Conheça o podcast “O mundo em 10 anos”, para quem é curioso pelo futuro e quer saber o que pesquisadores e cientistas têm a dizer sobre as transformações que vão afetar a nossa vida. Produzido e apresentado por Luís Botaro, este primeiro episódio é sobre trabalho, juventudes e oportunidades e traz a economista Denise Guichard Freire, o economista Marcelo Manzano e a socióloga Julice Salvagni para falar sobre o mercado de trabalho para os jovens e temas como digitalização e plataformização do trabalho, empregos informais, Indústria 4.0 e Quarta Revolução Industrial, além de analisar como governos e empresas podem preparar os jovens para esse futuro.
ROTEIRO DO EPISÓDIO
Luís: Você já parou pra pensar como vai ser o mundo daqui 10 anos? Eu imagino que sim, porque se tem uma coisa que todo mundo é um pouco, é curioso. É a nossa curiosidade, inclusive, que move coisas incríveis como a ciência. Se hoje a gente usa o celular pra ouvir um podcast ou assistir um tiktok, é porque muitos curiosos, que depois se tornaram estudiosos e cientistas, trabalharam pra que isso fosse possível. A ciência tá até mesmo nas coisas que a gente nem percebe logo de cara: pra que um país saiba qual região vai precisar de mais abastecimento de água daqui a 5 anos, e você não fique sem tomar banho no dia de uma festa ou de uma entrevista de emprego, muitos conhecimentos precisam ser mobilizados, como a geografia, a física, a demografia, a engenharia e muito mais. Então, se você gosta de saber como as coisas funcionam e como elas podem se transformar ao longo do tempo, você tá no podcast certo.
Meu nome é Luís Botaro, e nesse primeiro episódio de “O mundo em 10 anos”, eu chamei alguns especialistas para conversar sobre um tema muito importante, especialmente para os jovens que tão chegando agora na vida adulta: o trabalho. Por quais transformações a gente deve passar nos próximos anos? E os jovens, eles estão preparados pra elas? E quem vai ser mais afetado pela digitalização do trabalho? E os salários, estão melhorando ou estão piorando?
Pra começar, eu quero que você imagine comigo dois personagens fictícios, mas que são baseados em dados reais sobre os jovens do Brasil.
O primeiro é o Miguel, um jovem de classe baixa que terminou o ensino médio em atraso, já com 19 anos, e nem chegou a prestar o vestibular. Na pressa pra conseguir emprego, ele já trabalhou em um shopping e um supermercado, ocupações temporárias, mas que já ajudaram a juntar dinheiro para dar entrada em uma moto e começar a trabalhar como entregador por aplicativo — uma função que, segundo ele, “é mais cansativa, mas pelo menos garante algum dinheiro o ano todo”.
E a gente também tem a Júlia, que é de uma família que tem uma renda um pouco melhor. A Júlia terminou o ensino médio com 17 anos e até prestou o vestibular de uma universidade pública, mas não passou. A sua família também não tem como bancar uma universidade particular, já que ela tem mais dois irmãos que, inclusive, ela cuida por meio período enquanto os pais estão no trabalho. Ela também já trabalhou no shopping no fim de ano e, de vez em quando, faz alguns freelas num buffet de festas infantis. A Júlia sabe que, em algum momento, vai fazer faculdade, já que tem estudado para o vestibular, mas enquanto isso não acontece, ela observa de longe alguns amigos que já estão indo para o segundo ano de curso.
Com o Miguel e a Júlia, a gente tem exemplos do que mostram vários dados sobre juventude e o trabalho no Brasil.
O IPEA, vinculado ao governo federal, mostra em um relatório de 2020 que a inserção de jovens no mercado de trabalho é marcada por entradas e saídas frequentes, geralmente em ocupações informais e que pagam pouco — algo que os dois personagens têm em comum.
O mesmo relatório mostra que a taxa de desocupação dos jovens, ou seja, o desemprego, é maior do que na população em geral. Além disso, em 2019, cerca de 30% dos jovens entre 18 e 24 anos não estudavam e não trabalhavam, são os chamados “nem-nem”. Uma situação que descreve bem a trajetória da Júlia.
Outra pesquisa importante sobre os jovens é o Atlas das Juventudes, feito pela FGV Social com outras instituições. A pesquisa mostra que a situação escolar é preocupante: até 24% dos jovens brancos e quase 40% dos jovens pretos ou pardos não concluíram o ensino médio. Outro dado que preocupa é que os jovens representam a faixa da população que mais teve redução de renda desde a crise que começou em 2014.
