A agropecuária é uma atividade de extrema importância para a sobrevivência humana e para a economia do Brasil. No entanto, com o agravamento das mudanças climáticas, a segurança alimentar de grande parte da população mundial pode estar em risco. Por isso, entenda como funciona a produção de alimentos na porteira para dentro (nas fazendas) e seus impactos na porteira para fora (com os consumidores) e descubra como a ciência continua buscando alternativas sustentáveis para garantir um futuro com mesas fartas para todos.
A série Escuta Clima é produzida pela Camila Ramos e está ligada ao curso de Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp. O projeto tem o objetivo de divulgar as pesquisas e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas (INCT-MC) e é apoiado pela bolsa Mídia Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
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Camila Ramos: Café, milho, arroz, feijão, soja, girassol, mandioca e frutas de clima temperado, como pêssego e uva, são alimentos que estão em risco por causa do aquecimento global.
Risco é uma palavra importante quando falamos sobre a agricultura, isso porque é dependente dos recursos naturais, ou seja, qualquer alteração no clima pode afetar as condições do solo, da temperatura, da disponibilidade de água, prejudicando a safra da estação.
Portanto, quando pensamos em um futuro com, pelo menos, 1,5ºC a mais na temperatura global, pensamos também em mais pessoas em situação de vulnerabilidade. Além disso, se não for bem planejada, com consciência ambiental, a atividade pode causar mais danos ao clima.
No episódio de hoje, vamos conversar com pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas para entender como a produção de alimentos pode se tornar mais sustentável nos próximos anos e, ao mesmo tempo, garantir uma maior segurança alimentar.
E entre as medidas sustentáveis estão a agrofloresta e a recuperação de áreas de pastagens degradadas, que são áreas de pesquisas dos nossos entrevistados: o Jurandir Zullo Junior, que é pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura, o CEPAGRI, da Unicamp; a Priscila Coltri, que é agrônoma, pesquisadora e diretora do CEPAGRI; e o João Paulo, que é engenheiro agrônomo e doutorando da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp.
Eu sou Camila Ramos e você está ouvindo o Escuta Clima. Um podcast para divulgar as pesquisas do INCT Mudanças Climáticas, que é vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, o Labjor. O Escuta Clima é também uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas.
[Vinheta do podcast Escuta Clima]
Camila Ramos: Segurança Alimentar é definida como uma situação em que todas as pessoas, a todo momento, têm acesso físico, social e econômico a alimentos nutritivos, seguros e suficientes para as suas necessidades diárias e preferência alimentar para uma vida ativa e saudável. Essa é uma definição da FAO (Food and Agriculture Organization), que é um braço das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura.
Ainda segundo a ONU, devemos chegar ao número de 9,7 bilhões de pessoas no planeta até 2050 e cerca de 11 bilhões até o final do século. Essa foi a conclusão do relatório intitulado Perspectivas Mundiais da População de 2019.
Nesse cenário, será que conseguimos garantir uma segurança alimentar para toda essa população? O Jurandir responde essa questão:
Jurandir Zullo Junior: Olha, garantia é difícil, porque o desafio da segurança alimentar não é só a produção, é a distribuição e o acesso ao alimento. Na verdade, a alimentação não é só produzir o alimento, é, de alguma forma, dar acesso ao alimento. Então, tem a parte econômica, tem a parte cultural, porque as pessoas… Cada região, cada país tem uma cultura alimentar diferente. Então, assim, dá para dividir, como nós fazemos na área agrícola, “da porteira para dentro” e “da porteira para fora”.
Camila Ramos: A porteira para dentro seria a produção de alimentos em si, ou seja, os campos de plantações e a criação de animais. Já a porteira para fora seria todo o caminho seguido pelos produtos da fazenda até a nossa mesa, desde o transporte, as condições das estradas, até a indústria e o mercado.
Então, para garantir uma segurança alimentar é preciso levar em consideração não apenas os recursos naturais, mas, também, os aspectos econômicos e a desigualdade social, que limitam o acesso das pessoas aos alimentos dependendo, por exemplo, de onde eles são vendidos e dos preços na hora da compra. Outra questão importante a se considerar é o desperdício, que o João comenta:
João Paulo: Além de questões econômicas mais gerais como emprego e renda, medidas que favoreçam o acesso ao alimento devem tratar da redução das perdas que ocorrem entre a lavoura e a mesa das pessoas. De acordo com a FAO, cerca de um terço do que é produzido no mundo, acaba se perdendo nesse trajeto, o que, na prática, significa comida deixando de chegar ao prato das pessoas. Os sistemas e as etapas envolvidas a cada refeição que fazemos é complexo e obstáculos importantes ainda precisam ser superados.
