Este é o segundo episódio sobre acervos bibliográficos abrigados em museus-casas. Neste episódio você vai conhecer a história e as particularidades de três bibliotecas que estão abrigadas em museus-casas e que preservam a memória de três importantes intelectuais do nosso país: o Guilherme de Almeida, o Mario de Andrade e o Haroldo de Campos.
Você vai ouvir entrevistas com o Marcelo Tápia, poeta, ensaísta e tradutor, que dirigiu por quinze anos a rede de museus-casas da cidade de São Paulo; a Marlene Laky, conservadora-restauradora no Museu-Casa Guilherme de Almeida desde 2011; o Julio Mendonça, poeta e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, ex-coordenador do Centro de Referência Haroldo de Campos da Casa das Rosas e o Arthur Major, técnico de Programação Cultural e pesquisador do Centro de Pesquisa e Referência no museu Casa Mário de Andrade desde 2019.
Este episódio é parte da pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso na Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/Unicamp da aluna Lívia Mendes Pereira e teve orientação do professor doutor Rodrigo Bastos Cunha. As reportagens deste trabalho também foram publicadas no dossiê “Memória e Preservação” da Revista ComCiência, que você pode ler neste link Revista ComCiência.
[música]
Lidia: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da sua vista; o telefone é extensão da sua voz; ainda temos o arado e a espada, extensões do braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação” (Jorge Luis Borges)
Mayra: É assim que o escritor argentino Jorge Luis Borges inicia seu ensaio “O Livro”, texto escrito por ocasião da sua primeira aula, ministrada na Universidade de Belgrano, em 1979. No texto, o autor pensa o objeto-livro como um instrumento sem o qual não poderia imaginar a sua vida e que não era menos íntimo a ele do que os olhos ou as mãos.
Lívia: Se você já ouviu e lembra do episódio “Acervos pessoais abrigados em museus-casas”, nós já falamos sobre esse poder dos livros em instigar nossa imaginação e nos fazer recordar do passado.
Mayra: Mas, se você ainda não ouviu, a gente te lembra que esse é o segundo episódio sobre acervos pessoais e bibliotecas abrigadas em museus-casas, que são aquelas casas onde poetas ou intelectuais viveram e hoje em dia acomodam os arquivos pessoais deixados por eles. Se quiser entender melhor sobre arquivamentos e tratamento de acervos pessoais, volta lá e escuta o primeiro episódio, a gente te espera por aqui.
Lívia: Pra quem já ouviu o primeiro episódio, segue com a gente. Eu sou a Lívia Mendes, que você já conhece aqui do Oxigênio. Esse episódio foi resultado do meu Trabalho de Conclusão de Curso na Especialização em Divulgação Científica no Labjor da Unicamp.
Mayra: E sou a Mayra Trinca, que também fiz o Curso de Especialização e que você já me conhece aqui do Oxigênio.
[música de transição – vinheta]
Mayra: Como a gente já tinha anunciado, no estado de São Paulo, mais precisamente na capital, existem três museus-casas que preservam a memória de três importantes intelectuais para a cultura do nosso país. São as casas Guilherme de Almeida, Mario de Andrade e Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos. Elas são geridas pelo governo estadual em parceria com uma Organização Social, a Poiesis (Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura).
Marlene Laky: Como eu moro aqui na rua, ele falou assim, pode passar lá se quiser conhecer, a casa tava fechada para reforma na época, ela não tava desse jeito. Aí claro que a Abelhuda aqui veio tocar a campainha, né? Vim conhecer a casa. Aí comecei a percorrer assim, quando eu subi na mansarda, eu vi aquele lugar, falei assim: “Nossa, eu fiquei assim babando, eu falei: “eu preciso trabalhar aqui!”
Lívia: Essa é a Marlene Laky. Ela trabalha como conservadora e restauradora no Museu-Casa Guilherme de Almeida desde 2011. Ela contou pra gente que seu contato com o acervo do poeta Guilherme de Almeida foi paixão à primeira vista. Ela começou a trabalhar como voluntária e foi se encantando cada vez mais pela casa e pelo acervo. Aí, ela resolveu se especializar em conservação e cuidado de acervos bibliográficos.
