#169 – Depois que o fogo apaga – Parte 2
ago 10, 2023

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Neste episódio do Oxigênio, continuação do programa #168, seguimos falando sobre o processo de recuperação de museus e acervos que pegaram fogo no Brasil. Exploramos as etapas necessárias para a reabertura, quem são as pessoas que participam desse processo e quais as reflexões que esse momento provoca. Ao longo do episódio, você escuta sobre três casos, que estão em estágios muito diferentes desse restauro: o laboratório da Unesp em Rio Claro, o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. A produção e apresentação são da Mayra Trinca, bióloga e mestanda em Divulgação Científica e Cultural. A edição é da Elisa Valderano, bolsista do Serviço de Apoio ao Estudante e do Octávio Augusto Fonseca, da Rádio Unicamp. 

Roteiro

MAYRA: Oi! Aqui é a Mayra Trinca, você deve ter me ouvido no último episódio, o número 168. Se não ouviu, recomendo ouvir antes de começar esse aqui, porque este episódio é continuação da conversa que começamos lá.

Nós estamos falando sobre o que acontece depois que um museu pega fogo e tudo se perde. No primeiro episódio, tratamos dos impactos que essas tragédias causam na vida das pessoas que trabalham diariamente nesses espaços. Neste segundo episódio, vamos falar sobre quais os passos necessários para a reconstrução dos acervos e se é que faz sentido usar essa palavra: reconstrução. 

Pra ilustrar esse processo, vamos conhecer como tem sido a realidade de três coleções, que estão em etapas diferentes de restauro. O Instituto de Biociências de Rio Claro sofreu com o incêndio há mais ou menos um ano, em setembro de 2022. Então por lá a reconstrução ainda está nos primeiros passos. 

O Museu Nacional pegou fogo há 5 anos, em 2018 e já está numa fase mais avançada, tanto que a fachada do museu foi reinaugurada esse ano e você já pode visitá-la se passar pelo Rio de Janeiro. E por fim, o incêndio no Museu da Língua Portuguesa que aconteceu em 2015. Nesse caso, a reconstrução já acabou e o Museu tá aberto pra visitação desde 2021, quase seis anos após o incêndio. 

[VINHETA]

MAYRA: O primeiro impacto gerado pelo incêndio que atingiu os laboratórios da Unesp de Rio Claro foi a comoção. 

EMYGDIO: No contexto de UNESP são mais de 40 anos de existência, não é? Então se você pensar em curso de graduação, em pós-graduação, passou uma infinidade de alunos que agora tão tanto aqui no Brasil, como fora daqui, alguns lecionando outros já até se aposentaram, um certo tanto já até faleceu, né? Então a gente começou a ter uma dimensão disso nos dias posteriores, que começou chover mensagem, comunicação de tudo quanto é lado, do jeito que você nem sabia que existia. Externando, né, esse carinho pela gente e volta e meia vinha um relato, né? Ah eu lembro das aulas de fulano, eu lembro de tal laboratório, eu lembro de um material assim assado, entendeu? 

MAYRA: Deixa eu te reapresentar o Emygdio, que é técnico do laboratório de zoologia lá na Unesp de Rio Claro. No primeiro episódio ele contou como esse evento afetou a rotina de trabalho dele. E agora, ele vai contar um pouco mais de como tem sido esses primeiros meses pós-incêndio. 

MAYRA: Pra mim, essa fala do Emygdio ajuda a dimensionar a relevância dessa coleção, não só pra pesquisa ou pra quem trabalhava com ela, mas na história da formação acadêmica e de vida mesmo de tanta gente que passou por lá. Quando aconteceu o incêndio, eu tinha uma amiga fazendo Biologia lá na Unesp, o mesmo curso que eu fiz, e uma das coisas que eu pensei foi que ela nunca teria a mesma experiência que eu tive. 

EMYGDIO: A principal propagação dessa tragédia tá se processando agora, quando os alunos já voltaram é para suas atividades didáticas normais, inclusive no início de Março, já veio a primeira turma pós incêndio, né? E a primeira coisa que a gente tá sofrendo é que os alunos têm as aulas práticas, que faz parte da carga horária, do conteúdo curricular, e a gente simplesmente não tem material para estar mostrando pra esses alunos. 