Esses são alguns dados que mostram que a juventude brasileira é marcada por incertezas e vulnerabilidades num momento decisivo da vida. Aliás, o correto mesmo é falar juventudes, como o próprio Atlas usa, porque as juventudes são diversas e desiguais — em relação às classes sociais, etnias, gênero, mas também geograficamente.
A minha conversa começa com a economista Denise Guichard Freire. Ela pesquisou os jovens que não estudam e não estão ocupados pra sua tese de doutorado, além de trabalhar há mais de duas décadas no IBGE com a síntese de indicadores sociais para a área de trabalho e rendimento. Lá, ela também trabalha com dados sobre a juventude.
A minha primeira pergunta foi sobre as características que tornam os jovens mais suscetíveis aos empregos informais e às constantes entradas e saídas do mercado de trabalho, especialmente entre os 18 e os 24 anos.
Denise Guichard Freire: A gente utiliza o conceito do Estatuto da Juventude, que pode pegar de 15 a 29 anos, mas de fato a faixa de 18 a 24 anos tem se mostrado a mais desafiadora em termos de políticas públicas, em termos de inserção dos jovens, principalmente no mercado de trabalho (…) Por que o que acontece é: os jovens brasileiros, nessa faixa etária, estão numa fase de transição (…) No Brasil, boa parcela dos jovens tem que deixar os estudos às vezes antes da hora, antes de conseguir completar até mesmo o ensino médio. Então, essa baixa qualificação dos jovens e essa necessidade econômica de ter que trabalhar para ajudar em casa, contribuir com a família, faz com que ele abandone os estudos, às vezes, antes da hora, então ele acaba tendo pouca qualificação e acaba tendo que se sujeitar a ocupações que pagam menos, ocupações precárias, sem nenhum tipo de garantia.
Luís: Essa trajetória muda bastante a depender da classe social?
Denise: Eu considero também que a gente tem uma sociedade muito desigual, né? Então jovens de diferentes classes têm diferentes oportunidades. Então aquele jovem que é de uma classe menos favorecida, que é obrigado a trabalhar e estudar muitas vezes, ou abandonar os estudos, realmente vai ter uma realidade muito distinta do jovem que pode permanecer estudando até o final da faculdade, depois escolher até que trabalho ele vai querer fazer depois. Então a gente tem que encarar, estar ciente dessas diferentes realidades no nosso país e propor políticas para esses diferentes grupos.
Luís: Sobre os jovens considerados “nem-nem”, é correto usar esse termo para quem não está estudando e não está ocupado? Existe alguma conotação negativa nele? E aproveitando, quem são os mais afetados por essa condição?
Denise: Essa questão da controvérsia existe, sim, por quê? Porque você dizer que uma pessoa não está trabalhando, como se ela não estivesse fazendo nada, é controverso. Tanto que lá no IBGE a gente não tá usando mais esse termo, está usando que “nem estuda e nem está ocupado”. Quer dizer, não está inserido dentro do mercado de trabalho. (…) Já aproveitando a deixa: o maior grupo, dos jovens que não estudam e não estão ocupados, é o grupo de mulheres. Em torno de 65% desse grupo é formado por mulheres, e dentro desse grupo é justamente as mulheres que não procuram, não estudam e não estão à procura de trabalho, que são as inativas, que formam esse maior grupo de jovens nessa condição. Mas por que elas estão nessa condição? Porque elas têm que dar conta de trabalhos domésticos, de cuidado com a família. Muitas delas têm muito trabalho (…) porque muitas pessoas que estão nessa condição trabalham bastante, no trabalho que a gente chama trabalho reprodutivo, podem não trabalhar no mercado de trabalho em si, mas trabalham de uma outra forma que também é importante para a sociedade.
Luís: A Denise também destacou que mesmo que alguns grupos sejam mais afetados pela condição de ausência de estudo e ocupação, é necessário complexificar o entendimento desse dado.