Camila Ramos: Bom, como estamos falando sobre as mudanças climáticas, vamos entender o processo que acontece da porteira para dentro e como a produção de alimentos pode afetar e ser afetada pelo aquecimento global.
A agropecuária é conhecida como um dos grandes fatores que intensificam as mudanças climáticas, uma vez que essa é a principal forma de transformação do solo no Brasil atualmente.
Quando não há um planejamento responsável de conservação ambiental ou, até mesmo, é feita de forma ilegal, a agropecuária pode envolver a abertura de grandes áreas da vegetação nativa, degradando a região para o plantio (geralmente as monoculturas) ou para criação de gado (na maioria das vezes de forma extensiva). Por isso, é preciso pensar em alternativas, novas técnicas e boas práticas. O João, que estuda especificamente áreas de pastagens para pecuária, comenta sobre as práticas sustentáveis da produção de carne:
João Paulo: No entanto, se olharmos para as práticas conservacionistas da produção de pastagem, vemos que, recuperando áreas de pasto degradado é possível mitigar quase quatro toneladas de carbono por hectare em apenas um ano. A maior parte dessas áreas estão sendo subutilizadas, ou seja, com menos gado do que poderia, o que reduz o retorno monetário pelo produtor e deixa o empreendimento menos sustentável. Considerando que o Brasil tem 167 milhões de hectares de pastagens, fica evidente o potencial ambiental envolvido.
Camila Ramos: Atualmente no Brasil, existem grandes áreas de pastagens que estão degradadas e que, se uma parcela for recuperada, já pode ajudar na mitigação dos impactos ambientais, ao mesmo tempo, o aumento de produtividade desses campos pode evitar que mais áreas de pastagens sejam abertas. A proposta do João é aprimorar esses dados, passando do quantitativo para o qualitativo, como ele explica:
João Paulo: Nos nossos estudos, estamos avaliando o potencial produtivo de áreas de pastagens distribuídas por todo o território nacional e definindo a distribuição espacial de áreas que mostram que pastagens bem manejadas podem apresentar eficiência comparável a vegetação nativa na mitigação de carbono da atmosfera.
Camila Ramos: Da mesma forma que na pecuária, a agricultura, se não for feita com bases sustentáveis e responsáveis, pode se tornar um problema. Que é o que estamos vendo atualmente na expansão da fronteira agrícola no Cerrado, na Amazônia e em outros biomas brasileiros, ameaçando tanto a biodiversidade local quanto as comunidades tradicionais. Aliás, esse é o tema do próximo episódio. Por isso, não deixe de acompanhar a série de podcast nessa mesma plataforma que nos ouve agora!
A Priscila comenta sua visão sobre esse assunto:
Priscila Coltri: Eu particularmente, enquanto agrônoma, eu não gosto muito dessa visão de que a agricultura é a vilã. Eu acho que a agricultura, se ela for bem manejada, se ela for manejada de forma sustentável, sem desperdício, ela consegue ser a área que produz alimento, a área que pode sequestrar uma série de gases de efeito estufa e a área que, no Brasil, é um dos grandes pontos econômicos.
Camila Ramos: Como a Priscila falou, a produção de alimentos continua sendo uma atividade essencial para humanidade e é a principal fonte econômica do país. Por isso, é preciso pensar em alternativas. A primeira opção sustentável é a valorização das culturas locais, que a Priscila novamente explica:
Priscila Coltri: Quando a gente vê que o risco das culturas que atualmente estão sendo plantadas aumentam, a gente tem que olhar por um outro lado também, que talvez nos abra outras oportunidades de cultivar algumas culturas que são nativas daquele local. Talvez seja hora de repensar um pouco quais são as culturas que estão sendo plantadas em algumas regiões e dar a chance para as culturas locais, para que essas culturas locais possam, também, se destacar criando um novo negócio. E aí, as áreas agrícolas nesse sentido tem esses dois lados. Ao mesmo tempo que elas podem ser grandes emissoras de gases de efeito estufa, se bem manejada, se manejadas de forma sustentável, elas podem ser grandes sequestradoras de gases de efeito estufa, estocando CO² em sua biomassa, no solo e deixando essa relação de produção neutra. A gente também tem a chance de olhar para novas culturas e novos negócios. Então a cultura da palma e N outras culturas que podem aparecer ali, como uma nova chance de negócio para esse povo local que pode se tornar muito mais vulnerável em cenários futuros de mudanças climáticas.