MAYRA: O Emygdio é o responsável pela organização e manutenção dos materiais das aulas práticas, ou seja, era ele quem cuidava do acervo que pegou fogo. Mas não dá pra esperar que agora ele seja o único responsável por fazer essa coleção voltar a existir. Esse é um processo de muitas etapas e que precisa da colaboração de muitas pessoas, da própria instituição e de outras. 

MAYRA: Como o acervo do IB era principalmente didático, o problema urgente a ser resolvido é conseguir material suficiente para as aulas práticas. Só que esse não é um processo tão simples quanto parece. A primeira possibilidade – e a mais rápida – é via doação. Outras instituições de ensino e pesquisa podem compartilhar objetos que tenham a mais nas suas próprias coleções. 

EMYGDIO: Então, as doações estão acontecendo de uma maneira lenta e bastante pontual, né? Porque como eu disse, a nossa coleção englobava desde protozoário até os vertebrados mais diversificados e daí o que acontece, nem toda instituição, nem toda pessoa que entra em contato, tem capacidade de fornecer esses materiais. Então uma pessoa consegue “ó, eu tenho uma meia dúzia de esqueleto aqui, eu posso te doar, eu tenho, sei lá, uma meia dúzia de concha”, então é na verdade um quebra-cabeça, né? Ou uma colcha de retalho que você tá tentando recompor e por enquanto o negócio tá muito esparso assim, a gente tem mais lacuna do que material em si, né? E por que que isso tá acontecendo? Porque isso depende literalmente da boa vontade dos outros, né? De alguém fornecer o material que já tem sem que se comprometa. Se comprometa assim, você tem que abrir mão de uma parte do seu acervo para mandar para a gente, né? 

MAYRA: Mesmo que essas doações ajudem muito, elas não vão ser capazes de cobrir tudo que é necessário porque as instituições doadoras também não podem prejudicar os seus próprios acervos. 

EMYGDIO: A gente tem que caminhar para um outro nível, que é o que a gente está caminhando agora, que é o da aquisição. E o que que é aquisição de material? A gente vai adquirir esses materiais da forma direta, ou seja comprando aquilo que se pode comprar, por exemplo lâminas prontas.

MAYRA: Essas lâminas são materiais preparados para lupas e microscópios, normalmente de animais pequenos ou de estruturas específicas. Esse tipo de material é mais fácil de encontrar pra comprar. Seres maiores, como os animais taxidermizados, são bem mais difíceis de encontrar. Aí entram as coletas, que é sair pra campo e tentar encontrar esses animais. 

EMYGDIO: Sejam coletas nossas, seja custear coleta de quem tem condição para trazer material para gente. Condição de que tipo? Como eu disse, né? São diferentes grupos animais. Então você precisa de especialistas nesses grupos para coletar material.

MAYRA: Imagina que cada grupo de animal tem hábitos de vida completamente diferentes, coletar uma borboleta é muito diferente de coletar uma água viva. E essas coletas não podem ser feitas de qualquer jeito, existe uma série de regras e controles dos órgãos ambientais, justamente para que as pessoas não possam sair por aí matando animais sem mais nem menos. 

A Thamara é professora do departamento de entomologia do Museu Nacional e conhece bem esse processo de coleta de materiais. Ela trabalha com a ordem Lepidoptera, que é o nome do grupo de insetos das borboletas e mariposas. No episódio anterior, ela contou pra gente como sempre foi o sonho da vida dela trabalhar com essa coleção do Museu Nacional. 

THAMARA: Era uma das maiores coleções da América Latina, né? Tinha cerca de 186 mil exemplares 

MAYRA: Em 2018, ela prestou o concurso pra trabalhar como curadora dessa coleção, só que o incêndio aconteceu bem no intervalo entre ela prestar o concurso e ser contratada. E isso mudou completamente a perspectiva de trabalho que ela tinha. 

THAMARA: No momento que eu prestei o concurso a visão que eu tinha do Museu Nacional era “nossa, se eu passo nesse concurso eu vou trabalhar na maior coleção de borboletas e mariposas, né?” 

Mas aí nesse segundo momento, já depois do incêndio, a minha motivação foi outra. Era mais como se fosse uma missão de vida. Agora eu quero ajudar a reconstruir. E tentar contribuir de alguma maneira, para que outras pessoas também possam trabalhar com esse material, assim como ele foi importante para mim, né? Que outras futuras estudantes, futuros pesquisadores possam daqui a cinco, dez anos acessar o material.

