FERNANDA:
ITABIRA
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.
YAMA: Introdução – Em busca do Cauê
YAMA: É difícil encontrar o pico do cauê. Não a montanha, que sabemos, não existe mais. É que o local onde um dia houve um pico é difícil de encontrar. Subimos mirantes para ver se, do alto, dava pra ver o buraco. Sem sucesso, eu e Lucas rodamos de carro por um tempo considerável em companhia do google maps e de dois pares de olhos atentos. Subindo uma estrada estreita de duas pistas há vários sinais de que estamos dentro da Vale, mas nada de Cauê. Vejo os barrancos ferrosos se misturarem aos eucaliptos tão mais frequentes quanto mais alto subimos. Caminhões e máquinas pesadas. Lama, muita lama. Placas de segurança e placas urbanas. As placas colocadas pela Vale se abundam. A mais repetida não deixa dúvidas: propriedade privada da VALE SA, não ultrapassar. Invasão é crime! Outras, beiram ao cinismo, como a que vimos num pequeno morro com cinzas de queimadas: evite queimadas, preserve a natureza, sugere a placa da Vale.
Não muito distante dali o GPS informa: você chegou ao seu destino. Mas onde chegamos exatamente? À direita do carro, vejo lama, vejo florestas falsas e tristes. Trabalhadores da Vale, ou melhor, de suas terceirizadas, curiosos com a nossa presença. Estamos na cidade, em rua pública, mas a sensação é de que invadimos a mina. Distraído com tanta informação à direita, Lucas me chama a atenção. À nossa esquerda, ali está, milimetricamente escondido entre morros sobreviventes. A paisagem que dá nome ao lugar. O maior buraco do mundo.
As palavras se perdem. Já sabemos do que se trata, mas o queixo cai mesmo assim. É como visitar a lápide do pico, mas com o sentimento contraditório e incômodo de que é a nossa própria lápide também. Senti como nunca antes o significado de que cada de um nós tem seu pedaço no pico do cauê. Se as barragens chocam pela presença interminável da lama, o maior buraco do mundo dilacera por uma ausência incalculável. Um buraco aberto que exibe as entranhas da terra e nos mostra a grandiosidade de quase 100 anos de extrativismo desavergonhado.
Eu sou Yama Chiodi, jornalista do GEICT e esse é o segundo episódio da série Cidade de Ferro. Nesse episódio, tento recuperar de modo muito breve como as histórias de Itabira e da mineração de minério de ferro se entrelaçaram. E como seu cidadão mais ilustre, Carlos Drummond de Andrade, se tornou persona non grata por ser ferrenho crítico do que a mineração fez com sua cidade natal. Sigo esse episódio com Lucas Nasser, pesquisador e advogado itabirano, autor do livro “Entre a Mina e a Vila: violações de direitos em Itabira”.
YAMA: Na obra de Drummond há duas Itabiras… ou a transformação de uma Itabira em outra. E o pico do cauê é a alegoria perfeita para essa transformação. Não por acaso, o poeta o classifica como “Nossa primeira visão do mundo” na crônica Vila da Utopia – a mesma que nos dá a expressão “destino mineral”. Se a montanha era o mundo, sua pulverização catapulta a história poética da cidade a uma história de fim de mundo. De montanha a buraco. E se a montanha muda, a cidade muda. Se a montanha muda, a poesia muda.
Fica na memória uma cidadezinha pacata na qual se podia ver o Cauê imponente da janela de casa. E a memória se choca com a realidade. O século XX é para Itabira o momento histórico em que a cidade e a mineração se confundem, por força da violência e do extrativismo. Esse fenômeno foi aprofundado pela criação da Companhia Vale do Rio Doce. Depois de ser o centro minerário dos Aliados na segunda guerra mundial, Itabira se misturou cada vez mais a Vale. Quando chegou a privatização, não foi só a Vale que foi privatizada. A impressão que dá é que, sendo uma com a empresa, a cidade foi privatizada também.
