawar foi capaz de expandir as fronteiras do conhecimento a respeito de um dos processos centrais da vida. Todo ser vivo, para se manter separado do meio externo, precisa ter a capacidade de distinguir o que pertence e o que não pertence ao organismo. Em formas de vida mais complexas, como é o nosso caso, esse reconhecimento é feito pelo sistema imunológico. O que não se sabia a essa época era como o sistema imunológico aprende o que são células e moléculas próprias e o que vem de organismos estranhos.
Ao estudar transplantes em embriões de vacas e camundongos, Peter e sua equipe conseguiram demonstrar que o sistema imunológico aprende a distinguir marcadores moleculares do organismo daqueles que vêm “de fora” durante o desenvolvimento embrionário eles descobriram que o sistema imune era capaz de, bioquimicamente, observar o mundo e aprender. Além de ser uma fascinante descoberta sobre a vida, esse fenômeno, chamado “tolerância imunológica adquirida” abriu suas próprias portas para novas pesquisas, que beneficiam não apenas receptores de transplantes, mas uma grande diversidade de pacientes, com problemas que vão de alergias a doenças como lúpus.
Por ter fundado as bases para a área de estudos da imunologia de transplantes, e por sua descoberta da tolerância imunológica adquirida, Peter Medawar recebeu diversas condecorações na academia e fora dela. As duas principais são o Prêmio Nobel de medicina e fisiologia de 1960 e a nomeação, cinco anos depois, para a ordem do Império Britânico — o famoso título de “Sir”. Além de sua carreira como pesquisador, Medawar foi um grande autor de livros sobre a filosofia da ciência, sendo um importante nome na história da divulgação científica do século XX. Sua paixão pelos caminhos da pesquisa pode ser exemplificada por sua definição da ciência como “a arte do solucionável”.
No último dia 2 de outubro, completam-se 30 anos desde que essa inspiradora vida dedicada à questão dos transplantes se encerrou, por ocasião de um derrame cerebral em 1987.
Matéria de Bruno Moraes