Este programa traz uma pitada de como a Genômica é uma ciência transversal e emergente, contribuindo para desafiar as fronteiras do conhecimento de outras áreas científicas, como melhoramento genético da agricultura tropical convencional, citogenética e evolução biológica!
Há grandes projetos e linhas de pesquisa em ação que têm a mão direta ou indireta da Genômica. Para entender melhor isso, os divulgadores científicos Vinícius Alves e Adriane Wasko conversaram com Ana Cristina Brasileiro e Cesar Martins. Ana é engenheira florestal da Embrapa de Brasília e tem experiência de pesquisa em Genômica de Plantas. Enquanto Cesar é biólogo e professor da Unesp de Botucatu, com experiência de pesquisa em Citogenética e Evolução Genômica Animal. Áudios da pesquisadora Lygia Pereira e do jornalista científico Marcelo Leite foram cedidos para abertura do programa. A seguir, você tem o roteiro completo para acompanhar a conversa.
Sejam todos bem vindos ao primeiro episódio de “#113 Essa tal de Genômica” do podcast Oxigênio!
Obs.: na arte de chamada do episódio, a foto (ao fundo) de bioinformática com análise de genoma é do Ivan Rodrigo Wolf. As demais imagens e também as trilhas sonoras são de bancos de uso público.
LYGIA: Um genoma é uma grande receita que a natureza segue para transformar a primeira célula que a gente já foi em um ser humano.. trilhões de células especializadas e organizadas.
MARCELO LEITE: Eu gosto de pensar no genoma mais como um ecossistema do que como um programa de computador.
VINÍCIUS: Independente da metáfora que você preferir, provavelmente você já deve ter ouvido falar sobre genoma e também sobre a Genômica, que é a área da ciência que estuda os genomas.
ADRIANE: Genômica é filha da Genética e ambas são áreas que conversam entre si, mas não são a mesma coisa, cada uma tem as suas próprias características.
VINÍCIUS: Basicamente, podemos dizer que a Genética é a ciência que estuda a estrutura, a função, a variação e a hereditariedade dos genes, enquanto a Genômica estuda os mesmos aspectos só que sobre um genoma, ou seja, sobre o conjunto de genes, que forma um ser vivo.
ADRIANE: O último relatório de avaliação da pesquisa científica realizado pela empresa Clarivate Analytics, em 2018, indicou que a Genômica é uma das áreas que mais crescem em publicações científicas no mundo. É como se os conhecimentos científicos de Genômica dobrassem a cada 2 anos em uma das mais reconhecidas plataformas de revistas científicas internacionais, a Web of Science.
VINÍCIUS: Realmente é muita coisa né? E isso acontece também porque a Genômica não caminha sozinha. As técnicas e os dados da Genômica podem se associar a outras linhas de pesquisa básica ou aplicada. A agricultura tropical, a evolução biológica, a conservação de espécies e a saúde pública são algumas das áreas em que a Genômica pode atuar.
ADRIANE: O fato da Genômica ser uma área emergente e interativa no ambiente de pesquisa não significa que seus avanços cheguem até a sociedade brasileira.
VINÍCIUS: Nos anos 2000, a realização do projeto genoma humano nos Estados Unidos e o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, que causa doença em plantações de citrus, levaram o termo GENOMA para os noticiários, dando um grande reforço para o jornalismo científico, inclusive. Mas, como comenta o jornalista científico Marcelo Leite, após essa época, a Genômica perdeu um pouco a evidência nos noticiários.
ADRIANE: Mesmo que a gente não veja ou ouça a palavra Genoma nas mídias, a área da Genômica continua avançando e pode ter um grande impacto em nossas vidas. Por exemplo, o sequenciamento do novo coronavírus por pesquisadoras da USP, em parceria com Instituto Adolfo Lutz e Universidade de Oxford, que foi realizado em apenas 48h, foi de grande importância para os primeiros estudos sobre o vírus, ainda no começo da pandemia!
VINÍCIUS: Bem lembrado, Adriane. E também recentemente o Nobel de Química premiou duas pesquisadoras que desenvolveram a CRISPR/CAS9, a polêmica ‘tesoura’ genética. A técnica que basicamente permite cortar e editar partes do genoma, fazendo com que a célula produza ou não determinadas proteínas.
ADRIANE: De qualquer forma, grande parte dos avanços da Genômica não chega até a sociedade e, quando chega, geralmente são pouco compreendidos. Inclusive, os conhecimentos básicos da Genômica que estão em conteúdos curriculares da escola costumam ser considerados muito interessantes pelos adolescentes, mas também muito complexos e abstratos.
