#111 – Escuta Clima ep. 2 – Rios urbanos e conta-gotas
dez 4, 2020

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A água é um recurso fundamental para a vida na Terra. Por isso, o segundo episódio da série Escuta Clima aborda o tema de segurança hídrica e mostra o perfil das crises pluviais no Brasil. As enchentes causadas pelas chuvas torrenciais no Sudeste contrastam com as secas típicas da região semiárida do Nordeste. Com milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade devido, tanto ao excesso, quanto à falta d’água, os cientistas buscam soluções criativas para mitigar a situação de ambas regiões, soluções que podem ser expandidas para todo o território brasileiro.

A série Escuta Clima é produzida pela Camila Ramos e está ligada ao curso de Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp. O projeto tem o objetivo de divulgar as pesquisas e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas (INCT-MC) e é apoiado pela bolsa Mídia Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). 

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Camila Ramos – “A Terra é azul”. Foi o que disse Yuri Gagarin, o astronauta russo e primeiro homem a ir pro espaço, quando viu nosso planeta lá de cima. Essa cor azul que ele viu em 1961 eram os gigantes oceanos que cercam os continentes. E é muita água! Imagine… É como estar no meio do mar e olhar pro horizonte em todas as direções sem ver nada além do próprio mar. 

Esses oceanos cobrem cerca de 70% de toda a superfície da Terra, e neles estão 97% de toda a água do planeta. Incrível, não? Então não precisamos nos preocupar com a falta d’água, já que temos muito mais que o suficiente para todos, certo? Errado! 

Bruno Moraes – Toda essa água dos oceanos é salgada e não é potável. Então, sobram apenas 3% de água doce no mundo. Sendo que a maior parte, por enquanto, tá congelada em geleiras e nos pólos. 

Fazendo uma conta rápida, vemos que sobra apenas 1% de água para sobrevivência dos humanos, dos animais, e das plantas. E quando eu digo sobrevivência, eu quero dizer literalmente isso. 

A Água é extremamente importante pra vida. E é por isso que os cientistas procuram esse recurso em outros planetas para indicar se podem ou não abrigar vida. 

Camila Ramos – Mas muitas pessoas não encaram a água como um bem comum e precioso. E isso fica claro quando vemos pessoas lavando o carro ou a calçada com a mangueira, ou deixando a torneira aberta enquanto fazem outras tarefas. 

Mas o uso indiscriminado de água não é apenas responsabilidade dos cidadãos. Na verdade, as indústrias e o setor agropecuário tem grande porcentagem de culpa. Na verdade, o desperdício e uso irresponsável da água é tamanho que estamos prestes a encarar uma crise hídrica sem precedentes. 

Segundo a Organização das Nações Unidas, o uso mundial da água vem aumentando cerca de UM por cento ao ano. Pode parecer pouco, mas isso quer dizer que vai ser cada vez mais difícil prover água para todos.

Bruno Moraes – Além disso, as mudanças climáticas tornam insuficiente a quantidade de água e pioram a qualidade dela e causam as alterações de volume e frequência de chuvas que afetam a rotina de diversas populações, interferindo na alimentação, saúde e economia dessas pessoas. 

E podemos entender essa situação com dois extremos vividos no Brasil, que são as enchentes (geralmente nas regiões Sul e Sudeste) e as secas, típicas do Nordeste. São problemas antigos que deixam centenas de pessoas vulneráveis. E a previsão é que esses eventos piorem nos próximos anos. 

Camila Ramos – No episódio de hoje, vamos ouvir os pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas para entender melhor as crises hídricas e quais são os meios sustentáveis para melhorar essa situação.

O José Almir Cirilo é um deles. Ele é professor titular do Campus Agreste da Universidade Federal de Pernambuco

Bruno Moraes – Também vamos ouvir o Eduardo Mário Mendiondo,  que é engenheiro de recursos hídricos e professor da Escola de Engenharia de São Carlos, que é uma unidade da USP. Além disso, teremos a participação de pós-graduandos que fazem parte do grupo de pesquisa do Professor Mendiondo.