MAYRA: Mas, como eu disse, não dá pra sair por aí caçando borboleta de qualquer jeito e em qualquer lugar. Então, antes de iniciar esse processo, os curadores do Museu Nacional também acionaram outras instituições de pesquisa. Diferente do caso do Instituto de Biociências, eles não estavam pedindo doações, mas estavam atrás de itens do próprio Museu que tivessem sido emprestados no passado. 

THAMARA:  Porque ali são os remanescentes ainda da coleção antiga, então todos nós como curadores, cada um do seu grupo, né? Fez esse eh e continua fazendo esse contato com outras instituições tanto nacionais quanto internacionais para verificar o que que tem de material do Museu Nacional e que a gente possa então trazer esse material de volta, já que é agora a gente já tem um espaço para receber esse material.

MAYRA: Isso é algo relativamente comum, às vezes é mais fácil um objeto ir até um grupo de pesquisa do que uma pessoa de outra instituição ir até o Rio e ficar semanas ou meses lá, estudando o tal objeto. Mas isso também tem que ser feito seguindo uma série de regras, e graças a elas, a equipe do Museu conseguiu rastrear esses itens que faziam parte da coleção original. 

THAMARA: Esses pesquisadores eles têm me procurado falando que tem um material e querem devolver. Isso vai ser muito importante para esse esse novo começo, né da coleção. 

MAYRA: Mas, assim como o Emygdio falou, esse movimento não é suficiente pra repor todos os exemplares que existiam antes. 

THAMARA: A gente tem que ir a Campo de novo coletar esses materiais 

MAYRA: E mais uma vez, esse não é um processo tão simple, porque

THAMARA: Muitas das áreas que foram coletadas, amostradas no passado, hoje já não existe foram convertidas em áreas de pasto, né de agricultura e não existe. 

MAYRA: Esse é um dos motivos que faz a Thamara dizer que a palavra “reconstrução” não é muito adequada pra representar esse momento. Porque reconstruir dá a ideia de refazer, de que seria possível recriar exatamente a mesma coleção que existia no museu antes dele pegar fogo. 

MAYRA: Só que isso é impossível, não só porque algumas áreas ou mesmo espécies nem existem mais, mas porque um museu se constrói ao longo de anos, às vezes centenas deles. É humanamente impossível levantar um acervo do tamanho e qualidade que existia no Museu Nacional, resultado de séculos de coletas e registros. Lembramos, você, ouvinte, que o Museu Nacional foi criado em 1818, ou seja, há mais de 200 anos!

THAMARA: Então se a gente for pensar nesse novo acervo, aí eu vou focar apenas nas borboletas e mariposas, né? Antes eram 186 mil exemplares, agora em dois anos que eu entrei foi final de 2020. Então eu comecei a fazer essas expedições em 2021, até agora a gente já tem mais de 12 mil exemplares, né?

MAYRA: O que pode até parecer pouco, mas considerando todo o trabalho envolvido, é um número gigante! 

THAMARA:  Às vezes não fica muito claro como esse processo, né? De de como o material chega na coleção. A gente vê as gavetas com material preparado e não tem ideia do trabalho, né? Cada borboleta alguém teve que correr atrás com aquela rede parecendo o Bob Esponja. Então já envolve um exercício físico para coletar cada uma delas e depois que coleta você tem que preparar para aquelas asas ficarem esticadas, tem produtos específicos para conservar, tem uma rotina diária de curadoria para que fique preservado esse material. Depois temos a identificação, então assim é uma cadeia que uma única pessoa não consegue fazer.  

MAYRA: Depois de toda essa conversa, eu fiz uma última pergunta pra Thamara, que foi a seguinte: 

E aí o que eu fico curiosa é pra pensar assim, porque quando o museu ele já está estabelecido ele meio que já tem uma história contada, né? As peças elas estão distribuídas ali de uma forma que contam uma história que já foi dada. E aí esse momento de refazer o acervo de refazer o museu eu fico pensando que é um momento para repensar como contar essas histórias e eu queria saber se vocês estão pensando sobre isso, como é que tá essa ideia do tipo a gente vai tentar eh fazer exposição mais parecido com o que ela era antes ou assim como você falou a gente tá pensando num novo acervo numa nova exposição e a gente quer contar uma nova história a partir de agora? 

