O tema deste quinto episódio do Casa de Orates é a saúde mental de pessoas afetadas por tragédias. Como seguir a vida após uma grande catástrofe? Que tipo de suporte essas pessoas precisam? Para explicar um pouco sobre toda a estrutura de apoio psicológico presente nesses cenários, trouxemos alguns eventos que marcaram a história do Brasil na última década: o incêndio na boate Kiss, o rompimento da barragem em Brumadinho e a queda do avião da Chapecoense. Além da perda de pessoas queridas, os afetados ainda têm que lidar com a impunidade, já que todas essas tragédias foram consideradas crimes e os processos seguem em aberto.
Conversamos com Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres, que atuou nessas tragédias, e com Maria Carolina da Silveira Moesch, psicóloga e coordenadora do curso de psicologia da Unochapecó, que integrou o comitê gestor da resposta ao acidente aéreo da Chapecoense. Também participam deste episódio Letiere Flores, psicóloga que fez um estudo sobre os psicodiagnósticos dos sobreviventes da boate Kiss e André Polga, produtor editorial que criou a página Kiss: que não se repita. Contamos ainda com o depoimento de Natalia Oliveira, irmã de Lecilda Oliveira, uma das vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho.
Conheça mais sobre as associações, grupos de apoio e iniciativas citadas neste episódio:
- Associação dos familiares de vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum): https://avabrum.org.br/; Redes sociais: @Avabrumoficial (Facebook).
- Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo da Chapecoense (AFAV-C): Redes sociais: @AFAV.c2017 (Facebook)
- Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM): Redes sociais: @AVTSMSantaMaria (Facebook), @avtsm27 (Instagram).
- Kiss: que não se repita: Redes sociais: @Kissquenaoserepita (Facebook e Instagram).
- Programa Santa Maria Acolhe (antigo Acolhe Saúde): mais informações diretamente com a Prefeitura de Santa Maria, no telefone: (55) 3921-7000
_________________________________________
Roteiro
RAFAEL REVADAM: Oi. Antes de começar eu preciso dar um recado: nesse episódio, a gente vai tratar de temas sensíveis como grandes tragédias, luto e perda de pessoas queridas. Então, se você não se sente confortável com esses assuntos, talvez esse episódio não seja para você.
NATALIA OLIVEIRA: Eu sou a Natália, irmã da Lecilda, uma das vítimas né, fatais do crime da Vale aqui em Brumadinho. E… no dia do acontecido, eu mandei mensagem pra ela porque era uma sexta-feira. Eu tava assistindo uma série e, de repente, chegou a mensagem no WhatsApp. É… a barragem rompeu. E aí eu encaminhei essa mensagem pra Lecilda. Aí, a segunda mensagem chegou. É a barragem da Vale. Aí eu mandei a mensagem pra ela. Aí, a terceira mensagem que chegou falando assim: É em Córrego Feijão. Aí, quando eu li a palavra Córrego Feijão, eu já liguei pra Lecilda e nesse momento eu percebi que as duas mensagens que eu tinha mandado pelo WhatsApp ela não tinha recebido. Só tava um pauzinho. Aí eu mandei um áudio pra ela no WhatsApp, Lé me liga, pelo amor de Deus! E saí igual uma louca aqui de casa e comecei essa procura pela minha irmã e essa procura tá até hoje. A gente nunca tinha imaginado que poderia acontecer uma tragédia. A gente vê a tragédia na televisão, a gente nunca pensou em estar dentro de uma tragédia, de fazer parte de uma.
ANA AUGUSTA XAVIER: Tragédia, substantivo feminino: Acontecimento triste, funesto, catastrófico, que infunde terror ou piedade.
RAFAEL REVADAM: A história de todos nós carrega pequenas tragédias pessoais que nos marcam pela vida toda. Um acidente de carro, uma doença grave, um mal súbito. Acontecimentos inesperados que nos fazem perder o rumo e tiram o nosso chão.