A seguir faço brevíssimo sobrevoo sobre a história do ferro em Itabira, que introduz como cidade foi tomada pela mineração. Se você quiser aprofundar um pouco mais na história e nas conexões da obra do Drummond com a mineração eu vou deixar mais uma recomendação, além do livro do nosso convidado Lucas Nasser. É o Maquinação do Mundo, do José Miguel Wisnik, publicado pela Companhia das Letras. Do meu ponto de vista é uma obra-prima e o livro definitivo sobre as conexões entre mineração e a obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Mas, por ora, seguimos.
YAMA: Primeira parte: Ferro à vista!
FERNANDA:
Zico Tanajura está um pavão de orgulho
no dólmã de brim cáqui.
Vendeu sua terra sem plantação,
sem criação, aguada, benfeitoria,
terra só de ferro, aridez
que o verde não consola.
E não vendeu a qualquer um:
vendeu a Mr. Jones,
distinto representante de Mr. Hays Hammond,
embaixador de Tio Sam em Londres-belle-époque.
Zico Tanajura passou a manta em Suas Excelências.
De alegria,
vai até fazer a barba no domingo.
YAMA: O que levou os olhos grandes coloniais a Itabira a princípio não foi o ferro, mas o ouro. Quando as Minas Gerais demonstravam sinais inequívocos de cansaço na exploração aurífera, o viajante francês contratado pela coroa portuguesa, Auguste de Saint-Hilaire, visitou várias cidades do interior mineiro para tentar encontrar novos pontos de interesse para exploração de minério. Passou oito dias em Itabira, ainda no período pré-independência, no primeiro quarto do século XIX, onde se assustou com o potencial de exploração minerária do local, que deu origem a sua famosa frase, abre aspas, “O ferro das montanhas de Minas Gerais pode de certo modo se considerar inesgotável”, fecha aspas.
LUCAS: É, acho que foi internacionalizada, primeiro com o Saint-Hilaire, põe a boca no mundo, terra à vista né? Mandou lá a carta do Pero Vaz de Caminha. Mas Itabira já teve, um pouco antes, essa época do Saint Iller passou, já tinha uma fábrica de ferro, mas não no registro industrial, era de fazer ferramentas, de uso doméstico, né, digamos assim.
YAMA: O ferro já estava ali, mas com outros propósitos, de escala muito menor. E, ainda assim, já atraía certo crescimento populacional. Mas é só na passagem do século XIX para o XX que a riqueza mineral itabirana coloca a cidade em risco. A ganância colonial que já fazia ameaças de tomar as montanhas nos tempos de Saint-Hilaire ganha outro formato, onde os ingleses radicados no Brasil trabalham lentamente por baixo dos panos.
LUCAS: E aí teve um congresso em Estocolmo, que apontava esse potencial geológico em Itabira.
YAMA: É recorrente entre historiadores e pesquisadores que o grande marco histórico que inaugura essa nova fase do ferro em Itabira é o Congresso Internacional de Geologia, realizado em Estocolmo em 1910, ao qual o Lucas se referiu. O congresso foi realizado por grandes empresas siderúrgicas europeias e estadunidenses e tinha por objetivo principal fazer um detalhamento exaustivo das reservas de ferro existentes no mundo.
José Miguel Wisnik diz que o diretor do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil e um professor da Escola de Minas de Ouro Preto apresentaram no congresso um documento que mostrava de modo detalhado os lugares de Minas com maior potencial para exploração de ferro. Literalmente entregaram o mapa da mina do ferro brasileiro.
LUCAS: Inclusive depois desse período, alguns ingleses que moravam no Brasil, engenheiros que foram contratados pra fazer, por exemplo, a ferrovia que liga Minas a Vitória, né, eles compraram uma porção de terra gigantesca.
YAMA: A figura do inglês em Itabira é recorrente na poesia de Drummond. Não é por acaso que apenas um ano depois do congresso, a companhia inglesa Itabira Iron Ore Company recebeu autorização para funcionar no Brasil. O que se passou nos anos anteriores e nos anos subsequentes foi estarrecedor. Sabendo do verdadeiro valor das terras com seus morros e subsolos ferrosos, ingleses compraram quantidades gigantescas de terra no mato dentro a preço de banana. Os itabiranos vendiam sem saber o real valor de suas terras.