Mayra: Mas quem foi Guilherme de Almeida, afinal?
Lívia: O Guilherme foi um poeta muito influente na década de 1920 no Brasil, ele se formou em direito, mas se dedicou à carreira literária e passou por diversos modelos textuais. Ele ajudou a fundar e foi editor da revista Klaxon, além de ter sido o criador da icônica capa da revista e de produzir anúncios publicitários dos patrocinadores. Esses anúncios foram precursores na visualidade da arte de vanguarda e da própria propaganda moderna.
Mayra: E ele também participou da Semana de Arte Moderna de 1922, né?
Lívia: Sim, ele foi um membro ativo da organização. E, não para por aí, ele ainda atuou como tradutor de obras em diferentes línguas e como jornalista na crítica literária e cinematográfica, com uma coluna no jornal Estado de S. Paulo, que se chamava “Cinematographos”, que circulou entre as décadas de 1920 e 1940.
Marlene Laky: O Guilherme, ele era um cara muito bem articulado, socialmente então assim conhecia todos os políticos, né? Essa gente assim, que mexia com Lei e etc., ele fez o hino da polícia, teve todo esse envolvimento dele, né? Ele morre em 1969. E aí assim começa uma conversa em 1972, a gente tá em plena ditadura militar, que isso se tornasse um museu, pra preservar essa memória do Guilherme.
Mayra: A Marlene relembrou essa influência política do Guilherme, que até compôs o hino da polícia militar, a pedido do capitão Antonio Augusto Neves, em 1964. Então, a ideia da abertura de um museu com todo o seu acervo começou logo após a sua morte e em 1979 ele já foi inaugurado. No mesmo sobrado onde ele viveu, de 1946 até sua morte, na rua Macapá, no bairro do Pacaembu.
[Música de transição]
Lidia:
“A casa na colina é clara e nova.
A estrada sobe, pára,
olha um instante e desce”.
Lívia: Inspirado por esses versos, do poema “Dez versos para a Casa da Colina”, publicado no livro Poesia Varia (1944-1947), Guilherme chamava o sobrado carinhosamente de “Casa da Colina”. Ali ele viveu com sua esposa, Baby de Almeida. Eles tinham o costume de receber amigos e faziam saraus poéticos. Entre eles estavam Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Anita Malfatti.
Marcelo Tápia: Felizmente, a viúva e o irmão dele negociaram com o governo a aquisição de tudo, por um preço meio camarada, um inventário, assim, bem plausível, tá certo? Porque se fosse considerar o valor daquelas obras de arte mesmo, não sei se o governo adquiriria. Mas, felizmente, eles tomaram providência e aquilo se manteve.
Mayra: Como o Marcelo Tápia, que foi diretor da casa por dez anos, explicou, a casa foi vendida para o estado de São Paulo de portas fechadas. A viúva e o irmão do Guilherme negociaram com o governo a aquisição de tudo que estava na casa por um preço bem abaixo do mercado.
Lívia: O prédio foi tombado como museu biográfico e literário pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, o Conpresp, em maio de 2009. Além do importante acervo de obras de arte, como quadros de Di Cavalcanti, Lasar Segall e Anita Malfatti, ali também estão guardadas as primeiras edições dos jornais em que o poeta publicou textos, toda a sua biblioteca pessoal e os mobiliários, como algumas relíquias da Revolução de 1932.
Mayra: Lembra que a gente explicou, lá no episódio sobre acervos pessoais, como funciona a catalogação e o tombamento dos livros de uma biblioteca que faz parte de um acervo pessoal? Na biblioteca do Guilherme de Almeida foram feitos aqueles mesmos procedimentos. Os livros têm um número de tombamento museológico e um outro número sequencial, que faz referência ao lugar de cada um deles na prateleira da biblioteca.
Lívia: Mas, aquelas etiquetas que a gente tá acostumado a ver nos livros das bibliotecas públicas não existem nos livros da biblioteca do Guilherme. Porque muitos livros não têm mais lombadas ou estão sem a encadernação. Então, pra preservar o material, elas não são utilizadas.