THAMARA: Com episódio do incêndio ele acabou dando uma oportunidade de de repensar, né? Tem se formado grupos de trabalhos e comissões para tentar atualizar e buscar formas é mais atuais da gente apresentar por exemplo uma exposição é eu não sei te responder ainda o que vai ser porque tem um debate é interno ainda. Alguns são favoráveis a ter uma exposição exatamente como era antes outros nem tanto eu acho que vai para essa direção do nem tanto, né, mas tendo um espaço, talvez de memória do que foi.

MAYRA: O nosso terceiro caso, do Museu da Língua Portuguesa, passou por um dilema muito parecido. O Museu pegou fogo em dezembro de 2015. 

MARÍLIA: Acho que a primeira grande questão e é um diferencial triste aí da tragédia com o Museu da Língua Portuguesa é que a gente teve uma perda humana, né? Então a gente teve uma vítima que foi o bombeiro Ronaldo que fez a evacuação, né? A partir do plano ali eh de incêndio, ele conseguiu evacuar a equipe inteira foi uma sorte que o incêndio aconteceu numa segunda-feira um dia fechado para visitação, mas aí ele retornou para ver se podia fazer mais alguma coisa dentro do do dano que já tava acontecendo e não conseguiu sair. Esse, infelizmente, é um diferencial trágico do museu.

MAYRA: Por sorte, nem o laboratório da Unesp, nem o Museu Nacional tiveram perdas humanas, diferente do Museu da Língua Portuguesa. Já em relação à estrutura física dos espaços, o menos impactado foi o laboratório da Unesp. Os prédios que abrigavam os dois museus foram muito danificados pelo fogo.

MARÍLIA: E aí a outra questão também no caso do Museu da Língua que é o dano patrimonial do edifício da estação da Luz, né? Então é um edifício tombado pelo Patrimônio Histórico, uma estação que é uma das estações até hoje das mais movimentadas, né? Ela é um hub de muitas estações de trem e metrô em São Paulo e então teve uma uma perda bem expressiva, aí de uma parte da construção né? 

MAYRA: Antes de continuar, deixa eu te apresentar essa nova voz. 

MARÍLIA: Eu sou a Marília Bonas, sou diretora técnica do IDBrasil, que é a organização social gestora do Museu da Língua Portuguesa e do Museu do Futebol, e trabalho há quase três anos no Museu da Língua. Eh, sou historiadora e museóloga de formação, mas trabalho há mais de 20 anos na frente de gestão de instituições culturais, em especial museus.

MAYRA: A Marília começou a trabalhar no Museu da Língua algum tempo após o incêndio, então ela participou mais ativamente das últimas etapas do restauro e da inauguração, que aconteceu durante a pandemia de COVID-19, em 2021. 

Mas antes de chegar nas etapas necessárias pra essa reabertura, a Marília já começou a nossa conversa destacando aquilo que a Thamara nos falou. 

MARÍLIA:  A gente não tinha acervo material, né? Então a gente não tinha objetos museológicos que são por natureza insubstituíveis, né? Então é sempre um debate assim. Ah, vai reconstruir museus que tem um acervo museológico, você vai de fato fazer um novo museu, né? Porque esse acervo ele não volta você pode ter objetos congêneres. Você pode ter coleções que são similares, né? Mas aquele objeto mesmo que se perdeu não tem volta. E é diferente do objeto nato digital, porque aí, se você tem um backup, o objeto existe.

MAYRA: Esse é o caso do Museu da Língua, os objetos dele já nascem digitais, na forma de produções audiovisuais multimídias. Isso significa que o acervo não foi perdido, já que haviam cópias de todas as obras, que hoje estão expostas novamente. Mas a parte interessante é que, mesmo com essa possibilidade de refazer o museu igualzinho como era antes, esse não foi o caminho escolhido. 

Mas eu tô me precipitando na conversa, tem muita coisa pra acontecer antes desse ponto. 

MARÍLIA: O Museu da Língua ele levou cinco anos, né para ser reconstruído. acho que a primeira etapa foi de fato a etapa de articulação política para conseguir o recurso pra recuperação da edificação e não só recuperação da edificação, mas também já a criação eh de uma série de sistemas de prevenção a incêndio que em geral não existem em em edifícios tombados, né? 