Denise: O que acontece é que a gente tem uma diversidade de jovens muito grande no país. As pessoas passam um pouco a ideia: “nem-nem é só mulher, que não trabalha, é preto, pobre”, então existe meio que um consenso. Mas, assim, quando a gente olha em nível de país, a gente vê a importância de olhar principalmente para esses jovens nas regiões Norte e Nordeste, porque lá a maioria dos jovens realmente é inativa, não tem oportunidade. (…) Então você tem mulheres inativas, com essa questão do cuidado da família, dos filhos, mas também existe muita falta de oportunidade. Então os jovens que estão no Centro-Sul, na região Centro-Sul do país, eles são nem-nem, mas de alguma forma conseguem acessar o mercado de trabalho, mesmo precário, na informalidade muitas vezes, mas ainda existe algum acesso.
Luís: Eu ainda fiz mais duas perguntas para a Denise: que tipo de medidas podem ser tomadas pra amenizar essas vulnerabilidades e oferecer melhores oportunidades para os jovens; e também como eles podem ser preparados para as transformações que estão acontecendo no mercado.
Denise: Não existe, por parte do Estado, um planejamento. Então o jovem fica meio que à própria sorte. Você não tem políticas nem do Estado, nem das empresas. Em São Paulo, você ainda tem alguns projetos de empresas estimulando algumas áreas. Porque com essa mudança tecnológica, a gente poderia: “olha só, então vamos estimular a qualificação em determinadas áreas que realmente são necessárias para o país, que são importantes que os jovens tenham aquele tipo de qualificação”, uma coisa mais direcionada mesmo. Isso poderia ser feito tanto no nível técnico quanto no nível superior. Então você poderia pegar a parte tecnológica, você poderia pegar também a área de Meio Ambiente que tem muita coisa para ser feita, muito trabalho nessa área também que pode ser feito, e você direcionar a qualificação dos jovens para algumas áreas.
Luís: Denise, e existem bons exemplos de políticas públicas que tentaram melhorar essa situação?
Denise: No governo do Lula teve a adoção do programa de primeiro emprego, que era uma relação em que você estimulava as empresas a contratarem os jovens para o primeiro emprego. Então você poderia adicionar isso a um programa de qualificação. (…) Você pode aprimorar algumas políticas que já foram feitas em outros governos. Na Alemanha, por exemplo, você tem um estímulo muito grande. Como tem uma indústria lá avançada, você tem estímulos a alguns cursos técnicos, para os jovens poderem sair com garantia de emprego. Você pode pensar políticas casadas nesse sentido, juntar o que as indústrias precisam em termos de mão de obra (indústria e serviços, né? Os vários tipos de empresa) com a formação dos jovens. Porque você não tem como saber, você garantir que cada um tomando essa decisão que lá na frente as coisas vão se encaixar, não vão.
Luís: O mercado de trabalho do futuro gera muita preocupação para quem estuda esse assunto. Segundo o Fórum Econômico Mundial, mais de 85 milhões de empregos no mundo todo podem deixar de existir até 2025. A razão pra isso é uma mudança acelerada promovida por novas tecnologias — elas estão substituindo trabalhos humanos pelo trabalho de máquinas e algoritmos. Mas isso não quer dizer que novos empregos não serão criados: o mesmo relatório prevê que um número maior de vagas podem ser geradas, mas baseadas em novas formas de trabalhos e em diferentes habilidades.
Luís: Pra entender como isso afeta o Brasil do futuro, principalmente os jovens, a gente pode olhar pras mudanças que já são realidade. Um impacto que já foi medido é o aumento de trabalhos informais mediados pelas plataformas digitais, como os serviços de entrega ou motoristas por aplicativos.
Luís: Eu perguntei sobre isso para o Marcelo Manzano, que é doutor em economia pela Unicamp e coordenador de pós-graduação na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. O Marcelo faz pesquisas sobre desenvolvimento econômico, trabalho e informalidade e já foi consultor no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e na Organização Internacional do Trabalho.
Marcelo Manzano: Então, a informalidade ela é um fenômeno mundial, ela existe em todos os países, mas certamente ela é tanto maior quanto mais desestruturado é o mercado de trabalho de um país. O que eu quero dizer com desestruturado? Com países como os países da periferia do capitalismo, nos quais a dinâmica capitalista, a dinâmica de produção (…) não geram empregos formais em quantidade suficiente, empregos típicos, vamos dizer assim, clássicos em quantidade suficiente para absorver o conjunto da mão de obra disponível. Então há um desequilíbrio estrutural, vamos dizer assim, entre oferta e demanda por trabalho. Na verdade, isso é uma característica do capitalismo, mas nos países centrais, a própria existência do Estado de Bem-Estar Social, de políticas públicas que retardam a entrada no mercado de trabalho ou que permitem a aposentadoria, ou licenças maternidades de longa duração, todas essas políticas, chamadas políticas do bem-estar social, vão retirando trabalhadores do mercado de trabalho (…) de tal maneira que quem sobra no mercado de trabalho é um volume muito menor, e portanto há um equilíbrio, digamos assim, mais virtuoso entre oferta e demanda de mercado de trabalho. Nos países da periferia, esse equilíbrio nunca se colocou e creio que jamais se colocará. Logo, esses trabalhadores têm que se virar para viver, até porque não há política social que garanta as suas rendas.