Mayra: Os livros também não ficam arrumados do mesmo jeito que ficavam quando o poeta ainda era vivo. Hoje em dia eles ficam divididos por assuntos.
Marlene Laky: São inúmeras e inúmeras possibilidades ao ponto de, por exemplo, a biblioteca aqui na casa, ela acaba fazendo parte da expografia. Então, porque, esse andar aqui que a gente tá, como ele não era intacto, essa biblioteca tava espalhada. Ela não ficava exatamente aqui, porque, assim o Guilherme, ele também tinha um escritório na Barão de Itapetininga. Como o Pacaembu era um bairro distante, ele morava aqui, só que ele trabalhava no centro. As redações e os jornais ficavam no centro, era muito mais fácil. Nesse escritório, ele também devia ter um monte de livro, né? Então, nessas transformações a gente não tem como saber exatamente o que ficava aqui, onde que era, como que era a casa nessa época, essas estantes que ele usava.
Lívia: Tentando desvendar como era a biblioteca do Guilherme em vida, a Marlene foi encontrando algumas pistas, como a enumeração e a organização dos livros pelos números de tombo. Pra ela, é provável que os livros tenham sido catalogados a partir do primeiro andar da casa, onde fica a mansarda, que é um espaço com os telhados inclinados. E, depois, o catálogo foi acompanhando a casa, até o térreo, onde hoje fica um espaço que é chamado de “sala íntima”, onde estão os livros encadernados, considerados mais luxuosos.
Marcelo Tápia: E você observando aquele conjunto, aquelas relações que estabelecem. Que autores eram privilegiados? Como eram organizados os livros. Por exemplo, na casa Guilherme de Almeida tem a sala íntima. Que é aquela sala que tem no andar térreo, que ele colocava ali alguns livros raros, ele escolhia para estarem ali. Entre eles, por exemplo, tinha uma edição, que é uma reimpressão da primeira edição do Ulysses, de Joyce. Ele era o único entre os modernistas que tinha Ulysses, isso é um dado relevante.
Mayra: Seguindo esses passos, dá pra gente construir um percurso imaginado, pra tentar entender como era a biblioteca do poeta e como funcionava na época em que ele era vivo.
Lívia: Em uma crônica, por exemplo, o Guilherme conta que estava buscando uma edição dos Lusíadas, do Camões. No texto, ele fala que estava à procura de uma edição específica. A biblioteca dele tem várias edições diferentes dessa obra portuguesa e a gente nunca vai saber exatamente qual dessas edições era aquela que ele buscava.
Marcelo Tápia: Tudo isso faz parte de uma estratégia de vida e de disponibilidade, de conhecimento, o que ele preferia ter mais a mão, aqui ou ali, e tudo isso faz sentido.
[música de transição]
Mayra: Essas e outras histórias, que podem ser desvendadas em um acervo bibliográfico pessoal, instigam os pesquisadores e contam histórias, não só do dono daquela biblioteca, mas das relações dos livros com a vida cotidiana, histórica e cultural daquele espaço e daquele tempo.
Marcelo Tápia: Eu conheci o Haroldo, estive na casa dele algumas vezes, né? A gente conversava. E a casa dele, aquela ideia da “bibliocasa”, era um sobrado pequeno, que tinha na Monte Alegre, e até na escada, que levava do térreo ao andar de cima, metade da escada era ocupada por livros, como se fossem prateleiras. Ou seja, havia livros por toda a parte, o escritório dele era totalmente tomado por livros, né?
Mayra: O Haroldo que o Marcelo Tápia comentou agora é o poeta concretista Haroldo de Campos. Ele deixou um acervo de mais de vinte mil itens, que, segundo o Marcelo, poderia ter sido vendido para outros países, que tiveram o desejo de adquirir, mas sua família, a esposa e o filho, preferiram doar e manter o acervo aqui no Brasil.
Lívia: O acervo deixado pelo poeta foi abrigado na Casa das Rosas em 2004, um ano após a sua morte, quando a família procurou o governo do estado de São Paulo para propor a doação. O prédio da Casa das Rosas, que fica na avenida Paulista, serviu durante um tempo como galeria de arte. Entre 2002 e 2004, ficou sem utilização e foi quando o acervo do Haroldo foi doado e ela se transformou no Espaço Haroldo de Campos de poesia e literatura.