LUCAS: Enfim, ce tem esses engenheiros ingleses adquirindo essa propriedade de terra gigantesca, mas não só isso, né, eles fundam companhias no intuito de adquirir jazidas mesmo de minério. Inclusive, o pico do cauê nesse seminário internacional era a maior reserva do mundo. Maior jazida de ferro do mundo.
YAMA: Apesar da resistência política de vários setores da sociedade brasileira, em especial de intelectuais de esquerda como Drummond, a Itabira Iron Ore Company seguiria seu fluxo de práticas coloniais até o governo de Getúlio Vargas, quando o nacionalismo desenvolvimentista culminou na proibição das práticas e da subsequente nacionalização da exploração do ferro. No nacionalismo varguista, havia amplo apelo pelo fortalecimento da siderurgia nacional – o que nunca aconteceu para Itabira. Em 1938, saiu uma edição da publicação antifascista Revista Acadêmica, onde o poeta manifestou sua percepção das práticas coloniais do extrativismo da Itabira Iron.
FERNANDA: Então Itabira, o Brasil, vai acabar derretido em Birmingham, em Cardiff? Então os nossos duzentos anos de luta contra a pedra e contra o mato vão desaparecer diante da fria contabilidade do rude imperialismo internacional? A nossa velha cidade virá a ser, na perda completa de seus meios de produção, na fuga constante da sua riqueza, no seu progresso aparente mas cortado de espoliações, apenas um triste burgo colonial?
YAMA: A Itabira Iron Ore Company foi dissolvida em 1942. E essa data certamente não tem nada de casual. O ferro de Itabira colocou o Brasil na guerra pela emergência da empresa, agora nacional, que veio a se chamar Companhia Vale do Rio Doce. Estava inaugurada uma nova fase da exploração do ferro e um novo tipo de subserviência brasileira aos países ricos. Agora, por meio de acordos internacionais não cumpridos entre Estados Unidos, Inglaterra e uma grande empresa estatal.
FERNANDA: Desfile
As terras foram vendidas,
as terras abandonadas
onde o ferro cochilava
e o mato-dentro adentrava.
Foram muito bem(?) vendidas
aos amáveis emissários
de Rothschild, Barry & Brothers
e compadres Iron Ore.
O dinheiro recebido
deu pra saldar hipotecas,
velhas contas de armarinho
e de secos e molhados
Inda sobrou um bocado
pra gente se divertir
no faz de conta da vida
que devendo ser alegre
nem sempre é
YAMA: Segunda parte: A ferro e fogo
YAMA: O advento da Segunda Guerra Mundial se tornou a oportunidade apropriada para Vargas implementar seu plano de fortalecimento da siderurgia e da mineração nacionais. Isso se deu a partir de acordos costurados com Estados Unidos e Inglaterra. Do lado da siderurgia, o governo brasileiro conseguiu o empréstimo de 20 milhões de dólares do Eximbank para a implementação da Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941. Do lado da mineração, foram estabelecidos os chamados Acordos de Washington, que teriam como principal efeito a nacionalização das minas antes em posse da Itabira Iron e a criação da Companhia Vale do Rio Doce.
LUCAS: Itabira é o centro do acordo de Washington. Cê começa a ter esgotamento de produção de ferro da indústria armamentista e novamente o pessoal pega os estudos das maiores reservas de ferro do mundo e aí vai entrar Itabira e o pico do Cauê. Então o Getúlio dá uma canetada. Acaba com a gracinha dos ingleses. Nacionaliza tudo, mas, com base nesse acordo. E era o acordo da construção da Vale e da construção de uma siderúrgica, que depois vai virar a CSN.