ANA AUGUSTA: Mas também existem tragédias de grandes proporções, que além de afetar individualmente a vida de cada um, causam impacto em uma comunidade inteira. Um bairro, uma cidade, um país, o mundo.
RAFAEL REVADAM: A Natalia, que deu o depoimento que ouvimos no começo do episódio, viveu de perto uma dessas catástrofes. A irmã dela, Lecilda, foi uma das vítimas no rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019. 259 pessoas morreram. Lecilda e mais 10 pessoas não foram encontradas.
ANA AUGUSTA: E este é apenas um dos eventos trágicos coletivos que marcou a história do Brasil nos últimos dez anos. Nessa lista também estão os deslizamentos causados pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011; o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, em 2013, o rompimento da barragem da Samarco em Mariana, no ano de 2015 e a queda do avião da Chapecoense, em 2016.
RAFAEL REVADAM: Todas essas tragédias têm pontos em comum. Elas são visuais, com imagens marcantes, tiveram alcance nacional. E o mais agravante, todas poderiam ter sido evitadas.
ANA AUGUSTA: E se no primeiro momento, a preocupação é com as vítimas, o segundo passo é olhar pra quem ficou. Os sobreviventes, os familiares, os amigos. Como seguir após uma grande catástrofe? Como fica a saúde mental de quem tem que continuar a viver? Que tipo de suporte essas pessoas precisam? Eu sou Ana Augusta Xavier.
RAFAEL REVADAM: E eu sou Rafael Revadam, e nesse episódio, vamos falar sobre o apoio psicológico que recebem – ou deveriam receber – todos aqueles que de uma forma ou outra sofrem os impactos de uma grande tragédia.
MELISSA COUTO: A gente num desastre diz que a gente tem três fases dele né, a primeira é o caos, a segunda é a reorganização e a terceira é a coordenação. Todo início da resposta ao desastre, a situação é de caos né, uma desordem, ahn. uma falta de coordenação, todo mundo respondendo ao que tem ali sem muita ordenação, achando que tem que resolver o que tá posto, até a gente conseguir se estruturar.
ANA AUGUSTA: Essa é a Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres. Ela coordenou o apoio aos afetados do incêndio da boate Kiss, e também trabalhou no suporte após a queda do avião da Chapecoense e do rompimento da barragem em Brumadinho.
MELISSA COUTO: Na hora do impacto, a reação comum a todos é essa de caos que eu te disse, tanto pra quem atende quanto pra quem é viti vitimado, afetado. Hoje em dia a gente não usa mais vítimas, a gente usa afetados. a bibliografia vai mudando com o tempo, a gente vai construindo novas perspectivas né, de entendimento naquilo que a gente vai trabalhando. Então assim, a a as reações são muito parecidas com as reações características de luto né, então assim, choque, torpor, negação, ahn, desorganização, ahn, sofrimento agudo, angústia plena, ahn… as reações elas são as mais diversas possíveis porque também vai depender do perfil psicológico que cada um tem e como ele se defende nessas respostas de estresse agudo.
RAFAEL REVADAM: Segundo a Melissa, é muito importante que todos os afetados por tragédias recebam apoio rápido e qualificado, pra aumentar a capacidade de resiliência dessas pessoas, e ajudá-las a enfrentar o luto de maneira mais adequada.
ANA AUGUSTA: E esse apoio realizado logo após o evento, no momento em que as pessoas estão extremamente vulneráveis e sensibilizadas, é chamado de apoio psicossocial. Nessa prática, o profissional se coloca à disposição dos afetados, pra escutar e acolher.