[música de transição]
Mayra: Recentemente, no último dia 27 de janeiro de 2025, todo o acervo do Haroldo de Campos foi removido da Casa da Rosas e encaminhado para uma Reserva Técnica na cidade de Barueri, nas dependências da empresa Clé Reserva Contemporânea, especializada na logística e na conservação de obras de arte.
Lívia: Reservas Técnicas são espaços com controle rígido de segurança, climatização e higienização, onde ficam guardadas obras de arte, documentação e acervos raros. Apesar desses espaços preservarem os materiais raros com o mínimo de impacto possível, esse não era o desejo da família do Haroldo. Eles fizeram um contrato com a empresa gestora na época da doação e exigiram que o lugar que fosse abrigar o acervo deveria conter Haroldo de Campos no nome oficial. Além disso, a biblioteca deveria ficar aberta para consulta do público e uma comissão de especialistas deveria se reunir periodicamente para realizar atividades sobre o conteúdo do acervo.
Mayra: Foi iniciada uma manifestação nos jornais e nas redes sociais pedindo que o desejo da família seja cumprido e que o acervo volte para a Casa das Rosas. Até a publicação desse episódio, as notícias são de que a família do poeta e a administradora do acervo estão em diálogo pra decidir os rumos dessa história e onde ficará preservado o acervo.
[música de transição]
Mayra: A produção literária, poética e tradutória do Haroldo de Campos tem relevância internacional, daí a importância do seu acervo pessoal. Ele foi um dos inventores da poesia concreta, junto com seu irmão Augusto de Campos e o amigo Décio Pignatari.
Lívia: A poesia concreta é aquele tipo de poesia que valoriza a forma visual e musical das palavras mais do que os seus significados, diferente da poesia mais tradicional que a gente conhece, dividida em versos, rimas e métricas.
Mayra: Você deve lembrar daquela poesia concreta, que ficou famosa, da palavra “lixo” escrita usando a palavra “luxo”, fazendo uma relação entre essas duas palavras que são parecidas. Elas têm apenas uma vogal diferente, mas possuem sentidos totalmente opostos. Esse poema foi escrito pelo irmão do Haroldo de Campos, o Augusto de Campos, e é um exemplo de como a poesia concreta organiza as palavras na página, usando os espaços em branco, com tamanhos de letras diferentes, utilizando repetições de palavras e até formas geométricas, criando efeitos visuais e sonoros.
Lívia: Então, o Haroldo queria explorar novas formas de comunicação poética e ajudou a criar o Movimento da Poesia Concreta aqui no Brasil, em 1950. Foi também quando ele lançou seu primeiro livro de poesia, O auto do possesso. Daí em diante ele continuou produzindo poesia, tradução e crítica literária até o fim da vida.
Mayra: Ele também foi um dos fundadores do grupo Noigandres e escreveu um dos livros mais importantes de poesia experimental brasileira, o Galáxias, que foi sendo elaborado ao longo de mais de dez anos. Ele venceu cinco prêmios Jabuti, e é constantemente rememorado em universidades e compêndios literários pelo mundo.
Julio Mendonça: Ele via o passado como algo para o qual a gente sempre deve olhar com um olhar crítico, porque a construção da visão do passado é uma construção ideológica também. Ela vai sendo sedimentada e ideologicamente por quem está no poder, pelos grupos que estão no poder, pela visão hegemônica que vai se sedimentando, né? E a visão do Haroldo era contrária a isso, ele via permanentemente a necessidade de olhar para o passado com um olhar crítico, procurando distinguir no passado aquilo que importava e aquilo que não importava para o presente e para o futuro. Isso significa que a visão dele em relação ao futuro era também uma visão crítica, uma visão de quem desejava um futuro de transformações, de avanços.