Luís: As informações desse trecho de reportagem que a gente ouviu são da consultoria iDados. Elas conversam com as informações da PNAD contínua que mostram que a informalidade vem aumentando principalmente depois de 2015. Eu perguntei para o Marcelo o que explica isso.
Marcelo: Pois é, o Brasil viveu nesse período, e vamos dizer assim de 2015 e 16 para cá, uma sobreposição de crises ou de problemas que afetaram muito claramente o mercado de trabalho. E isso vai abrir espaço ou vai ser um ambiente favorável para que atividades laborais precárias avancem, prosperem. Vamos lembrar: primeiro, tivemos uma recessão 2015/2016; em seguida, nós tivemos, antes da reforma trabalhista inclusive, temos visto no Brasil desde 2015 uma série de medidas que podemos caracterizar como típicas medidas de neoliberais, desde ajuste fiscal, que depois se transformou em teto de gastos, depois tivemos a reforma trabalhista, a reforma da previdência. Então é um conjunto de políticas neoliberais que deprimem nosso mercado de trabalho, e a reforma trabalhista vem nesse momento flexibilizando ainda mais as regras de contratação, tornando mais desfavorável do ponto de vista dos trabalhadores a relação assalariada.
Luís: Aqui, o Marcelo está falando da reforma trabalhista de 2017. Ela foi definida como uma reforma modernizante por alguns setores empresariais, mas recebeu críticas de partidos trabalhistas e pesquisadores por fragilizar a seguridade social e determinar que “o acordado prevalece sobre o legislado”. Vamos ouvir, então, o que ele diz sobre isso.
Marcelo: Os trabalhadores perdem acesso à justiça do trabalho, perdem condições de sindicalização, você enfraquece brutalmente os sindicatos (…) a relação entre trabalhador e a empresa não é mais mediada pelo sindicato. Então ele fica muito mais frágil, é uma pessoa sozinha individual tendo que negociar com uma grande empresa. Antes, o sindicato intervia nesse processo e garantia uma condição mais isonômica, né? Enfim, é um conjunto de fatores que joga contra a condição do trabalhador na sociedade brasileira. E a crise, em seguida a pandemia, e nesse momento, então, justo nesse ambiente, coincidentemente está se desenvolvendo no mundo, principalmente em 2014 e 2015, que avança no mundo, chega no Brasil com grande força o uso das plataformas digitais como uma solução para organizar o trabalho.
Então eu diria que nesse terreno muito desfavorável ao trabalho (…) nesse ambiente, quando se inocula, quando aterrissam e se disseminam essas tecnologias de plataforma, elas têm muita frente para crescer no Brasil porque os trabalhadores estão muito vulnerabilizados. Se você vai a outros países onde o mercado de trabalho é mais regulado, onde o desemprego não é tão elevado, onde os trabalhadores têm mais políticas sociais que garantem a eles uma maior autonomia frente a condições de trabalho, se a gente compara nos outros países, essas tecnologias não geraram o volume de ocupados em plataformas como gerou aqui.
Luís: Essa fala do Marcelo é reforçada por alguns dados da PNAD. A pesquisa mostra que o número de trabalhadores motoristas no Brasil aumentou um pouco mais que 40% entre 2016 e 2020. Já o de trabalhadores que conduzem motos cresceu 39% no período.
E se esse tipo de trabalho aumentou, é importante entender quem ocupa esses postos de trabalho. A PNAD da covid-19 mostrou que a jornada desses trabalhadores pode chegar a 44 horas semanais para garantir ganhos mensais médios que ficavam entre R$ 1500 e R$ 1800 em novembro de 2020. Além disso, quase metade deles tem apenas o ensino médio completo, e os jovens entre 20 e 29 anos são maioria entre os entregadores.
O Marcelo finaliza comentando que o aumento desses trabalhos informais não foi contido pela reforma trabalhista.