Camila Ramos – Eu sou Camila Ramos

Bruno Moraes – E eu sou Bruno Moraes 

Camila Ramos – E você está ouvindo o Escuta Clima, um podcast para divulgar as pesquisas do INCT sobre Mudanças Climáticas. É vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, o Labjor, e é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. 

[Vinheta do podcast Escuta Clima]

Bruno Moraes – Você tem noção de como a água está presente no seu dia a dia? Deixe eu te mostrar onde você pode ter usado água hoje: você já bebeu água? Já regou suas plantas? Cuidou da sua higiene? Lavou as roupas? Ou o carro? E a alimentação? Cozinhou, lavou frutas e verduras? Comeu carne? Lavou a louça depois? Aliás, você usou roupas, abriu embalagens, leu um livro? Sim,toda essa lista inclui o uso direto ou indireto da água. Isso porque a agricultura (que produz a maior parte da nossa comida), o abastecimento urbano (que é a água que usamos no dia a dia) e as indústrias (que produzem a maior parte dos produtos que temos ou usamos) são responsáveis por cerca de 85% do uso de água no Brasil. Os outros 15% são usados para a criação de animais, nas termelétricas, mineradoras e abastecimento rural, isso segundo o relatório da Agência Nacional de Águas de 2019.

Camila Ramos – E toda essa água retirada para esses e tantos outros tipos de consumo não volta integralmente para o corpo d’água de origem. Sobre esse assunto, vamos ouvir o José Almir Cirilo:

José Almir Cirilo – Não dá para aumentar a produção de água, de uma maneira geral. Então significa que um recurso natural vai se tornando cada vez mais escasso. Ao mesmo tempo, nós precisamos diminuir os desperdícios. Os desperdícios de água, de uma forma direta, são muito grandes ainda, muitas regiões (e o Brasil é uma delas) desperdiçam muita água no seu sistema de abastecimento. A água virtual, que é utilizada na produção de alimentos, se perde muito porque dois terços dos alimentos no mundo são desperdiçados. Então o combate ao desperdício é uma grande questão que tem que… Estar sempre na ordem do dia da sociedade como um todo.

Camila Ramos – Além disso, é importante lembrar que a indústria desperdiça muita água potável, doce e limpa nas etapas de resfriamentos, lavagens ou para diluir alguns solventes. Outra coisa é que essa água usada nas indústrias e também na agricultura acaba contaminada por substâncias tóxicas, que acabam poluindo rios e mares.

Bruno Moraes – A água é um recurso limitado. Tão limitado que já está acabando. Dados do World Resources Institute, de 2015, mostram que 33 países vão apresentar um grau de stress hídrico extremamente alto até 2040.Ou seja, países como Chile e Espanha, e regiões como o Oriente Médio e o norte da África terão problema de abastecimento ou ainda vão chegar ao Dia Zero, que seria a data em que a água acabaria e o sistema de abastecimento seria fechado. A Cidade do Cabo, na África do Sul, quase chegou a esse limite em 2018.

Camila Ramos – Nesse ranking, o Brasil aparece muito bem, isso porque é um país de grande abundância hídrica. No entanto, esses dados gerais não mostram o verdadeiro cenário brasileiro.

O Marcos Roberto Benso, doutorando do Programa de Engenharia Hidráulica e Saneamento na USP e orientando do pesquisador Mendiondo, explica sobre a verdadeira disponibilidade da água no Brasil:

Marcos Roberto Benso – O Brasil possui cerca de 12% da água doce disponível no mundo. Porém, essa água não é bem distribuída no território brasileiro. A maior parte desta água está concentrada na região Norte, na região Amazônica, que tem uma densidade populacional muito baixa. Logo, uma demanda por essa água um pouco menor. Então há um excesso de água. Enquanto a gente vai movendo para a costa do Atlântico, as densidades populacionais aumentam consideravelmente. Porém, a quantidade de água é bem menor né, em relação a região Amazônica. E o que acontece, conforme o aumento populacional, o aumento da demanda dos recursos hídricos, aumenta a vulnerabilidade social, econômica e ambiental diante da seca.