MAYRA: Eu vou abrir um parênteses importante aqui. Os objetos museológicos são extremamente sensíveis ao fogo. No caso do laboratório da Unesp, por exemplo, eu lembro de ter muitos materiais conservados em álcool, que eu não preciso nem dizer que é algo super inflamável. Foi algo que a Thamara também comentou, no caso do Museu Nacional, a voz dela aqui de novo. 

THAMARA: Então assim quem tá no meio acadêmico já tem uma percepção, né? Sabe até mesmo da questão da fragilidade do material, né? Mas isso às vezes não fica muito claro, então é um material muito frágil e que na condição do incêndio que destruiu o palácio, obviamente não vai sobrar nada desse material, né? 

MAYRA: Mas mesmo com essa visão muito clara da fragilidade desses materiais, a instalação de sistemas de combate ao fogo não é um consenso. Como a Marília confirma.

MARÍLIA: Por muito tempo também foi debatida na área de museus do tipo; “Ah, mas a água também é um dano pro acervo, né”? Mas entre água e você tem acervo molhado e acervo que arde e que você não recupera, da água você consegue recuperar.

MAYRA: Tanto o Museu da Língua quanto o Museu Nacional agora possuem sistemas de combate a incêndio nas novas instalações. Isso decidido, fechamos o parênteses e continuamos.

Como a Marília estava dizendo, o primeiro passo foi a captação de recursos. Reconstruir os museus demanda dinheiro, e não é pouco. 

MARÍLIA: Foi firmado um convênio entre a Secretaria de Cultura do Estado e a Fundação Roberto Marinho que foi a criadora do Museu da Língua Portuguesa e a organização social gestora que é o IDBrasil. Então foi firmado um convênio para essa reconstrução, um convênio inclusive que teve como objetivo principal estimular o apoio privado, pra captação privada, né dessa reconstrução.

MAYRA: Beleza, recursos destinados, é hora de se debruçar diante das obras e exposições pra pensar o que continua fazendo sentido e o que precisa ser revisitado e repensado. 

MARÍLIA: E aí cada uma dessas frentes também articulou uma série de revisões e releituras, a fundação Roberto Marinho ficou com a parte de reunir tudo que havia sobre o projeto original, convidou os curadores originais do projeto pra olhar, né, rever esse conteúdo e entender o que, depois da abertura ali dentro desse contexto  entre 2015 e 2020 o que tinha mudado de lugar, que outras camadas de debate tinham que aparecer nessa exposição, né? Então muito conteúdo novo foi produzido.Claro que o museu ele tem uma permanência do projeto original tanto expográfica, de ocupação, mas tem muitos .

MAYRA: Eu acho muito legal a forma como o Museu da Língua abraçou essa oportunidade de repensar a proposta das exposições, porque pra mim, esse é um ótimo exemplo de como os museus também são feitos de presente. As mudanças só aconteceram porque os curadores perceberam que há outros debates sobre Língua acontecendo hoje, que eles são relevantes e que precisam aparecer também. 

Mas essa é uma mudança que deve ser feita de forma muito atenta e cuidadosa, porque, como a Marília estava me contando, existe também um desejo da pessoa ao visitar esses espaços que, muitas vezes, é o desejo de encontrar algo familiar. 

MARÍLIA: Muitas vezes ela tem uma expectativa de reiteração do próprio conhecimento no museu, o museu é quase um lugar onde aquele conhecimento que ela tem tá ali materializado de alguma maneira. Então quando você vai falar olha, mas vamos vamos pensar criticamente sobre esse conhecimento você tem que fazer com muita generosidade, né? 

Falo até por experiência própria. Minha mãe é professora de português do Estado, vai fazer 80 anos esse ano. E aí ela num primeiro momento ficava muito reativa a todos esses debates. E aí quando ela foi no museu eu percebi que ela encontrava aquilo que ela esperava na exposição, mas que aí ela navegava numa telinha alguém que tinha um ponto de vista que problematizava um pouco ali sem virar um meta-museu sem virar um museu que problematiza só o tema, né? Então nem o Museu fala é uma única maneira de contar a história da Língua Portuguesa ou tudo que você aprendeu tava errado. É olha isso foi encontrado desse jeito porque foi contado por essas pessoas. Hoje, a gente tem múltiplas vozes e a gente convidou elas também para contar. Então é muito interessante, é muito desafiador nesse sentido.