Marcelo: E surpreendentemente, já que o nosso tema aqui é a informalidade, a reforma trabalhista aumentou a participação dos informais na economia brasileira. No mercado de trabalho brasileiro, hoje a proporção de informais é maior do que em 2014, o momento pré-crise. (…) Está gerando, em especial, muito emprego como “conta própria”, informal. “Conta própria” é uma categoria que está crescendo muito desde a crise de 2014, numa demonstração de que as pessoas não têm muito como se encaixar no mercado de trabalho e buscam uma solução. O que é uma situação muito precária. Essas pessoas estão muito vulneráveis (…) nós temos praticamente um quarto da força de trabalho ocupada no Brasil na condição de conta própria, o que dá próximo de 24 a 25 milhões de pessoas trabalhando como conta própria, um em cada quatro brasileiros. É muito, é uma proporção muito grande se você compara com os europeus, é menos de 10%, é 8%, então é muita gente.
Luís: Nesse último bloco, eu fiz algumas perguntas para a pesquisadora Julice Salvagni. A Julice é doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela investiga principalmente o mundo do trabalho e também integra a parte brasileira do projeto Fair Work, que é uma pesquisa de amplitude mundial vinculada à Universidade de Oxford. Essa pesquisa procura entender as condições de trabalho em empregos mediados por plataformas digitais em diversos países.
Eu comecei perguntando qual termo é mais adequado para explicar esse fenômeno recente no mundo do trabalho: uberização ou plataformização?
Julice Salvagni: Eu tenho preferido usar o termo plataformização (…) então a plataformização nos permite compreender o fenômeno, na minha concepção, de maneira mais ampla (…) ainda que a gente tenha na história dos processos de trabalho nomes de processos que são vinculados com certas marcas, o fordismo, o toyotismo, o taylorismo, a uberização seria outro deles, e a gente sabe que o fordismo não se restringia ao sistema Ford, mas de todo modo a plataformização nos parece ser um nome mais adequado.
Luís: Você pode detalhar, então, a plataformização e os discursos que giram em torno dessa nova forma de trabalhar?
Julice: Então a gente entende por plataformização uma infraestrutura tecnológica, que tem ditado um processo de trabalho de tantos que aconteceram ao longo da história do capitalismo. (…) Havia a plataformização antes do próprio advento da tecnologia, como a pesquisadora Ludmila Abílio faz referência às vendedoras de Avon, então era um sistema já de trabalho por plataforma ainda que não se tratasse de uma plataforma digital. Mas isso ganha massividade (…) isso exponencializa um processo de trabalho que é caracterizado sobretudo pela ausência de vínculo. Então pela flexibilização das formas de trabalho, se ao mesmo tempo que a flexibilização tem alguns aspectos que são interessantes, como “faço meu próprio horário”, “trabalho quantos dias por semana eu quiser e tenho condições de ampliar ou diminuir a minha carga de trabalho”, por outro a gente tem visto que essa flexibilização do trabalho é uma farsa porque as pessoas ganham tão pouco e elas são tão desprotegidas de direito que elas acabam trabalhando mais e ganhando menos do que se elas tivessem em empregos protegidos e que têm certo cumprimento de horários (…) Mas da maneira como a plataformização coloca isso, ela se coloca não como uma empregadora, mas como uma empresa que faz a intermediação de trabalho, e isso é muito perigoso, porque aí a gente tem a destruição completa dos direitos protetivos dos trabalhadores e das trabalhadoras, já que não é uma responsabilidade desse intermediário, dessa empresa que faz a intermediação.
Áudio da CNN Brasil: “Esses motoboys que vocês estão vendo, eles estão cobrando uma ajuda das empresas para comprar equipamentos de proteção como luvas e máscaras, e eles estão acusando essas empresas de reduzirem a comissão por entrega mesmo com o aumento dos pedidos durante a pandemia”.
Luís: Julice, o que a plataformização traz de novo, especialmente quando a gente pensa nos jovens?