VINÍCIUS: Para conhecermos um pouco mais sobre a Genômica, conversamos com pesquisadores de diferentes linhas de pesquisa nessa área.
ADRIANE: No Oxigênio de hoje vamos falar sobre projetos de pesquisa que estão associados direta ou indiretamente à Genômica, trazendo algumas curiosidades e perspectivas… Eu sou Adriane Wasko.
VINÍCIUS: Eu sou Vinícius Alves. E começa agora o episódio: “Essa tal de Genômica”, pegando carona no tema que foi tratado no Oxilab número 54.
ADRIANE: Vamos começar falando sobre como a Genômica pode subsidiar a agricultura tropical convencional. Pra tratar disso, entrevistamos a engenheira florestal e doutora em biologia molecular Ana Cristina Miranda Brasileiro. Ana é pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia de Brasília. Tem experiência em Genética Vegetal e atua em temas como genômica funcional, melhoramento genético e outros.
ANA BRASILEIRO: É lógico que o que a gente faz hoje é totalmente diferente do que nós fazíamos há 30 anos. As técnicas de Genômica de plantas sim contribuíram muito pro avanço desses estudos.
VINÍCIUS: Mas Ana faz uma observação que tem a ver com a diferença que muitos de nós fazemos entre ciência básica e aplicada.
ANA: A Genômica de plantas, não é ela que permite fazer o melhoramento genético da agricultura tropical. A Genômica simplesmente permite com que a gente entenda melhor a estrutura, a expressão do genoma, que a gente compreenda e aprofunde esses estudos para daí a gente conseguir desenvolver ferramentas que vão ajudar no melhoramento genético de plantas.
ADRIANE: Então é possível fazer manipulações biotecnológicas em plantas de grande valor comercial, como soja e algodão, visando deixar essas culturas mais resistentes a estresses como ataque de vermes nematóides, por exemplo?
ANA: Sim, na Embrapa nós trabalhamos com melhoramento genético, utilizando ferramentas biotecnológicas tanto em variedades de interesse agronômico de soja como de algodão. Então, o que a gente busca fazer é modificar alguma característica já pré-existente nessas variedades pra que elas sejam mais resistentes aos diferentes tipos de estresse. Nós trabalhamos tanto com estresses de seca, como ataque de patógenos e também pra outros estresses como salinidade e etc.
VINÍCIUS: Com isso, fiquei pensando como é feita a inserção e a combinação de genes que promovem resistência nessas plantas…
ANA: Primeiramente a gente tem que identificar o gene que vai modificar essa característica. Através de estudos de Genômica funcional, estrutural e comparativa, genes são identificados, são caracterizados e isolados da planta doadora através de técnicas de recombinação gênica. Então, a gente isola esse gene da espécie doadora, que pode ser no caso a própria soja, algodão ou esse gene pode vir de qualquer outro organismo. Inclusive em muitos casos, a gente tira, isola o gene do próprio patógeno. Por exemplo, em caso de resistência ao nematóide, nós isolamos alguns genes de nematóide, que eles vão dar uma espécie de resistência na planta, uma vez introduzidos nela. Então esses genes são isolados, caracterizados e inseridos no genoma da variedade de interesse.
ADRIANE: Relacionado a isso, em um artigo que você publicou no ano passado na revista Frontiers in Plant Science, a sua equipe estimulou a expressão de um gene presente em linhas transgênicas de Arabidopsis, um gênero da mesma família que inclui as couves e a mostarda, a fim de testarem se a tolerância dessas linhagens aumenta em relação aos estresses.
ANA: Apesar desse gene conferir uma maior resistência à seca e à salinidade como era esperado, nós vimos que ele infelizmente dava uma maior susceptibilidade ao ataque do nematóide.
VINÍCIUS: Isso quer dizer que, às vezes, quando fazemos melhoramento genético com plantas por meio de técnicas de transgenia, a gente pode melhorar uma característica e acabar prejudicando outra?
ANA: Por isso que o melhoramento genético de plantas, utilizando ferramentas biotecnológicas ou não, é tão complexo, longo, demorado e necessita de muitos estudos prévios antes dessas plantas serem liberadas pra uso no campo.
ADRIANE: Ana, sabemos que os transgênicos são controversos e o grau de aceitação popular é maior ou menor de acordo com cada produto e contexto. Mesmo sobre a transgenia que estamos conversando, que tem objetivo de melhorar a resistência de plantas agrícolas, há alguns estudos que quando noticiados viram polêmicas.