Lívia: Esse que você ouviu é o Julio Mendonça. Ele é ex-coordenador do Centro de Referência Haroldo de Campos. Especialista em Gestão Pública, o Júlio trabalhou na coordenação do acervo por 10 anos. A gente perguntou pra ele sobre a importância da obra do Haroldo de Campos para a formação literária no Brasil e no mundo e ele enfatizou que a principal chave de leitura da obra do Haroldo são as suas próprias percepções sobre a memória e o tempo, o passado e o futuro, esses conceitos tão relevantes pra formação e preservação de acervos históricos.
Mayra: Esses ideais de passado, presente e futuro, foram a base da teoria tradutória que o Haroldo chamou de “transcriação”.
Lívia: A “transcriação” é um trabalho de recuperação, a partir da tradução de obras e autores relevantes, que muitas vezes foram esquecidos.
Mayra: Mas não é qualquer tradução, nesse caso é uma tradução criativa, que não fica presa apenas no sentido das palavras, mas que mantenha o espírito, o tom, o ritmo e o impacto da obra que está sendo traduzida em um novo idioma. A gente pode perceber, que aquelas ideias da poesia concreta também estão presentes na “transcriação”, em explorar a grafia, a forma e a musicalidade das palavras.
Júlio Mendonça: Então, a relação do Haroldo com a memória era uma relação crítica o tempo todo, instigante o tempo todo. Por isso acho que é uma função nossa, ao trabalharmos com um acervo de um autor como esse, que tinha uma visão como essa, estarmos também permanentemente atentos ao repensamento do passado e ao repensamento do futuro. O presente é a realidade dinâmica complexa diante de nós, que nos desafia o tempo todo e que nos demanda novas leituras, novas atitudes. E pra isso, acho que seguindo o pensamento do Haroldo, temos que sempre pensar o passado a partir de questões que estão sendo discutidas no presente e pensar os nossos desejos para o futuro de maneira crítica em relação ao que estamos enfrentando no presente.
[música de transição]
Lívia: O último poeta que a gente vai conhecer nesse episódio, valorizava essa preservação da memória e do passado e, ainda em vida, já pensava no valor público e histórico de seu acervo pessoal; da biblioteca, das obras de arte e do mobiliário que ele deixaria pra sociedade.
Arthur Major: Nessa carta testamento que o Mário escreveu, no final do ano de 1944, pro irmão mais velho dele, ele ia passar por uma cirurgia de apêndice, se eu não me engano ou alguma cirurgia simples, agora não me recordo exatamente o contexto da escrita dessa carta Testamento. A Oneyda Alvarenga, que foi aluna dele e uma grande colaboradora, ela transcreveu essa carta testamento no livro Mário de Andrade um pouco, que é da década de 1980. Nessa carta testamento ele fala sobre a publicação dos seus manuscritos inéditos, havia uma preocupação com o destino desses manuscritos inacabados e de outros textos que ele ainda tava trabalhando, né? Ele deixa uma série de orientações para Oneyda Alvarenga sobre a publicação desses textos e também fala sobre o seu enorme acervo, que ele juntou ao longo da sua vida, o acervo de artes plásticas, seu acervo de arte popular, de obras de arte, dos seus livros, inclusive até o seu acervo pessoal de cartas.
Mayra: O Arthur Major, que você ouviu agora, é historiador e técnico de programação cultural da Casa Mário de Andrade e ele contou pra gente sobre essa preocupação do Mário em destinar seu acervo pra instituições públicas.
Lívia: Um exemplo das orientações indicadas nessa carta testamento, seria o destino que ele imaginava para o seu acervo de livros. Ele queria deixar quase todos os seus livros na Biblioteca Municipal de São Paulo, que hoje recebe seu nome. Não à toa ele valorizava os espaços de bibliotecas. O Mário foi diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, de 1935 a 1938, e ampliou a rede de bibliotecas municipais para os bairros mais periféricos, com programas que estimulassem a leitura entre a classe trabalhadora.
Arthur Major: Então isso mostra uma preocupação muito grande do Mário de Andrade com a salvaguarda desse acervo, de pensar quais instituições poderiam cuidar desse acervo e disponibilizá-lo para o público. Uma grande preocupação com tornar esse acervo um patrimônio do povo brasileiro. E ele deixa isso bem claro no final da carta, né? Que ele não tinha colecionado aquilo para ele mesmo, que ele só se considerava um salvaguarda do patrimônio Brasileiro.