Julice: A questão dessas infraestruturas tecnológicas que são as plataformas é que elas conseguem criar alguns artifícios de mascarar certas instâncias de controle que o trabalho informal não tinha. (…) Não todas elas, mas, por exemplo, quando uma pessoa faz uma entrega com uma bicicleta, quem precifica essa entrega normalmente é a plataforma, não é o próprio trabalhador. (…) Então essas regras do quanto que a pessoa ganha para trabalhar, muitas vezes, não é clara para o trabalhador, para a trabalhadora. Então acho que essa é uma questão. O fato de essas infraestruturas funcionarem não de maneira linear e simplesmente natural, mas o fato de elas funcionarem por meio de um algoritmo também contribui para que se tenha certos direcionamentos ou intencionalidades feitas. (…) Então há alguns agravantes nesse aspecto do trabalho por plataforma, por todo esse atravessamento dessas tecnologias, dessa extração de dados, dessa análise de dados, dessa tipificação, dessa gameficação. (…) Então tudo isso cria atrativos que distanciam o trabalhador do seu cliente, da pessoa para quem ele vai prestar serviço, (que antes teria uma conversa mais pessoal), e também faz com que não fiquem claras as regras de quanto a pessoa ganha e as condições.
Luís: Julice, o projeto do qual você faz parte, o Fair Work Brasil, realiza pesquisas tanto com trabalhadores quanto com as plataformas para entender onde estão as maiores queixas sobre essa relação de trabalho e tentar melhorar essa situação. Você pode, então, explicar como o projeto funciona?
Julice: Falando do Fair Work, (…) é um projeto de pesquisa-ação, é uma pesquisa que ao mesmo tempo que está coletando dados ela busca interferir de alguma maneira na realidade, e que é coordenada por Oxford e que hoje está em mais de 40 países. Então desde 2019 nós temos o Fair Work Brasil realizando a pesquisa com as plataformas aqui no contexto brasileiro. A Fair Work hoje tá abrindo muitas frentes de trabalho, é um grupo muito grande de pesquisadores espalhados ao redor do mundo e que têm criado cada vez mais projetos que são distintos.
Luís: Por que vocês destacam que a Fair Work é uma pesquisa-ação?
Julice: A pesquisa do Fair Work é uma pesquisa-ação porque a gente justamente dialoga com a plataforma mostrando quais são as questões que nós gostaríamos de ver implementadas. Não o ideal, a gente sempre diz assim que o trabalho, esse conceito de trabalho decente, não é o ideal, mas é o mínimo, então é o mínimo que a gente espera que um espaço que se coloca na intermediação do trabalho venha a oferecer.
Luís: A Julice também falou sobre os cinco princípios do trabalho decente, que foram definidos pela OIT, que é a Organização Internacional do Trabalho. Para a pesquisa, a Fair Work discutiu coletivamente esses princípios entre todos os países participantes do projeto, chegando então a dez princípios.
Julice: Então são cinco princípios e cada um deles se desdobram em outros dois, virando os dez princípios que é a nota que a gente dá para cada uma das plataformas. Então esse da remuneração, o primeiro ponto é de garantir que os trabalhadores ganhem pelo menos um salário mínimo local. E aí se eles atingem esse ponto, a gente vê o segundo ponto que é garantir que os trabalhadores ganhem pelo menos um salário mínimo ideal; (…) o segundo princípio diz respeito às condições de trabalho. E aí a gente vê, num primeiro momento, se as plataformas têm alguma estratégia de mitigar os riscos específicos da tarefa e, no segundo momento, se garante condições de trabalho seguras e uma rede de segurança. (…) O terceiro princípio é de contrato, então a gente analisa os contratos, os termos que são oferecidos pelas plataformas, (…) se as pessoas conseguem entender, se elas têm acesso a esse contrato assinado; e num segundo momento, se está assegurado que não são impostas cláusulas abusivas.
O quarto princípio é da gestão. E aí, no primeiro momento, a gente vê se a plataforma proporciona o devido processo legal para as decisões que afetam os trabalhadores. E se alguma coisa deu errado, se existe algum canal acessível para que a pessoa possa buscar alguma forma de comunicação com a plataforma, por quem ela é atendida, se é atendida por uma pessoa humana ou se é simplesmente um robô. (…) O quinto e último princípio diz respeito à representação. Então a gente vê, no primeiro momento, se essa plataforma assegura a liberdade de associação e expressão do trabalhador e, no segundo momento, se apoia a gestão democrática.
Luís: O Fair Work já publicou pesquisas anteriores e agora está preparando uma nova pesquisa. Como vocês abordam os trabalhadores e como as próprias plataformas são envolvidas nesse processo?