VINÍCIUS: Em 2018 o jornal Folha de S.Paulo levantou uma controvérsia sobre um estudo de melhoramento genético em um algodão transgênico Bt, questionando se o uso de transgênicos é sustentável na agricultura convencional, e se a técnica diminui ou aumenta a dependência dos agrotóxicos. No estudo, o algodão transgênico testado se tornou mais tolerante aos ataques de herbívoros no Sul dos Estados Unidos, podendo diminuir o uso de agrotóxicos. Porém, com o tempo, acabou estimulando o surgimento de um herbívoro mais forte, capaz de atacar a planta e resistir ao herbicida usado.
ANA: As plantas transgênicas que estão em uso comercial tanto no Brasil como no mundo, ainda concentram poucas características de interesse agronômico […] No caso de resistência ao inseto, visa aumentar sua produção diminuindo o ataque de insetos. Então, essas características acabam por diminuir o uso de agrotóxicos e permitem desenvolver tecnologias como no caso do plantio direto. As plantas transgênicas oferecem várias características que facilitam ao produtor o manejo na sua cultura, e também diminuem o custo de produção. É lógico que todo mundo busca uma agricultura cada vez mais sustentável, com menos uso de agrotóxicos, então os transgênicos entram nessa tendência de você cada vez ter uma agricultura mais sustentável.
ADRIANE: Bom, temos o mesmo desejo então de que os estudos da Embrapa realmente subsidiem a redução do uso dos agrotóxicos na agricultura tropical convencional. Afinal, o Brasil é um dos países que mais usa defensivos agrícolas que já foram proibidos em diversos países da Europa.
VINÍCIUS: Saindo da área Agronômica vamos entrar na Área de Citogenética, que investiga a estrutura e a função dos cromossomos e que atualmente também é muito associada à Genômica. Vale destacar um projeto temático que contempla a intersecção entre essas áreas, que têm pesquisadores brasileiros e estrangeiros, e é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp. É o projeto Cromossomos sexuais, cromossomos B e seus enigmas..
Mas peraí, só pra refrescar a memória, todo ser vivo tem cromossomos dentro das suas células. Cromossomos são basicamente estruturas compactadas das moléculas de DNA onde os genes se distribuem. Essas estruturas de nome estranho são responsáveis pela transmissão de grande parte das características hereditárias, já que os genes são as unidades de transmissão biológica entre as gerações.
ADRIANE: Esse nome estranho, Vinícius, vem de “Chroma” que significa cor e “Soma” que significa corpo. Ou seja, são elementos que podem ser corados para serem visualizados e estudados. Quando você imagina cromossomos, acha que eles são estáticos ou dinâmicos? Na verdade eles podem mudar de diversas formas em uma escala de tempo evolutivo. E essas variações na ciência são conhecidas como polimorfismos cromossômicos.
VINÍCIUS: Falamos com o geneticista Cesar Martins que é coordenador do projeto temático que comentamos antes. Cesar é professor do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional, no Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu.
CESAR MARTINS: As espécies .. os organismos .. possuem um genoma muito dinâmico .. Por isso que a gente já fala que .. tem mutações né. O DNA muta … e isso reflete … nos cromossomos […] Essa é uma mudança que permite inclusive que ocorra o processo de especiação […] que leva a toda a diversidade aí que é bem característica dos seres vivos.
ADRIANE: Vale lembrar que as espécies podem variar quanto ao número de cromossomos regulares, também chamados de A. Dentro desse conjunto regular de cromossomos, alguns grupos de seres vivos apresentam os famosos cromossomos sexuais. Um dos focos do projeto coordenado pelo Cesar é entender os polimorfismos dos cromossomos sexuais de espécies animais bem distintas, como peixes, gafanhotos e roedores.
VINÍCIUS: Falando em sexo biológico, você já parou pra pensar que muitos seres vivos não apresentam dimorfismo sexual, isto é, diferenças aparentes entre machos e fêmeas? Quem pode falar melhor sobre isso é o Cesar.
CESAR: Pega um modelo mais simples, então mamíferos está aqui […] eu olho morfologicamente para um macho, para uma fêmea, separo quem é, já começa por aí. Depois eu olho para a célula e vejo que tem cromossomos X e Y, então esse modelo é muito mais fácil de entender. Aí então, imagina você pega uma espécie de peixe você olha no aquário, você não vê diferença entre os machos e fêmeas na maior parte das vezes e aí você olha geneticamente, menos ainda. Mas nós sabemos que tem os machos e as fêmeas. Eles são morfologicamente diferenciados nas gônadas, mas não têm essa diferença fenotípica externa que você simplesmente olha e consiga identificar.