Mayra: O Mário de Andrade foi um dos principais poetas idealizadores do movimento modernista e da Semana de Arte Moderna, em 1922. Um escritor múltiplo, foi poeta, pesquisador, músico, crítico de arte e gestor cultural. Ele também integrou o grupo fundador da revista Klaxon, junto com o Guilherme de Almeida, além de ter publicado livros essenciais para a história literária brasileira, como Pauliceia Desvairada, seu primeiro livro de poemas e Macunaíma.
Lívia: Essa multiplicidade poética pode ser vista nos livros que ele tinha na biblioteca. Ali estavam obras em diferentes línguas – inglês, francês, alemão – que vinham com uma variedade de anotações nas margens. As marcas deixadas pelo Mário de Andrade nos livros revelam um leitor crítico e agudo, que exercia por meio da leitura um ato de devoração intelectual.
Mayra: Uma curiosidade da sua biblioteca, é que quando ele gostava muito do livro, ele comprava dois exemplares: um ele lia, folheava e escrevia nas margens, e o outro, ele conservava intacto, com a ideia de durar, permanecer. Ele tinha uma grande preocupação com isso de guardar as coisas, prevendo o futuro.
Lívia: Entre esses poetas que a gente tá conhecendo as curiosidades dos seus acervos, o Mário era o mais organizado. Conforme sua biblioteca foi crescendo, ele criou um sistema de catalogação dos livros. As etiquetas de classificação que eram colocadas nos livros indicavam, nessa ordem: a letra maiúscula a sala; o algarismo romano, a estante; a letra minúscula, a prateleira; e o algarismo arábico, a posição sequencial do volume na prateleira.
Mayra: Com isso dá pra perceber que o Mário também não gostava de emprestar seus livros, ele chegou a colocar uma advertência no vidro de uma das estantes, que dizia: “Não empresto livro. A casa é sua. Venha ler aqui”.
Lívia: O acervo do Mário não está mais abrigado na casa onde ele viveu desde 1968, quando a sua família doou toda a biblioteca, o arquivo e a coleção de artes plásticas, para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, diferente do que ele imaginou naquela carta testemunho que a gente te contou. Mas, a casa onde ele viveu foi transformada em museu.
Arthur Major: Ele não pensava na criação de um museu dedicado a ele, né? Obviamente, e muito menos na sua própria casa. Ele não entendia a sua casa se tornando um museu, mas tem, enfim, um pouco da humildade do Mário de Andrade, de como ele se enxergava. Eu não sei o que ele diria se ele tivesse vivo hoje em dia e visse a casa dele se tornando um museu. Desse acervo, ao contrário do que ele havia determinado, mantendo-se integrado, como a ideia de um fundo, com a sua própria lógica interna. Mas, foi algo muito importante, pra manter vivo o legado do Mário de Andrade.
[música de transição]
Lidia: “Saí desta morada que se chama O Coração Perdido e de repente não existi mais”.
Mayra: Inspirada nessas palavras da crônica “O terno itinerário ou trecho de antologia”, do livro Os filhos da Candinha, publicado em 1942, a casa de três sobrados geminados, onde o Mário viveu com a sua família – mãe, tias e irmãos – era apelidada de “morada do Coração Perdido”.
Lívia: A casa foi tombada logo depois de sua morte, em 1946, pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN, a partir de um movimento articulado por amigos e admiradores do poeta.
Mayra: Ela se tornou formalmente um museu da Secretaria de Estado da Cultura em 2018, quando passou a integrar a Rede Museus-Casas de São Paulo, junto com os outros dois museus-casas que a gente já falou aqui, a Casa Guilherme de Almeida e a Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos.
Lívia: Na casa onde fica o museu está um pequeno acervo de móveis originais e objetos pessoais do escritor. Ali também acontecem as atividades do Centro de Pesquisa e Referência Mário de Andrade, que incentiva a preservação do patrimônio cultural deixado pelo poeta.