YAMA: Os Acordos de Washington previam o empréstimo do dinheiro e da equipagem maquínica que supostamente tornariam a Vale do Rio Doce uma mineradora automatizada e moderna. Em troca, o Brasil forneceria minério de ferro exclusivamente a Estados Unidos e Inglaterra por um preço muito abaixo de mercado enquanto durasse a guerra. Itabira se tornou da noite pro dia um centro global por alimentar de ferro a indústria bélica da guerra e do plano Marshall. É nesse contexto que Drummond publica o livro que muitos consideram sua obra-prima. A Rosa do Povo foi escrito entre 43 e 45, por um poeta atônito diante dos horrores da guerra. Um dos poemas mais conhecidos do livro, América, observa a repentina globalização de sua cidade natal.
FERNANDA:
(…) As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua
na cidadezinha de Minas, humilde caminho da América. (…)
YAMA: As promessas dos Acordos de Washington, no entanto, não foram cumpridas. A começar pelo maquinário que não chegou. Mas também pelo fato de que Volta Redonda ficou com o protagonismo da Siderurgia e Itabira permaneceria para sempre como mera exportadora de ferro. Nem mesmo as compras garantidas do minério brasileiro foram cumpridas.
LUCAS: Depois a Vale vai ter maquinário numa segunda etapa, né? Inclusive parte desses acordos não é entregue o maquinário por parte da Inglaterra e dos Estados Unidos. Então a Vale durante muitos anos se constrói e se consolida na base do muque e na base da exploração desses trabalhadores. Essa parte inicial dos Leões da Vale, que tinha muito acidente de trabalho inclusive, ela não é relatada. Não sei se você vai lembrar, a gente conversou com algumas pessoas. Eles contam não contando, né? Tem uma questão lá que parece que todo mundo sabe o que está acontecendo, mas você não pode falar por ser receio de retaliação, por receio de ser taxado de ingrato, né?
YAMA: Lembro sim. E impressiona que em pleno 2023 ainda seja uma realidade. Mesmo depois da privatização. Isso que o Lucas tá falando é um fenômeno super interessante e complexo. Ao mesmo tempo em que a Vale do Rio Doce fazia crescer a precariedade de Itabira com seu extrativismo, a cidade ficava cada vez mais refém da empresa, a ponto de se misturar com ela.
LUCAS: Existe uma Itabira antes e depois da Vale, né? Mas ela entra nas entranhas, a Vale viveu visceralmente Itabira. A cidade acaba se tornando a Vale e a Vale se tornando Itabira.
YAMA: Nesse contexto, a Vale chegava inclusive a ser chamada de “Mãe Doce” por parte da população. Tem por partes dos itabiranos uma gratidão que tem tudo a ver com processo de dependência entre a empresa e a cidade. É claro que à medida que o tempo passa essa adesão se enfraquece e as críticas se abundam. Mas a defesa à empresa ainda é muito palpável. Transformando profundamente a realidade local, Itabira parecia estar sempre atenta a seu potencial e às promessas grandiosas de um futuro de abundância construído à base da exploração do ferro. Mas o extrativismo não pede licença para nada. E o progresso prometido é uma eterna promessa, que nunca chega.
LUCAS: De extrair, quando a gente fala desse extrativismo, é de várias ordens. Não é só esse extrativismo econômico. Tem um extrativismo que é também ontológico. Ce impõe outro modo de vida ao local. O Drummond faz uma síntese disso em alguns poemas, mas é só pra gente ter um parâmetro.
YAMA: O que o Lucas chama de extrativismo ontológico é esse processo que transforma a cidade numa outra coisa. A cidade que havia vai sendo apagada pra se reduzir paulatinamente ao extrativismo ele mesmo. O pico do Cauê se torna um símbolo inexorável dessa transformação… à medida que a montanha vai deixando de existir, a cidade é cada vez mais Vale e cada vez menos mato dentro. E é esse processo que desperta o desgosto e a crítica do Drummond à gigante estatal. Especialmente nas primeiras décadas de existência da empresa, as críticas do poeta aliadas ao fato de que morava no Rio de Janeiro o tornaram uma espécie de persona non-grata em Itabira. Era como se fosse um filho ingrato, que virou as costas para suas origens, quando virar as costas para a Vale era o mesmo que virar as costas para a cidade.