Julice: Nós desdobramos esses cinco princípios (que viram dez) em um extenso roteiro de entrevista, e nós vamos entrevistar então agora mais de cem pessoas para poder dar conta de avaliar, averiguar todos esses pontos. (…) As empresas são envolvidas, sim, nós temos uma equipe que faz as entrevistas com as plataformas. Então nós falamos com todas as plataformas, exceto aquelas que não querem conversar com a gente, mas, assim, tentamos contato com todas as plataformas, e quando nós temos um resultado que é preliminar, esse resultado também é colocado às plataformas, e a gente vai junto com elas e discute cada um dos pontos para se assegurar que nós estamos fazendo uma interpretação correta daquele ponto.
Luís: Na nossa conversa, ela destacou que a pesquisa publicada pelo Fair Work em março de 2022 revelou condições ruins de trabalho em seis plataformas. A classificação das empresas vai de 0 a 10, recebendo um ponto para cada princípio do trabalho decente que é contemplado. E ela complementou falando como a plataformização afeta outras profissões e destacou sua preocupação em relação a isso.
Julice: A gente gosta de falar que não se trata apenas de entregadores e motoristas, ainda que essas sejam as funções mais visíveis, as que a gente mais reconhece ou mais interage. Há uma crescente nesse movimento de plataformização para várias outras atividades, seja dos próprios jornalistas e comunicadores, seja do pessoal de T.I., seja de professores e profissionais da saúde também em crescente nessas plataformas. (…) Então nos parece ser um caminho sem volta, e por isso que preocupa a exponencialidade que esse processo de trabalho vem tomando.
Luís: Eu também aproveitei para perguntar como os jovens enxergam a plataformização e quais características esse grupo tem em comum com essa nova forma de trabalhar.
Julice: Tem uma autora, que é a Gabriella Lukács, ela é norte-americana, e ela pesquisa essas questões das plataformas e das mídias sociais e tal em uma perspectiva de gênero, mas também numa perspectiva da juventude. E ela tem um conceito, que eu acho que pode te ajudar, que é muito importante, que ela fala assim: que essas plataformas digitais, elas têm as características jovens (…) que é coisa desse trabalho para passar essas instâncias digitais de acontecer sem muita regra. (…) Então as pessoas que têm, em tese, mais idade ou que tiveram um processo de socialização sobretudo um pouco mais tradicional, digo assim no sentido de ter uma empresa com um horário fixo, de ter aquele costume do horário do almoço, de ter o costume de zelar pelo domingo, (…) teriam mais dificuldade de se encaixar nesse trabalho de plataforma e que, por isso, as plataformas dariam certa preferência às pessoas mais jovens por, em tese, terem mais facilidade de se adequar a essas novas regras.
Luís: Antes de finalizar as conversas, eu perguntei para os três entrevistados como eles imaginam os próximos 10 anos nesse cenário de trabalho, especialmente para os jovens.
A Julice Salvagni destacou que a plataformização pode atingir outras funções, inclusive aquelas que tradicionalmente têm mais direitos.
Julice: Em termos do que a gente pode fazer ou está fazendo, eu acho que há pelo menos três caminhos. (…) Então, assim, não precisaria criar uma nova reforma porque a CLT ela já é suficiente, não excelente, mas ela já garante várias instâncias protetivas. (…) Por outro lado, todo esse pacote de proteção da CLT, ele tem que vir de alguma forma adaptado a essas dinâmicas que acontecem nas plataformas, porque os trabalhadores também não querem perder essa flexibilidade que foi entre todas as pessoas conquistada nessa outra forma de trabalhar. Não é todo mundo que está descontente com essa questão, ainda que se tenha uma perda de direito clara e visível. Também tem um outro lado, a gente enquanto pesquisador também não pode projetar o mundo ideal que nós queremos, sendo que quem tem que pensar isso é o coletivo de trabalhadores e trabalhadoras que estão envolvidos com as plataformas, e a gente precisa chegar num acordo que seja comum sobretudo para quem está trabalhando.
Luís: E ela finalizou destacando o chamado “cooperativismo de plataforma”, que são conjuntos de trabalhadores que se unem para criar e gerir plataformas de serviços.