Mayra: As atividades incluem exposições de curta duração, além da exposição de longa duração “A Morada do Coração Perdido” – que inclui objetos pessoais, móveis originais, textos, fotos e vídeos – e atividades relacionadas à literatura, música, artes plásticas, cinemateca e produção teatral.
Arthur Major: Na correspondência com o Paulo Duarte, que está no livro Mário de Andrade por ele mesmo, ele fala um pouco sobre essa ideia que ele tinha de museus. O que ele pensava como museu. Ele tinha muita convicção da missão educativa do museu como uma instituição cultural dinâmica, né? E do patrimônio também como algo dinâmico, não como algo estático, paralisado no tempo.
Lívia: O Arthur destacou essa importância que o Mário dava para a própria museologia. Ele deixou suas ideias registradas nas correspondências que trocou com o Paulo Duarte, seu amigo, jornalista e intelectual. Foi o Paulo que convidou o Mário para dirigir o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, em 1935.
Mayra: Outra pista da relevância que Mário dava aos museus, nós também observamos na grande maioria das instituições às quais ele desejava destinar seu acervo, que eram, em sua maioria, instituições museológicas.
Arthur Major: Tem um texto dele, bem legal, que se chama “Museu Popular”, que saiu na revista do IPHAN e que ele fala dessa ideia de museu de reprodução, né? Um museu com cunho educativo, que leva arte para lugares onde essas obras nunca chegariam, seja pela distância, por infraestrutura, por questão financeira. Daí a gente já vê a importância do Mário de Andrade para uma política cultural e uma política museal.
Lívia: Em 1936, o Mário de Andrade foi convidado para redigir o anteprojeto de criação do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937. Hoje em dia a instituição passou a se chamar Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conhecido como IPHAN. Até hoje, passados quase noventa anos, as ideias contemporâneas do anteprojeto escrito pelo Mário impressionam.
Arthur Major: Mas gente vê, por exemplo, pelo anteprojeto que ele escreveu para o SPHAN, no seu rascunho do projeto de política patrimonial nacional, a importância que ele dá para o patrimônio imaterial e para o patrimônio cultural, ligado a manifestações populares, manifestações da classe trabalhadora, em oposição aos grandes monumentos, o patrimônio de pedra e cal. O projeto não foi aprovado, com todas essas inovações. O que acabou passando, para criação do SPHAN foi bem menos ousado. E hoje em dia só, isso está sendo revisto e essa ideia do patrimônio cultural e patrimônio imaterial tem sido resgatada. Mas, é uma coisa que o Mário de Andrade já tava pensando em 1936, que é quando ele escreve esse anteprojeto.
Mayra: Por tudo isso, foi muito importante a participação do Mário de Andrade, para além da sua obra literária, na criação e pensamentos sobre a valorização cultural do nosso país. A Casa Mário de Andrade procura perpetuar essa herança, seguindo esses mesmos ideais que foram deixados registrados pelo autor, incentivando a educação não formal como um pilar essencial de contato humano com o público, produzindo diálogo e provocando questionamentos.
[música de transição – BG]
Lívia: Com certeza, perto de você deve ter algum museu ou espaço de cultura, com algumas bibliotecas ou até um acervo pessoal pra consulta. Espero que você tenha ficado instigado pelo tema e procure participar das atividades e explorar os espaços de memória aí da sua cidade e, por que não, desbravar outras regiões.
Mayra: O roteiro desse episódio é de Lívia Mendes, que também realizou as entrevistas. A revisão é de Mayra Trinca e Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. A pesquisa teve orientação do professor Rodrigo Bastos Cunha e é parte do Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Jornalismo Científico do Labjor. As reportagens deste trabalho também foram publicadas no dossiê “Museus” da Revista ComCiência, que você pode ler na página www.comciencia.br, o “com” com “M” de Museu.
Lívia: Os trabalhos técnicos são de Daniel Rangel e Carol Cabral. A narração dos poemas é de Lidia Torres. O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Você encontra a gente no site oxigenio.comciencia.br, no Instagram e no Facebook, basta procurar por Oxigênio Podcast.
Mayra: A trilha sonora é da Biblioteca de Áudio do Youtube. Obrigada por nos escutar e nos encontramos no próximo episódio!