Camila Ramos – Então, quando olhamos mais perto a disponibilidade de água no território brasileiro vemos que as regiões da Bahia, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte estão na lista de risco extremo de crise hídrica, enquanto as regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Campinas e Vitória estão marcados como alto risco, ainda segundo o World Resource Institute.

Bruno Moraes – Por outro lado, a seca não é o único evento hídrico que ameaça a população mundial. O aumento do nível do mar causado pelo derretimento das geleiras e a acidificação dos oceanos, que deixa a água pobre em oxigênio, são problemas que acabam afetando tanto a biodiversidade marinha como as comunidades litorâneas que dependem do mar para sobreviver. 

Então, entendendo que as crises hídricas estão acontecendo em todo o mundo, vamos aproximar a lupa pro nosso país e conhecer a realidade do Brasil.

Camila Ramos – Os desastres causados pelas intensas chuvas nas regiões Sul e Sudeste brasileiro não são novidade. As primeiras notícias após o Ano Novo geralmente são sobre enchentes e desabamentos de encostas, que são causados pelas chuvas de verão. E 2020 não foi diferente, não é? Diversas cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e, principalmente, a região da Baixada Santista foram as mais afetadas pelas chuvas entre janeiro e março, deixando dezenas de mortos e milhares de desabrigados.

Bruno Moraes – Isso acontece todos os anos. E esse cenário só tende a piorar por conta das mudanças climáticas. 

Eduardo Mário Mendiondo – Os estudos, as bases de dados, os modelos, as publicações e as evidências científicas, que são publicadas todos os anos, indicam que existe uma mudança na frequência, da ocorrência e, também, da magnitude desses eventos chamados de extremos hidrológicos, como secas, enchentes e as  poluições e contaminações atreladas a elas. Isso em várias partes do mundo.

Bruno Moraes – Essa fala é do Eduardo Mário Mendiondo, que explicou que essas alterações climáticas são causadas pelo aquecimento global, que acaba aumentando a temperatura da superfície dos oceanos. Isso acaba mudando o sistema de evaporação das águas, a formação de nuvens de chuvas e, também, o movimento das massas de ar. 

Complicado? Em poucas palavras, tudo isso altera os padrões de chuvas. Vamos pegar um exemplo deste ano de 2020 para ilustrar.

Camila Ramos – No dia 10 de fevereiro, choveu a metade do esperado para todo o mês em apenas três horas na região metropolitana de São Paulo. Na verdade, esse foi o fevereiro mais chuvoso da história da cidade, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia. Esse temporal de fevereiro causou enchentes, deslizamentos de encostas e transbordou os principais rios da cidade, como o Tietê e Pinheiros.

A Talita Raquel Pereira de Oliveira, que é mestranda no Programa de Engenharia Hidráulica e Saneamento da USP e orientanda do professor Mendiondo, explica que…

Talita Raquel Pereira de Oliveira – O problema principal das enchentes é que é muita água em um curto período de tempo.

Camila Ramos – E isso acaba sobrecarregando o sistema de drenagem urbana, que é pouco eficiente em muitas cidades do Brasil. Por isso é necessário pensar em novas alternativas. Como diz a Talita:

Talita Raquel Pereira de Oliveira – Se eu consigo aumentar esse tempo que a água chega nas ruas ou no sistema de drenagem, já vai ter tempo suficiente da água ir escoando, então não vai fazer um impacto tão grande. Então, essas técnicas compensatórias, a princípio, elas tinham esse objetivo de reduzir o pico de vazão. Elas funcionam, basicamente, através de técnicas descentralizadas.

Camila Ramos – Ou seja, cada lote poderia ter uma forma de drenar a água das chuvas por conta própria, ou ainda coletar essa água para uso posterior de acordo com as necessidades de cada família. Assim, parte dessa água ficaria retida nas casas, o que evitaria a sobrecarga do sistema de escoamento e, consequentemente, as enchentes. 