Julice: E ainda há uma outra instância de possibilidades que a gente vem trabalhando que é o que a gente chama de cooperativismo de plataforma, que são as plataformas que têm emergido de maneira a assegurar a autogestão dos trabalhadores e das trabalhadoras. Então ainda é um movimento um pouco tímido, de plataformas que são ainda pequenas, porque existe todo um custo dessa infraestrutura tecnológica que, muitas vezes, as pessoas não conseguem arcar. (…) Também não tem um número ainda assim superexpressivo de trabalhadores e trabalhadoras vinculados, apresenta uma série de desafios a esse mercado que vai competir com gigantes, que conseguem muito espaço pela forma como trabalham e operam, não só explorando a força de trabalho humana, mas vendendo dados, que é chamado de petróleo moderno.
Luís: Já o Marcelo Manzano destacou que o mercado de trabalho historicamente nunca absorveu toda a mão de obra disponível.
Marcelo: Esse é um problema que sempre existiu, e eu considero que ele é cada vez mais grave principalmente em países da periferia como o Brasil. Principalmente nesse momento de tecnologias 4.0, tecnologias que podemos chamar de digitalização, plataformização, como quer que seja. Essas tecnologias, em um certo sentido, estão eliminando muitos postos de trabalho. Então, nesse contexto, e pensando aí nos 10 anos, na sua provocação de como a gente pode pensar o mercado de trabalho, eu acho, portanto, que do ponto de vista estrutural, da dinâmica econômica propriamente dita, não há nada muito alvissareiro, nada muito animador.
Luís: O Marcelo também destaca que alguns pesquisadores e representantes políticos já discutem ocupações financiadas pelo Estado para garantir emprego e renda para os trabalhadores que podem ficar de fora do mercado de trabalho tradicional.
Marcelo: E imagino, portanto, que caberia ao setor governamental não empregar as pessoas no governo, não é disso que eu estou dizendo, mas é patrocinar, financiar atividades que absorvam as pessoas. (…) Falando do desemprego juvenil, que os jovens possam, no seu período de cursar universidade, em que estão dedicados aos estudos, que eles possam permanecer na universidade, (…) que eles possam suprir essa renda, por exemplo, organizando campeonatos no seu bairro, organizando atividades esportivas, participando de atividades culturais, festivais de música. (…) Cabe ao setor público fazer esse arranjo, estruturar esse tipo de solução e garantir o financiamento disso. Ao garantir, inclusive, esses recursos, o Estado vai até de uma certa forma dinamizar a economia, dinamizar algum tipo de atividade nos bairros, na periferia, nas praças públicas, que vai até ajudar o crescimento dos pequenos negócios, o crescimento de alguns setores de atividades específicas, como a chamada economia criativa, produção cultural, produção de equipamentos musicais, etc. etc.
Luís: E, por fim, a fala da Denise Guichard Freire é sobre oportunidade, que inclusive é uma palavra que eu levei para o título desse episódio “Trabalho, juventudes e oportunidades”. A Denise destaca a importância do Estado em olhar para os jovens como uma fonte de potencial que não pode ser perdida.
Denise: Você tem a questão das poucas oportunidades, né? Normalmente, os jovens enfrentam, principalmente aqueles que querem tentar o primeiro emprego, né? Não existem políticas públicas adequadas que estimulem essa inserção dos jovens para o primeiro emprego, que estimulem as empresas a dar oportunidade. (…) O que eu vejo que é uma saída, é você, em primeiro lugar, estimular a permanência dos jovens nas escolas, no ensino médio, oferecendo bolsas em nível estadual ou federal para que, assim como o tempo no nível superior, deveria haver um programa para os jovens do ensino médio também, para eles permanecerem estudando, permanecerem se qualificando, mas, para isso, eles precisam de bolsa para se manter, que a família, muitas vezes, não tem condições de manter aquele jovem estudando, ele precisa ajudar também em casa. Então a gente tem que ter políticas públicas que favoreçam a qualificação dos jovens, deixando ele estudar, deixando, depois, ter condição de fazer o Enem, fazer um nível superior para poder se qualificar.
Luís: Esse foi o primeiro episódio do podcast “O mundo em 10 anos”, que trouxe pesquisadores e dados para falar sobre trabalho, juventudes e oportunidades.
Essa produção é parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso na pós-graduação em Jornalismo Científico do Labjor da Unicamp e foi orientada pela professora doutora Sabine Righetti.
Para esse episódio, foram usados áudios dos veículos TV Brasil, EPTV, Rede Globo, G1, Rede Record, R7, TV Aparecida e CNN Brasil.
Até mais!
Esse episódio usou trilhas pagas de Soundstripe.com e trilhas sob licença Creative Commons – Music by Jason Shaw on Audionautix.com.