MAYRA: Eu perguntei pra Marília quais foram as principais mudanças que fizeram na exposição do Museu a partir desses debates. E, ainda que apareça alguma coisa sobre gênero neutro, as principais mudanças aconteceram do ponto de vista da decolonialidade. 

MARÍLIA: Esse impacto do debate da decolonização no museu é bem interessante. Eh, então a gente tem essas vozes, não só do Krenak, não só quando a gente tá falando de populações indígenas, mas também quando a gente tá falando de escravizados, né a língua portuguesa falada no Brasil, não é o português de Portugal exatamente pela interferência das línguas originárias e das línguas africanas. Eu acho que isso passa a ter um destaque maior na reabertura.

MAYRA: Algumas coisas também deixaram de ser foco das exposições. A Marília me disse que não teve nada que sumiu, mas que alguns temas deixaram de ter espaços formais pra serem inseridos como parte de um contexto maior. 

MARÍLIA: Não tem mais aquela né, aquela parte que falava dos estilos literários. Ah, o simbolismo, o romantismo né? A literatura tá muito mais falada, a gente tem muito mais vozes trazendo a literatura, mas essa parte que é mais acadêmica digamos ela não não tá mais e e a gente trabalha isso em outros espaços educativos.  

MAYRA: E a Marília ainda destacou um outro ponto importante desse repensar a exposição do Museu, que é um convite de retorno. 

MARÍLIA: As pessoas que já visitaram ficam confortáveis de que elas chegam no lugar e elas reconhecem. Então elas reconhecem em termos espaciais em termos curatoriais e que elas reconhecem as novidades. Então é muito legal porque quem tinha uma expectativa de que “ai eu vim e tal antes do incêndio 10 anos atrás” e aí falar “mas não tinha esses vídeos, esse jogo era de outra coisa agora tá mais legal”, né? Então tem essa coisa da continuidade. O que é importante porque os museus são instituições que se constituem nessa longa duração, tem essa coisa da descoberta. Isso é bem legal assim e aí faz com que as pessoas voltem porque elas querem descobrir mais do tipo “Ah, isso não é exatamente assim, não. Quero voltar para ver com mais calma”.

MAYRA: E esse convite parece estar sendo um sucesso. A Marília contou que aos sábados a visita ao Museu da Língua é gratuita e que eles têm batido recordes de visitação, chegando a ter quatro mil visitantes em um dia. 

Essa também é uma informação super importante porque mostra que há interesse e há procura das pessoas por esses espaços de divulgação de conhecimento. Por isso a reconstrução e reorganização dessas coleções é tão importante, especialmente depois de tragédias previsíveis como foram esses incêndios. É uma forma de resistência, de mostrar que, apesar do descaso com que essas instituições são tratadas, elas permanecem e são capazes de atrair muitas pessoas. 

Os três casos que falamos nesses episódios poderiam ter sido evitados se houvesse mais empenho em cuidar desses espaços. Por exemplo, o incêndio do laboratório 19, na Unesp, aconteceu por uma pane elétrica. Só que há anos havia pedidos de revisão e restauro do sistema elétrico do prédio, o que, até agora, não aconteceu. Quando eu estava na graduação, eu lembro de conversar com alguns amigos sobre a possibilidade do prédio pegar fogo, justamente por saber da necessidade desses reparos. A gente só nunca imaginou quão real era essa possibilidade. O Emygdio, técnico lá da Unesp falou muito sobre isso na nossa entrevista. 

EMYGDIO: A gente tá falando de um prédio que tinha mais de 40 anos de uso ininterrupto e as reformas que ele tinha passado eram reformas pontuais. Reformava-se um laboratório, reformava-se um cômodo,reformava-se uma sala. Nunca houve uma reforma completa do prédio, seja da parte elétrica seja da parte hidráulica. Mais de 40 anos de um semi-abandono, né? Ou vou colocar melhor ainda num abandono sistemático, não é? 

MAYRA: Eu gostaria que esses casos servissem de exemplo pra que as tragédias evitáveis fossem realmente evitadas. Mas isso só o futuro pode dizer. 

Esse episódio foi produzido e apresentado por mim, Mayra Trinca. A revisão é da Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. Os trabalhos técnicos são da Elisa Valderano Santos. O Oxigênio é apoiado pela Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. A trilha sonora é do Freesound e do Blue Dots Sessions.

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