Em tese, Carlos Drummond de Andrade sabia da retirada massiva de ferro para a guerra. Mas saber e ver com os próprios olhos faz toda diferença. Por ocasião do enterro de sua mãe, no ano de 1948, vai a Itabira uma última vez na vida, de avião, e vê com a visão privilegiada das alturas a força do extrativismo. Ao ver as entranhas da terra e o início do fim do Pico do Cauê, percebeu cedo que o progresso prometido pela nacionalização da Itabira Iron não chegaria nunca. Há um poema de Drummond que foi muito lembrado à época das tragédias de Mariana e Brumadinho, que mostra quão adequadas e premonitórias eram as previsões críticas do poeta. Refiro-me à Lira Itabirana.
FERNANDA:
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
YAMA: Engana-se quem pensa, contudo, que a poesia anti-extrativista não arrancava reações da gigante estatal. Em plena ditadura militar, em 20 de novembro de 1970, a Vale publicou um anúncio grande no jornal O Globo. Uma grande frase no topo da peça não deixa dúvidas sobre seu espírito revanchista: Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro. Com a imagem de uma pedra de minério de ferro, o anúncio comemorava a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro exportadas pela empresa.
O anúncio coincide com o lançamento do chamado “Projeto Cauê”, que, ironicamente, decretaria o fim do pico que lhe dava nome. O projeto marcou uma nova escala na automatização da britagem e peneiramento, que cercou o morro e abriu as portas para o extrativismo desenfreado. Como na poesia, a montanha foi pulverizada. É importante lembrar do projeto cauê para que nos lembremos de que o fato de à época ser uma empresa estatal, não diminui o impacto ambiental e social do extrativismo.
LUCAS: Tem um teórico que chama Eduardo Gudynas, que pesquisa extrativismo. Ele fala que extrativismo continua sendo extrativismo, né? O que acontece no caso dela ser estatal é que ela é socialmente compensada. Cê tem uma pequena parcela que vai ser convertida em alguns direitos sociais no caso da Vale, por exemplo. Por isso que muitas vezes movimentos sociais criticam de falar de mineração predatória. Porque se tem mineração, ela vai ser predatória.
YAMA: A privatização que fez a Vale do Rio Doce virar só Vale, parece ter aprofundado seus processos extrativistas, com a diferença que, agora, o que havia de retorno social é pulverizado junto com o que restava do Pico do Cauê.
Terceira parte: Cidade à venda
YAMA: Se a Vale do Rio Doce virou Itabira e vice-versa no pós-guerra, a pulverização do Pico do Cauê é também símbolo da centralidade da cidade para a empresa. O Projeto Cauê parece ter sido o último suspiro no qual Itabira ainda era o centro da mineradora. Com a privatização de 1997, dez anos após a morte de Carlos Drummond de Andrade, a empresa se internacionalizou e a cidade natal do poeta virou um pontinho, uma nota de rodapé, um mito de origem de uma das maiores mineradoras do mundo. Se houve um momento em que Itabira e Vale de fato se tornaram uma, a impressão que fica é que a privatização da empresa foi também a privatização da cidade. Como sintetizou brilhantemente José Miguel Wisnik:
LUÍS: A cidade, acoplada simbioticamente a essa potência nascida das suas entranhas, vive na dependência econômica e política dos ditames da companhia, sem ter se beneficiado, nem de longe, de um retorno correspondente ao gigantismo da empresa que gerou. A inusual promiscuidade de origem do sítio minerador com núcleo urbano acarreta um impacto ambiental que se traduz em altos níveis de poeira de ferro em suspensão, imóveis afetados pela dinamitação das rochas e assoreamento das fontes de água. Longe de ser reconhecida como vítima de uma intrusão abusiva, é a cidade que é posta, na prática, no lugar de intrusa, no momento em que bairros construídos sobre veios de minério de ferro são obrigados a se deslocaram para permitir a continuidade da exploração até o esgotamento total do estoque (WISNIK, 2018, p. 120-121).