Bruno Moraes – E quais são os tipos alternativos de drenagem que você pode ter em casa? Bom, das técnicas que são sustentáveis, temos: os telhados verdes, os pavimentos permeáveis, os reservatórios de lote, as trincheiras de infiltração e os sistemas de biorretenção, ou jardins de chuva, como também são conhecidos.

Basicamente, o que essas técnicas compensatórias fazem é devolver a responsabilidade da drenagem da água das chuvas para o solo e deixando que esse escoamento siga seu ciclo natural e de forma mais lenta. Porque, o que tem acontecido é que todo o concreto das cidades cria uma camada impermeável no solo, que impede a drenagem natural e faz essa água acumular nas ruas.

Tassiana Halmenschlager de Oliveira – Nosso grupo de pesquisa, ele tem trabalhado com técnicas compensatórias de sistemas de biorretenção, que são os jardins de chuva. Esses jardins são compostos por uma camada vegetal, e uma camada de solo e mais uma camada de drenagem. São três camadas principais. Sendo a camada de vegetação composta por plantas que tem como finalidade tratar a água. E a camada de solo, também conhecida como camada média de infiltração, ela tem como objetivo aumentar o tempo que esse escoamento levaria para chegar no sistema de drenagem, diminuindo assim, o pico de vazão e, consequentemente, diminuindo a ocorrência das enchentes.

Bruno Moraes – Essa voz que você acabou de ouvir é da Tassiana Halmenschlager  de Oliveira. Ela é mestranda do Programa de Engenharia Hidráulica e Saneamento na USP e orientanda do professor Mendiondo. O seu grupo também estuda como reutilizar a água coletada das chuvas.

Camila Ramos – Porque, parando pra analisar nossa rotina, nós utilizamos água limpa, doce e potável para dar descarga, lavar o quintal e outras atividades que poderíamos substituir pela água das chuvas. 

Desde os anos 1990, diversos países começaram a implementar esses sistemas de drenagem sustentáveis. Mesmo cidades tomadas pelo concreto conseguiram migrar para uma infraestrutura mais verde. 

Marina Batalini Macedo – Então, o que mostra para a gente é que esses sistemas são passíveis de serem implementados em cidades que já têm urbanização consolidada, como grande parte das cidades brasileiras. O grande fator para o sucesso da implementação dessas técnicas nos países e nas cidades que já utilizam esses sistemas de forma generalizada é a clareza nos objetivos a serem alcançados, ter metas bem estipuladas do que se quer alcançar e, principalmente, existir um manual claro de dimensionamento, operação e manutenção desses sistemas que seja de fácil entendimento, de fácil aplicação e que seja adequado às características locais.

Camila Ramos – Essa foi a Marina Batalini Macedo, doutoranda do Programa de Engenharia Hidráulica e Saneamento da USP e orientanda do professor Mendiondo.

Bom, é preciso entender que cada região do mundo tem uma necessidade diferente. Por exemplo, a preocupação dos governantes da cidade de Melbourne, na Austrália, é que esses sistemas tratem a poluição presente na água das chuvas, principalmente após as épocas de secas. Segundo a Marina, essa não é a preocupação no nosso país. 

Marina Batalini Macedo – Mas no Brasil, a gente tem uma outra preocupação, uma outra perspectiva. Os nossos objetivos principais são em relação a questão das enchentes e os riscos que elas apresentam para a população. Então a gente precisa adaptar esses sistemas para essa nossa realidade.

Bruno Moraes – É por isso que precisamos criar manuais próprios pro uso desses sistemas de drenagem urbana. Até porque, além das necessidades climáticas específicas, existem diferenças estruturais de países desenvolvidos em comparação com o Brasil. 