MELISSA COUTO: O apoio psicossocial ele é um apoio diferente, porque as pessoas acham que o psicólogo vai lá atender as famílias e isso não é verdade, tanto que o apoio psicossocial nos Estados Unidos é feito por diferentes profissionais, e não só por psicólogos, os psicólogos trabalham muito mais na gestão disso né, e qualquer profissional que seja capacitado e que tenha esse perfil humanitário, de compaixão, e que tenha a capacitação adequada pode estar lá nesses cenários. Por quê? Porque a primeira questão que a gente realiza chama primeiros socorros psicológicos né, que é nas primeiras 72 horas após o desastre. Esses primeiros socorros psicológicos eles são divididos em 3 módulos, e esses 3 módulos são divididos em acolhimento, apoio e aí reestruturação né. O que acontece, todo, o que a gente vai fazer vai ser acolher a dor das pessoas. Acolhendo a dor das pessoas, fortalecendo esse vínculo, a gente vai apoiar, promovendo um espaço de amparo e de escuta, e aí finalizando, pra gente reestruturar, a gente vai oferecer os serviços que estarão disponíveis.
ANA AUGUSTA: Melissa reforça que o apoio psicossocial não é uma intervenção psicoterápica, ou seja, nesse momento a intenção não é analisar sintomas ou fazer diagnósticos, e sim acolher. Além disso, os profissionais que realizam esse apoio também são responsáveis por resolver questões práticas, como impasses financeiros ou organizar o velório das vítimas, por exemplo.
RAFAEL REVADAM: Estes profissionais são coordenados por um comitê de crise, que geralmente conta com a participação de entidades como a Defesa Civil, a Cruz Vermelha, além de voluntários da região ou de fora. Nem sempre, um comitê de crise envolve todos esses atores, isso depende do local onde o desastre acontece. Essa equipe atua durante 90 dias após o evento, e também é responsável pela organização das ações que serão feitas posteriormente.
MELISSA COUTO: Depois desses 90 dias a gente precisa ter os órgãos governamentais responsabilizados por essa crise, por isso existe o trabalho do comitê de crise, por isso que existe gabinete de crise numa situação de desastre ou de calamidade né, porque esse corpo de profissionais especialistas precisam ordenar pra que isso aconteça posteriormente, porque aí, depois desses 3 meses, daí o psicólogo especialista vai ter que fazer o trabalho, com quem tá agudamente enlutado, com quem tá aumentando os seus sintomas, porque daí eles deixam de ser reações esperadas e passam a ser sintomas. Quando que a gente consegue avaliar isso? É como todo o tipo de adoecimento mental né, dependendo da frequência que aquelas reações estão vindo, a permanência delas né, e a incidência delas. Então se isso for aumentando gradativamente, essa pessoa está adoecendo, então ela vai precisar de uma ajuda especializada e não de um apoio psicossocial, que é o de intervenção em crise.
ANA AUGUSTA: Uma coisa que ouvimos muito nas conversas com os especialistas foi “A gente precisa dar ao desastre a resposta que o desastre precisa, e não a resposta que a gente tá disponível pra dar.” E como cada desastre tem características únicas, o apoio oferecido nem sempre é o mesmo.
RAFAEL REVADAM: Maria Carolina da Silveira Moesch é psicóloga e coordena o curso de psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, a Unochapecó. Ela atuou no comitê que gerenciou a resposta ao acidente aéreo da Chapecoense.
MARIA CAROLINA: Então qual que era a nossa intenção, era saber se estavam se alimentando né, se precisavam de alguma coisa, levar informação adequada, né, e se, e levantar informação, porque esse era um pedido do clube, de que se essas pessoas estavam com alguém, se tinha alguém com eles né, se de alguma forma existia uma rede de apoio, então assim, o primeiro dia foi isso né, a gente saber como, aonde estavam e como estavam todos esses familiares, né. E aí a gente, a partir disso, segundo como as informações elas iam, a cada momento mudando muito rapidamente, mudava também a função desse grupo. Depois a gente começou a organizar a quantidade de voluntários que chegavam né, e aí ia cadastrar isso pra poder ter tanto ahn visitas domiciliares se necessário né, se houvesse pedido, como atendimento ali no clube, porque as pessoas vinham pro clube.