YAMA: Quando o Wisnik fala que a cidade que parece ser a intrusa para a mineração passar, é uma coisa que fica muito claro quando relembramos a memória dos bairros deslocados e destruídos pela mineração – assunto do próximo episódio da série. Mas voltando à Vale, é publicamente notório que a privatização da Vale do Rio Doce foi, no mínimo, muito polêmica. Dentre os muitos motivos para se questionar seus processos, talvez o mais relevante seja o método utilizado para calcular seu valor. Calculado a partir do preço mínimo por ação, o valor de 10,36 bilhões estipulado pelo governo FHC foi, mesmo à época, fortemente questionado. Entre outros motivos, críticos apontavam que foi levado em conta o valor da empresa, mas não das reservas minerais que acabaram sendo privatizadas em conjunto. Voltando a Itabira, contudo, vemos que na prática a cidade se tornou ainda mais dependente da Vale, com a diferença que, agora, sua importância era muito pouca diante do grande conglomerado internacional que a empresa se tornou.
LUCAS: E com isso o que que isso vai afetar na lógica local de Itabira. Primeiro que vai perder o nome de Rio Doce, que era algo que transformava ela numa questão legal. Vc tenta internacionalizar, vc tenta dissociar essa marca, vira só Vale. Muda as cores, né? A Vale tinha uma cor de terra, né? Que é o minério né? Uma alusão ao minério. Ela passa a ter uma cor verde de sustentabilidade e o amarelo do Brasil. (…) você passa a ter muito mais acidentes do trabalho e um aprofundamento da precarização do trabalho, e isso aí, tem vários estudos que demonstram isso, né? A vulnerabilidade do trabalhador terceirizado. Então você tem várias empresas que prestam serviço pra Vale. A vale quase não faz atividade fim hoje, ela é praticamente uma gerente.
YAMA: O Lucas também me contou que no processo de privatização o direito adquirido, presente na nossa constituição, foi totalmente relativizado. Os trabalhadores perderam direitos e a constante terceirização dos serviços prestados à mineradora precarizou o trabalho e precarizou a cidade – ainda muito dependente das vagas de emprego em torno da mineração, ainda que hoje sejam uma fração do que foram um dia. Em suma, se os problemas do extrativismo minerário e ontológico marcaram a história da Vale desde os seus primeiros suspiros itabiranos, a Vale S.A. o elevou a outro nível, tratando como refugo de menor potência a cidade que um dia foi sua galinha dos ovos de ferro. O progresso prometido nunca chegou. Ficou o pó de ferro.
FERNANDA:
A montanha Pulverizada
Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista e contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.
Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
— o trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
YAMA: Na terceira parte dessa série, eu interrompo por um instante a conversa com a poesia drummondiana e falo com o Lucas Nasser sobre aquilo que foi o centro do seu livro: o impacto da mineração nas remoções forçadas duas vilas itabiranas, Explosivo e Vila Paciência.
Antes de encerrar esse episódio, eu gostaria de divulgar o pedido dos cidadãos de Moeda, Minas Gerais. Moeda é mais uma das cidades mineiras sendo consumida pela mineração. Na descrição se encontra um link para um vídeo, que é um pedido de socorro. Os impactos da mineração não acabam. A destruição do extrativismo é só o começo do que vai virar barragem de rejeito depois. É hora de lutar para que Minas Gerais não se torne, por força do extrativismo, Barragens Gerais num futuro próximo.
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem narrou as poesias do Drummond foi a Fernanda Capuvilla e quem conversou comigo foi o Lucas Nasser. O Luiz Leal do Artigo158 foi quem narrou a passagem do livro do José Miguel Wisnik.
A edição do áudio foi feita pela Elisa Valderano. O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Ambos os sons de trens utilizados nesse episódio foram feitos por Sandro Lima e são livres para uso.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
Livro do Lucas Nasser: Entre a vila e a mina violações de direitos
Baixe gratuitamente em: https://experteditora.com.br/entre-a-vila-e-a-mina/