Na questão econômica, é preciso convencer os governantes que implementar os sistemas alternativos de drenagem para impedir as enchentes não é perda de dinheiro, mas, sim, um investimento que salva vidas e evita perdas de bens e produtos e, também, ajuda na questão ambiental e social. Vamos ouvir o que a Marina tem a dizer sobre isso:

Marina Batalini Macedo – Tendo em vista esse prejuízo grande que se tem com as enchentes nas cidades, a gente pode pensar em formas alternativas de se arrecadar o investimento para drenagem urbana, incluindo dentro de drenagem urbana os sistemas alternativos. Então a gente pode pensar no desenvolvimento de um seguro enchentes (que é um dos pontos de pesquisa do nosso laboratório), em que parte do dinheiro arrecadado seja convertido para o projeto de infraestrutura urbana. A gente também pode pensar em um tipo de pagamento de serviços ambientais nas cidades para manutenção de áreas verdes ou mesmo o IPTU verde, que é um exemplo que já funciona em vários outros países.

Camila Ramos – No Brasil, três cidades servem de exemplos de implementação dessas técnicas alternativas de drenagem urbana. Belo Horizonte vem transformando as áreas impermeáveis em verdes, construindo jardins onde antes havia apenas concreto. Além disso, desde 2017 a cidade começou a instalar os telhados verdes em diferentes construções. Agora, as cidades de Santo André, em São Paulo, e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, implementaram formas de cobrança individualizada pelo serviço de drenagem urbana, que é justamente o sistema que a Marina Batalini explicou. 

Bruno Moraes – No outro extremo das crises hídricas do Brasil temos as secas, que é um fenômeno muito antigo, mas natural, que acontece principalmente na região semiárida do Nordeste. Os primeiros registros datam lá do século XVI, logo após os colonizadores portugueses começarem a explorar e ocupar o interior do Brasil.

Camila Ramos – Analisando o histórico, podemos dar destaque para alguns episódios que foram mais severos, como a seca de 1720 a 1727, ou a Grande Seca de 1877 a 1879. Nesses períodos, milhares pessoas morreram de fome ou sede e outras ficaram suscetíveis a doenças. Quem pôde, migrou pro litoral nordestino ou para outras regiões do Brasil. Animais, tanto os de criação quanto os silvestres, morreram e plantações foram dizimadas.

Bruno Moraes – Com o passar do tempo, esses eventos continuaram acontecendo desde as formas mais moderadas até as mais extremas. Mas nada foi como a última seca,  que aconteceu entre 2012 e 2017. Essa seca chegou a atingir todo o Brasil, mas foi extremamente mais grave nos estados nordestinos. Milhões de animais morreram, rios e reservatórios ficaram completamente secos. Milhares de pessoas foram atingidas, mas muitas famílias conseguiram sobreviver pela ajuda de políticas públicas, ou seja, iniciativas que levaram comida e água por caminhão pipa para os moradores das regiões mais severas.

Essa foi a mais severa da história e a mais prolongada em cerca de 200 anos. Este evento, aliado ao problema histórico das secas na região Nordeste faz lembrar de um trecho da música “Mormaço”, do grupo musical pernambucano Nação Zumbi: “Não vejo o sol dar trégua, água aqui é lenda. Secura não é pouca e o céu desaba em conta-gotas”.

E a previsão é que as secas fiquem cada vez piores, por conta das mudanças climáticas. 

José Almir Cirilo – Os eventos extremos vão se agravar. Então, nas regiões próximas ao equador. Haverá tendência de concentração dos eventos climáticos. Por exemplo, nós vamos ter chuvas mais concentradas, e tempos de estiagem mais longos. Isso tudo é muito ruim, porque… Na hora que uma chuva que eventualmente poderia se estender no período de três meses cai em poucos dias, isso provoca um impacto sobre a acumulação da água, sobre os usos de uma maneira geral extremamente severo. Não há lá um consenso muito claro que vai chover menos, mas há um sentimento muito forte de que haverá mais concentração. Então, mais concentração significa que as precipitações vão poder ser menos aproveitadas e o número de dias de estiagem vai se tornar maior ou que vai agravar as secas.

Bruno Moraes – Esse é o José Cirilo, novamente.

Camila Ramos – O que o Cirilo acaba de dizer parece não surpreender os brasileiros. O que você acha? Já está acostumado a ouvir sobre esse cenário? Imagino que sim. Mas mesmo a seca sendo um fenômeno natural e recorrente, o professor tá falando de uma mudança no padrão, e uma mudança pra pior.