RAFAEL REVADAM: A Carolina contou pra gente como funcionou o apoio psicossocial aos familiares das vítimas.
MARIA CAROLINA: No segundo dia né, a demanda era ahn precisamos preparar essas famílias pra indicar alguém para a questão do reconhecimento dos corpos. Logo em seguida, assim, questão de 3, 4 horas depois que a gente tinha iniciado, essa atividade, aí veio a informação de que a equipe médica que primeiro chegou lá, que que era daqui do clube, conseguiu fazer a identificação, porque os corpos estavam com os documentos, ou no bolso, ou perto né,, então no primeiro momento a necessidade de preparar né, aquela família, era muito ainda no sentido de informação e de acolhimento, sem nenhuma intervenção específica da psicologia. E aí né, conforme os dias iam se seguindo, depois dessa questão do reconhecimento dos corpos era a organização prática né, tinha cachorro que precisava ah… de um espaço pra ficar, de uma pet, alguma coisa, pra família poder se organizar. As mulheres, muitas não tinham conta conjunta, e aí logo né, quando dá a questão do óbito, na hora é bloqueada as contas, então essas mulheres estavam sem dinheiro né, sem dinheiro pra muita coisa assim, porque tava habituada a usar o cartão só né, e como não tinha conta conjunta, quando bloqueou a conta elas não tinham mais recurso financeiro.
ANA AUGUSTA: O time da Chapecoense saiu de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e estava a caminho de Medellín, na Colômbia, onde jogaria uma das partidas da final da Copa Sul-Americana de 2016 contra o Atlético Nacional de Medellín.
RAFAEL REVADAM: Além dos jogadores, o avião também levava membros da comissão técnica e jornalistas. A aeronave caiu enquanto o piloto tentava um pouso de emergência após uma pane por falta de combustível. 71 pessoas morreram e 6 sobreviveram.
ANA AUGUSTA: Já o incêndio da Kiss, em Santa Maria, foi causado por um sinalizador aceso dentro da boate, durante o show da banda Gurizada Fandangueira. Naquele dia acontecia a festa “Agromerados”, organizada por alunos dos cursos de Pedagogia, Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de Santa Maria. Como é de se esperar em uma festa universitária, a maioria do público era de jovens.
RAFAEL REVADAM: As faíscas do sinalizador atingiram o teto e incendiaram a espuma de isolamento acústico, liberando uma fumaça tóxica, que em poucos minutos tomou conta da boate. O lugar estava lotado, não possuía ventilação, saídas de emergência suficientes e nem brigada de incêndio. Além disso, os seguranças impediram muitas pessoas de saírem, pois pensaram que elas queriam ir embora sem pagar. O incêndio resultou em 680 pessoas feridas e 242 mortes.
ANA AUGUSTA: Nessa tragédia, o apoio psicossocial foi dedicado principalmente a amparar os pais e familiares no reconhecimento e traslado dos corpos, que foram levados para o ginásio do Centro Desportivo Municipal da cidade, o CDM. A equipe também auxiliou na organização dos velórios.
RAFAEL REVADAM: E ao mesmo tempo em que causam enorme comoção, eventos como esses geram muita curiosidade, principalmente hoje em dia, onde a informação circula muito rápido por causa da internet e das redes sociais. Mas existem atitudes que, além de serem invasivas e demonstrarem uma falta de empatia com a dor do outro, acabam atrapalhando o trabalho de amparo dos afetados. A Melissa Couto contou sobre uma situação dessas.