Camila Ramos: Um exemplo disso é o café, que é um produto extremamente importante na história do Brasil até os dias atuais. Ele era produzido em grande escala algumas décadas atrás, dentro de enormes fazendas em diversas regiões do país. No entanto, esse grão tem uma faixa climática muito estreita. Para o fruto se desenvolver, é preciso uma média anual de 23ºC e, se a temperatura ultrapassar os 35ºC, as flores podem acabar abortadas e, consequentemente, a planta não terá frutos.
Então, em vista do aquecimento global, o risco de produção aumenta, o que pode afetar a economia. A Priscila fala sobre esse exemplo específico, que é parte da sua pesquisa em parceria com o Jurandir:
Priscila Coltri: A produção, ao longo dos anos, pode ser que ela caia, mas o que a gente tem visto nos últimos anos é uma mudança de área de plantio. Então, alguns estudos a gente já realizou e a gente viu que ao invés de grandes propriedades como era plantado antigamente, essa cultura está se reduzindo em pequenas propriedades e em algumas localidades que climaticamente são mais adequadas para elas. Como em São Paulo, a gente reparou que o plantio tem se concentrado em locais menores e em locais que antigamente eram de origem, que são locais que têm uma altitude maior, então são pouco mais frio que os outros e que para São Paulo é um frio que é adequado para a cultura.
Camila Ramos: Além disso, a produção de café também começou a prezar mais pela qualidade e a especialidade do grão e da torra do que pela quantidade da safra, como antigamente. Isso porque, atualmente, o mercado pede um café mais gourmet.
Bom, outro problema do café (e que pode ser um desafio de outras espécies de plantas) é a questão das doenças, que ocorrem em uma faixa climática específica. Com o aumento da temperatura, a ocorrência de pragas pode ser antecipada e danificar a safra. Como o Jurandir comenta:
Jurandir Zullo Junior: Às vezes, você pode ter doenças novas, porque elas não aconteciam ali porque você não tinha a faixa favorável, e pragas, também. E doenças talvez que eram endêmicas ali e, de repente, desaparecem. Podem desaparecer porque fica desfavorável para ela né, mas surgem outras, né. Por isso que é um desafio isso. Também é um desafio de adaptar as plantas, porque o melhoramento genético no Brasil é muito focado em pragas e doenças, mais de 90% dos melhoramentos, segundo a Embrapa.
Camila Ramos: Outra alternativa para tornar a produção de alimentos mais sustentável é a agrofloresta, que, inclusive, já está sendo utilizada em algumas culturas do café.
A agrofloresta é uma técnica na qual são unidos os produtos agrícolas com produtos florestais. Ou seja, ao contrário da monocultura, aqui é possível cultivar diversos alimentos em uma mesma área de forma que as plantas ajudem umas às outras. Por exemplo, uma árvore pode fazer sombra para um arbusto que não aguente altas temperaturas, como o café. No entanto, é preciso muito estudo para saber quais produtos podem ser plantados juntos para que não haja competição por nutrientes e recursos naturais.
De modo geral, a agrofloresta pode trazer mais benefícios que malefícios, desde que bem planejada. Ouça a explicação da Priscila:
Priscila Coltri: A agrofloresta, ela também tem um outro lado que é muito bom economicamente é que você passa… que você pode ter também a produção de outros produtos juntos naquela área. Então, a gente já viu às vezes a produção de manga associada ao café arábica e, enfim, a gente pode ter outros produtos que, às vezes, numa época de queda no preço do grão, pode fazer com que o produtor tenha uma renda ali a mais do que só aquele grão que talvez esteja numa época de baixa.
Camila Ramos: Além disso, a técnica incentiva a plantação de árvores, o que é ótimo para o meio ambiente. E é possível, também, associar as plantações com a criação de animais.
Bom, sabemos que essas técnicas são boas alternativas. Mas elas não são amplamente disseminadas e colocadas em práticas pelos produtores, já que ainda temos a predominância de monoculturas e criações extensivas. Por isso, vamos entender quais são os obstáculos e como superá-los.