ADRIANE: Mas você pode estar se perguntando por que Cesar e os outros pesquisadores envolvidos no projeto resolveram estudar polimorfismos de cromossomos sexuais de peixes e insetos, ao invés de mamíferos, o que seria muito mais fácil. Nosso entrevistado tem uma justificativa.
CESAR: As espécies que têm cromossomos sexuais diferenciados podem carregar genes de determinação sexual. Na biologia ter os machos e as fêmeas … é muito significativo do ponto de vista que permite a reprodução sexuada e consequentemente gerar diversidade. Nós temos polimorfismos de cromossomos sexuais que a gente conhece muito pouco. E o projeto foca em olhar para esses cromossomos sexuais que eles ainda não estão totalmente diferenciados. A gente encontra muitos padrões de variação.
VINÍCIUS: E como a Genômica contribui para estudar polimorfismos dos cromossomos sexuais?
CESAR: Um diferencial do nosso projeto é estudar os cromossomos numa outra perspectiva, principalmente usando análise em larga escala de genomas, análise envolvendo sequenciamento de larga escala de DNA, de RNA, análise de proteomas.
ADRIANE: Além dos cromossomos sexuais, o projeto temático faz análise em larga escala de outro tipo de polimorfismo, no caso, dos chamados cromossomos B.
CESAR: Um polimorfismo interessante é o que nós chamamos de cromossomos B, que é um tipo de cromossomo acessório, adicional ao complemento cromossômico da espécie. Esses cromossomos B representam um material interessante para estudos evolutivos porque eles existem em todos os grupos de organismos, de fungos a primatas, e são elementos genômicos extras.
VINÍCIUS: Até antes de conhecer esse projeto, confesso que nunca tinha ouvido falar sobre cromossomos B. Você comentou uma vez que esses cromossomos extras conseguem se perpetuar entre gerações através da meiose que é a divisão celular que ocorre na reprodução sexuada dos seres vivos. Do ponto de vista evolutivo, os cromossomos B têm alguma relação com cromossomos sexuais?
CESAR: Em alguns alguns casos a presença de cromossomos B na célula, leva alguma variação relacionada com o sexo. Ele causa uma mudança de frequência por exemplo, quando você tem cromossomos B na população, tem mais fêmeas, então ele causa uma distorção na razão sexual. Acredita-se que de alguma forma, ele traz um benefício para fêmea e daí que nós inserimos nas nossas espécies modelo um roedor, porque ele tem cromossomos XY e esses cromossomos sexuais compartilham sequências com o genoma do cromossomo B. E aí o que a gente está tentando fazer agora análises em larga escala, sequenciando esses cromossomos, ou seja, produzindo milhões de sequências deles para tentar entender que sequências são essas compartilhadas.
ADRIANE: A partir dos sequenciamentos genômicos de cromossomos sexuais e B, Cesar já tem como uma das principais conclusões até o momento que
CESAR: Independentemente se ele é um peixe, um inseto, um mamífero, a gente já consegue identificar que cromossomo B acumula alguns tipos de sequências, de genes. […] Ou seja, um conjunto de características do ponto de vista genômico bastante similares, embora eles tenham origem completamente independente.
ADRIANE: Mesmo que não seja de maneira imediata, os achados da Genômica podem ser de interesse da sociedade em geral. Além dos projetos que já apresentamos, os dados genômicos podem auxiliar na conservação de espécies e na saúde pública, conforme comentamos lá no começo do episódio.
VINÍCIUS: Bem lembrado, Adriane! Mas acho que por hoje já foi muito assunto pra cabeça. Vamos continuar essa conversa sobre Genômica depois?
ADRIANE: Por mim tudo bem. Então este Oxigênio vai ficando por aqui. O programa de hoje foi roteirizado por mim e por Vinícius, com colaboração da coordenadora Simone Pallone e da bióloga Caroline Maia, os trabalhos técnicos foram do Octávio Augusto da Rádio Unicamp e do Gustavo Campos
VINÍCIUS: Se você gostou, não perca o próximo episódio!
ADRIANE: Se puder também compartilhar com alguém da família, do trabalho ou do seu círculo de amizades que goste de ciência e genômica, é uma super força pra gente.
VINÍCIUS: Até o episódio 2 de Essa tal de Genômica!