MELISSA COUTO: Uma pessoa entrou dizendo que era psicóloga, foi até ahn, o ginásio do CDM, tirou fotos e botou na internet. E aí se formou um outro caos, porque daí, como era quase todas as forças armadas lá, os únicos civis eram os profissionais de saúde, eles foram barrados pra entrar, eu era a única civil que podia circular, né, de psicóloga por ali. Então isso foi muito difícil porque eu tinha que preparar pessoas pra acolherem pessoas, e pra poderem auxiliar no reconhecimento dos corpos, eu não podia levar esses profissionais, esses seres humanos, pra entenderem o que tinha lá dentro e o que eles iam enfrentar, se eles ti teriam condições emocionais de acompanhar, né, um pai, uma mãe, um irmão no reconhecimento dos corpos
NATALIA OLIVEIRA: Quando a gente vai ao supermercado, a gente não encontra mais essas pessoas, no ponto de ônibus, nas igrejas que a gente frequenta, nunca mais a gente vai ver e o pior de tudo é a gente conviver com as famílias dessas pessoas porque em cada rua, em cada bairro, nas escolas, em todos o lugares eles fazem falta porque eu não vejo mais a Juliana, mas eu vejo o seu Geraldo que é pai dela e a dona Ambrosina que é a mãe, eu vejo as irmãs, os irmãos, vejo os filhos que ela deixou… Então, assim, isso é muito… muito difícil e principalmente a gente não mede dor porque a dor maior é a minha porque eu não sei sentir a sua dor.
ANA AUGUSTA: Pra quem fica, é difícil lidar com a ausência daqueles que não serão mais vistos. Toda perda gera um luto. E o luto não é um processo com início, meio e fim, cada um vive de uma maneira, e no seu tempo.
LETIERE FLORES: O luto é um processo de fases que têm a negação, a revolta, a barganha, a retomada da vida e a aceitação. Porém, a pessoa enlutada não necessariamente vai passar por todas essas fases. Cada indivíduo elabora o luto de uma forma singular. Mas também não podemos negar, né, de que a razão da morte pode ser um fator que potencialize os sintomas do luto, principalmente nesse caso né, se tratando de morte inesperada e coletiva.
RAFAEL REVADAM: Essa é a Letiere Flores, psicóloga formada pela Universidade Luterana do Brasil. Amiga de vítimas da Kiss, ela foi convidada para ir à boate no dia da tragédia, mas não foi.
ANA AUGUSTA: A Letiere desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso sobre os psicodiagnósticos dos sobreviventes da Kiss. Ela teve acesso aos prontuários de pessoas que foram atendidas no serviço Acolhe Saúde, criado pela prefeitura de Santa Maria para oferecer apoio psicológico após a tragédia.
LETIERE FLORES: Eu consultei 148 prontuários às cegas, e os CID que eu mais encontrei foi transtorno de estresse pós traumático, depressão misto ansioso e depressão.
ANA AUGUSTA: CID é a classificação internacional de doenças…
LETIERE FLORES: Também encontrei 35 tipos de sintomas, os quais mais apareceram foram alteração de sono, ansiedade e medo. E também 8 hipóteses diagnósticas. O que mais teve em evidência foi transtorno de estresse agudo. Então, para chegarmos a essa conclusão de resultados dos psicodiagnósticos, foi relacionado o CID mais as hipóteses diagnósticas com base nos sintomas apresentados por eles, totalizando 19 psicodiagnósticos possíveis. E o que mais esteve em evidência novamente foi transtorno de estresse pós traumático, o transtorno está relacionado a vivenciar diretamente o evento traumático, testemunhar pessoalmente o ocorrido com outras pessoas, saber que ocorreu com familiar ou amigo próximo, ser exposto de forma repentina ou extrema a detalhes aversivos do evento. Então, os dados encontrados puderam auxiliar na compreensão de que eventos críticos podem gerar impactos sim em pessoas afetadas por esse tipo de evento.
RAFAEL REVADAM: Esses resultados da pesquisa da Letiere mostram que o impacto das grandes tragédias na saúde mental tem consequências a longo prazo, algo que pode durar meses ou anos após o evento. Por isso, o acompanhamento psicológico deve ser contínuo e duradouro.