Entendemos nesse episódio que a agropecuária é uma atividade de risco e é dependente dos recursos naturais, como clima, temperatura e disponibilidade de água. Também vimos várias opções sustentáveis para o futuro da produção de alimentos. Então, quais os obstáculos pros agricultores colocarem essas alternativas em prática? O João responde essa questão:
João Paulo: Os obstáculos enfrentados pelos agricultores para a adoção dessas práticas são vários. Começando pelos entraves culturais, vemos que o tradicionalismo é uma característica marcante, principalmente entre os produtores de menor poder econômico, educacional e social. Isso, porém, não significa que eles sejam fechados para melhorias, mas é preciso mostrar como fazer e os resultados obtidos para incentivá-los a incorporar novas práticas na sua produção.
Camila Ramos: O que o João disse é muito interessante, afinal, as técnicas desenvolvidas dentro da academia, pesquisadas e aprimoradas estão muito distantes do agricultor no interior do país com sua fazenda familiar, cujo sucesso da produção é essencial para garantir sua renda. Nesse aspecto a Priscila pontua:
Priscila Coltri: É muito complicado você entrar com uma técnica nova e que se não for bem feita, pode não dar certo em áreas nas quais os produtores não acreditam nem na técnica, nem nas mudanças do clima. Então tem que ser todo um trabalho, acho que do setor mesmo e com a iniciativa pública e com os institutos e com a Ciência em geral, para conscientizar.
Camila Ramos: O Jurandir concorda com esses pensamentos e complementa:
Jurandir Zullo Junior: O agricultor é um grande tomador de decisões, então ele precisa estar sempre tomando decisões, se ele vai comprar um ou dois sacos de adubo, o que ele vai plantar, quando ele vai colher, onde ele vai vender. Ele está sempre tomando decisões. Acho que a nossa função, no lado científico, é ajudar a fornecer essas informações.
Camila Ramos: Outro fator que estimula a adoção de novas práticas pelos agricultores de diversas escalas de produção é a pressão externa. Desde o consumidor que começa a exigir selos que atestem a qualidade e segurança do produto quanto ao uso de agrotóxicos, ou ainda selos que garantam uma produção sustentável e orgânica, até pressão internacional de países como a França, que estão decidindo diminuir sua dependência de alimentos produzidos no Brasil em áreas de desmatamento e degradação ambiental. O que é um problema, pois apesar de haver realmente desmatamento e degradação associados à produção de alimentos, não podemos generalizar a atividade agropecuária no Brasil. Os desmatamentos e queimadas em florestas nativas são atividades ilegais, como o João explica:
João Paulo: Antes de generalizar, é preciso entender melhor a dinâmica por trás da pecuária que sucede o desmatamento criminoso, que se divide em duas fases. Primeiro, ocorre a extração da madeira e do minério de maior interesse econômico. Em seguida, a vegetação menos valiosa é derrubada e queimada para limpeza da área, que posteriormente será submetida à manobra de falsificação de documentos para se obter a posse da terra, atividade comumente conhecida como grilagem. O pouco gado que vem após a remoção da vegetação nativa serve apenas para reforçar a demarcação da terra invadida. E após conseguir a posse dessa terra, ela então é colocada à venda, praticando o mesmo valor de terras legais ou se torna um empreendimento rural. O que vemos aí não é um sistema sustentável de obtenção de lucro da comercialização da produção agrícola, que respeita regras ambientais de mercado, mas, sim, uma extração de recursos naturais de valor econômico de forma predatória combinado com a especulação imobiliária.
Camila Ramos: Mas vamos entender melhor sobre os impactos dessas atividades ilegais contra os ecossistemas brasileiros no próximo episódio. Por isso, não deixe de acompanhar a série de podcast nessa mesma plataforma que nos ouve agora.
Eu sou Camila Ramos. E este é o Escuta Clima. Um podcast sobre pesquisas relacionadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas. Este podcast é apoiado pelo Programa Mídia Ciência da FAPESP. Este projeto de jornalismo científico, está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, da Unicamp. E é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. Tem a supervisão científica da pesquisadora Simone Pallone de Figueiredo e jornalística da pesquisadora Susana Dias.
A trilha sonora foi desenvolvida pelo Lucas Carrasco, que tem apoio do PIBIC, do CNPq. A edição do podcast é feita pelo Octávio Augusto Fonseca, da Rádio Unicamp, com apoio do Gustavo Campos, que tem suporte da bolsa SAE. A divulgação nas redes sociais é feita pela Helena Ansani Nogueira. A locução da vinheta é de Bruno Moraes.