ANA AUGUSTA: O serviço Acolhe Saúde foi ampliado e agora se chama Acolhe Santa Maria, e segue oferecendo atendimento psicológico para familiares de vítimas e sobreviventes do incêndio da Kiss. Já no acidente da Chapecoense, como a maioria das famílias não era da cidade, a equipe do apoio psicossocial direcionou o atendimento dessas pessoas para suas cidades de origem.
RAFAEL REVADAM:
E em Brumadinho, pais, filhos e cônjuges das vítimas têm direito a consultas com psicólogos e psiquiatras. O serviço é oferecido pela Vale, empresa responsável pela barragem que rompeu.
ANA AUGUSTA: Essas tragédias foram consideradas crimes, mas seus processos continuam em aberto. A lentidão da justiça traz uma sensação de impunidade, o que pesa ainda mais na saúde mental dos envolvidos, como nos explicou a psicóloga Melissa Couto.
MELISSA COUTO: O processo de luto, ele tem um trâmite de que algumas coisas elas precisam acontecer pra que ele seja elaborado seguindo os seus processos elaborativos mesmo né, do tempo, das reações. Não haver uma responsabilização por algo que foi tão sério e tão grave, sem sombra de dúvidas afeta diretamente a saúde mental das famílias, dos sobreviventes, e de todos nós que vivemos isso juntos. Então assim, a responsabilização não diminuiria a dor de ninguém porque o que foi perdido,as pessoas que foram perdidas, elas não voltam, né, isso é irreparável, mas de alguma forma, quando existem pessoas que respondem por aquele dano causado a alguém, isso de alguma forma traz um pouco mais de serenidade, de de paz pras pessoas, porque de alguma forma é como se aquilo fosse realmente reconhecido né, como algo que foi grave, como algo que foi severo e irreversível.
RAFAEL REVADAM: Para tentar agilizar os processos e não deixar os crimes impunes, os familiares e amigos das vítimas das diferentes tragédias se juntaram e criaram associações e grupos de apoio. Em Brumadinho, foi criada a AVABRUM, Associação dos familiares de vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão. A Natália faz parte dessa associação e contou um pouco sobre o trabalho deles.
NATALIA OLIVEIRA: Antes de ter essa associação, criou-se a Comissão dos Não Encontrados, onde a gente conseguia reunir diretamente toda semana com os bombeiros, com o IML, a polícia civil pra atualização de listas, pra dar informações sobre os encontros né… E isso vem até hoje, estamos aqui né… Esse grupo foi maior, as pessoas foram encontrando seus familiares e foram saindo né.. pelo processo natural de cada um viver suas etapas do luto. A Associação, ela tenta o tempo todo, a gente tenta cobrar por justiça, nós estamos acompanhando todos os processos, né. Que na verdade a sensação que a gente tem hoje é de muita impunidade durante os dois anos, porque não tem ninguém na cadeia. A gente sabe que é uma coisa que vai levar tempo, mas a gente tenta manter essa bandeira da justiça. Da prisão dos responsáveis porque o principal motivo da gente ter montado essa associação foi pra gente tentar de alguma maneira honrar a morte dos que foram, porque estatisticamente eles são só números, oficialmente são 270, a gente fala.. nós consideramos 272 porque havia duas grávidas, mas a gente tenta fazer um marco pra que essas mortes não tenham sido em vão.
ANA AUGUSTA: Entre as conquistas da associação está o plano de saúde para os pais das vítimas. Eles continuam lutando para que os irmãos também tenham este direito.
RAFAEL REVADAM: Também existem associações relacionadas às tragédias da Chapecoense e da Kiss. Em Santa Maria, há ainda um grupo criado por amigos das vítimas, o Kiss: que não se repita, que começou nas redes sociais.
ANDRÉ POLGA: Eu perdi duas amigas né, na tragédia, na verdade uma colega e uma amiga. Uma amiga de infância que não morava aqui em Santa Maria na época, e uma colega de faculdade que cursava jornalismo, mas como os cursos eram similares a gente era colega em algumas disciplinas. É… como a mãe da minha amiga não morava aqui em Santa Maria, ahn… durante o acontecido, ela veio a se mudar mais ou menos um ano depois, a minha forma de tentar representar a família, de uma forma ou de outra, a família dela era estar junto dos familiares.
RAFAEL REVADAM: André Polga criou uma página no Facebook e um perfil no Instagram para dar voz aos familiares das vítimas e não deixar que a tragédia caia no esquecimento.
ANDRÉ POLGA: E quando eu acompanhei essas pessoas durante o ano de 2013, naquela busca por respostas, ahn… naquela centena de manifestos que teve naquela época que foi a ocupação da câmara de vereadores, foi os atos que tiveram na frente da prefeitura e em outros locais da cidade na soltura dos réus é… eu via que quando a mídia local divulgava alguma coisa sobre sobre essa luta, eh, as pessoas, não que ainda não seja recorrente mas naquela época era mais, eh jogavam n comentários de forma negativa dizendo que, o mesmo que ainda dizem, que tinha que deixar os mortos descansar, que os familiares eram contra o desenvolvimento da cidade, que não adiantava mais, que que as vítimas já tavam podres debaixo da terra, que não adiantava gritar, que lugar de de mãe era em casa chorando, e eu, refletindo sobre tudo isso, pensei o que que a mídia tá fazendo que não tá conseguindo mostrar o real o real lado dessas pessoas, o real lado da luta dessas famílias. Então a, a página surge a partir daí, ela é uma rede de apoio que surge dentro do Facebook, depois a gente ingressou no Instagram, pra tentar mostrar o outro lado dessas pessoas, de uma forma diferente, uma forma, o lado de dentro na verdade né, o que a mídia não mostra. Então a rede ela surge a partir dessa necessidade de mostrar a luta dessas pessoas, de mostrar a realidade dessas pessoas, de um outro lado, pra sociedade conseguir entender né, o porque essas pessoas tavam fazendo esses atos.
NATALIA OLIVEIRA: A gente descobre que quando a gente não tem outra saída, quando você não tem outra opção, o único caminho que eu tenho é ser forte. Porque eu vou parar de lutar e vou pôr a minha mãe pra ir pra uma reunião? Eu vou pôr minha mãe pra ir pro IML, pra ver restos mortais das pessoas? Pra discutir, pra ver o que que pode fazer, para agilizar todos os processos? Eu vou pôr meus filhos, eu vou pôr os filhos da minha irmã, vou pôr meus irmãos? Então assim, é uma estrada que eu tô percorrendo, claro que é por escolha, mas também porque eu acho que minha irmã era uma pessoa muito especial, que tinha muita empatia com as pessoas, carinhosa, simpática, solidária, e tem hora que eu penso num propósito maior e, talvez, eu esteja sendo usada, e talvez ela não tenha sido encontrada porque precisa de ter pessoas que consigam fazer essa luta. Eu tenho certeza que os últimos momentos da minha irmã, ela não preocupou em correr e salvar. Se ela teve algum tempo, ela preocupou em salvar o próximo. Porque isso era característica dela. Eu, se tivesse lá, eu ia correr, não ia nem olhar pra trás, agora, a Lecilda, eu tenho certeza que ela ia olhar para as pessoas e ia tentar proteger todo mundo.
ANA AUGUSTA: Mas e quem cuida de quem cuida? Como fica a saúde mental dos profissionais que oferecem apoio psicológico nesse cenário de desastres? Melissa Couto falou que essas pessoas também precisam de apoio.
MELISSA COUTO: Existem duas coisas primordiais né, pra gente exe-exercer o autocuidado, a primeira é fortalecer a rede de apoio. Então assim, se tu não tiver uma família que te ampare, que te apoie, que te acompanhe, que te dê suporte, é praticamente impossível tu realizar esse tipo de trabalho. E se tu não cuidar da tua saúde mental no sentido de saber que a gente só pode cuidar do outro se a gente cuida da gente primeiro também, então assim, existem coisas essenciais e primordiais né que é um psicólogo, manter em dia a sua psicoterapia, saber que é um ser humano também, porque é muito fácil se adoecer. A gente fala que tem uma frase que diz assim “Reconhecer e não negar”, ela serve pra gente também, reconhecer o que a gente está vivendo, o que a gente está atendendo, e não negar o tamanho que isso tem. Nenhum de nós é super-herói, não somos anjos de Deus que viemos pra cá, somos pessoas.
ANA AUGUSTA: Mas apesar de todo sofrimento e tristeza, ela diz que o trabalho é recompensador.
MELISSA COUTO: E eu costumo dizer que as pessoas acham que quem presta um trabalho como o que eu presto, ganha, as pessoas ganham com o meu trabalho, e na realidade é exatamente o inverso né, eu ganho com isso porque, tu pensa, na pior, no pior momento da vida de uma pessoa, no pior sofrimento dela, ela abre a porta da da vida dela, da casa dela, e te permite que tu possa acolher a pior dor que ela está vivendo. Isso é de uma grandiosidade, de uma magnitude, que só quem pode viver isso junto com essas pessoas é que entende o quanto ganha, o quanto aprende, o quanto ressignifica as suas próprias dores, os seus próprios temores. Quando tu ouve desses pais “Eu não tô lutando pelo meu filho, porque o meu filho já se foi. Eu tô lutando pra que o teu não tenha que passar po isso.” Então ó, já me emocionei viu… Então… Tem um autor que fala de luto, o Colin Parkes, ele tem uma frase que eu uso sempre nas minhas palestras que diz assim, a dor é do tamanho do amor que a gente sente, só não é capaz de sentir dor quem não é capaz de amar, portanto, todos sentimos né… humanamente impossível não sentir. Então as mães disseram muito que quando eu disse isso pra elas fez todo o significado, que aquilo que, tava doendo tanto só podia doer porque era do tamanho do amor que elas tinham, então que elas tinham todo direito de sentir, porque era o tamanho do amor delas.
RAFAEL REVADAM: Esse foi o quinto episódio do Casa de Orates. Ele foi apresentado por mim, Rafael Revadam, e pela Ana Augusta Xavier. Nós também participamos da produção, junto com a Roberta Bueno.
ANA AUGUSTA: As músicas usadas neste programa são da YouTube Audio Library. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos de Rafael Revadam e Octávio Augusto.
RAFAEL REVADAM: E se você quiser saber mais sobre o trabalho das associações e dos grupos de apoio citados neste programa, vamos deixar os links na descrição.
ANA AUGUSTA: Assim como as famílias afetadas pelas tragédias tratadas neste episódio, muitas outras também estão vivenciando o processo de luto por causa de perdas decorrentes da pandemia. Aqui no Oxigênio falamos sobre isso no episódio 99, Memórias traumáticas e no episódio número 100, Despedidas, da Série Quarentena.
RAFAEL REVADAM: A nossa série, Casa de Orates, também tratou desse tema, no episódio sobre saúde mental na pandemia. É o programa 121 do Oxigênio, Alerta de tsunami. Os links de todos esses episódios também estão na descrição.
ANA AUGUSTA: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”.
RAFAEL REVADAM: E não esqueça de deixar a sua opinião sobre este episódio comentando na plataforma de streaming que você usa. Até a próxima!
__________________________________
Os episódios do Oxigênio citados no programa são:
#99 – Temático Memórias: Episódio 2 – O Trauma
https://oxigenio.comciencia.br/99-tematico-memorias-episodio-2-o-trauma/
# 100 – Quarentena ep. 5 – Despedidas
https://oxigenio.comciencia.br/100-quarentena-ep-5-despedidas/
#121 – Série Casa de Orates – ep. 4 – Alerta de tsunami
https://oxigenio.comciencia.br/121-serie-casa-de-orates-ep-4-alerta-de-tsunami/