As secas são obras de complexos movimentos de ventos e massas de ar e, muitas vezes, essa dinâmica pode receber a interferência de um fenômeno conhecido como El Niño, que aquece as águas no Oceano Pacífico e causa tanto as secas no Nordeste quanto chuvas torrenciais no Sudeste.

Bruno Moraes – Complicado de novo? Bom, para facilitar, é preciso entender que, normalmente, a temporada de chuva no Nordeste acontece nos primeiros seis meses do ano, enquanto a outra metade é de tempo mais seco. Mas aí já deu tempo das plantas germinarem, dos aquíferos encherem e de preparar essas áreas para estiagem.

Então, as secas acontecem quando não chove, ou chove menos do que o esperado entre os meses de janeiro a junho, podendo até emendar com o período em que já não há chuvas normalmente, ou seja, entre julho e dezembro. Outra forma de caracterizar a seca é quando chove depois do período de germinação das plantas, e essa forma atinge principalmente a agricultura e, consequentemente, o meio de sobrevivência de muitas famílias na região. O José Cirilo relata essa situação:

José Almir Cirilo – Isso é um fenômeno histórico. Vem de muito tempo, desde os primeiros registros que se tem aí dos anos 1600, mais ou menos. Então nós tivemos, ao longo dos anos, ao longo das décadas, dos séculos, muitas secas extremamente severas. Então não é um problema que aconteceu agora, vem de longo prazo. E é de fato uma questão climática. Ela tem sido agravada por conta da questão antrópica também. O que é que acontece… Muitas regiões que eram semi áridas podem tornar-se áridas por conta de agricultura mal feita, de retirada da proteção do solo, destruição da caatinga, coisa desse tipo. Então, já se fala já… Já se tem registros, por exemplo, que algumas áreas do Nordeste estão sofrendo elevação de temperatura de até 4º. Então, isso é extremamente preocupante.

Camila Ramos – Em resumo, não tem como acabar com as secas, até porque é um fenômeno natural e periódico. Mas é preciso pensar em soluções para melhorar a qualidade de vida da população do sertão nordestino. 

Há anos os governos vêm implementando políticas públicas para diminuir a vulnerabilidade humana no Brasil, desde a criação de poços e reservatórios, até sistemas de benefícios financeiros e abastecimento por caminhão-pipa. Mas a principal política é a de transposições de rios, que leva a água de um lugar onde ela é mais abundante até outro lugar que precisa desse recurso. 

Bruno Moraes – No caso do nordeste brasileiro, a transposição está sendo feita no Rio São Francisco, que tem a sua nascente em Minas Gerais e a sua foz entre os estados de Sergipe e Alagoas. Essa obra tá sendo feita há 12 anos e nela já foram investidos mais de R$ 12 bilhões. Para distribuir a água do São Francisco foram pensados dois eixos, que saem da altura de Pernambuco e seguem para o leste, até a Paraíba, e para o Norte, até o Ceará e Rio Grande do Norte, em uma bifurcação.

José Almir Cirilo – Transferência de água como solução é uma saída importante. Nós temos transferências de águas no mundo inteiro, até em regiões que a gente nem toca para chamar de transposição. Temos isso no Brasil todo. As regiões metropolitanas transferem água de uma bacia hidrográfica para outra. A do São Francisco chamou a atenção por conta do porte do programa. De fato, é um programa de abrangência muito grande, transferência para grandes distâncias. Está ocorrendo a um custo elevado. Então tudo isso, de fato, chama a atenção para a transposição do Rio São Francisco. Ela vai ser… Ela já é importante hoje, por exemplo, para as regiões que ela está abastecendo, é o caso da cidade de Campina Grande, na Paraíba, que foi a primeira cidade de grande porte que passou a receber água do São Francisco. Ela estava em colapso, e esse colapso foi suprido, né, ela passou a ter uma fonte de água distinta. Os estados de Pernambuco e Paraíba, principalmente, eles serão os maiores beneficiários pela transposição para abastecimento humano. Então há um contingente muito grande de população que vai receber essa água mais diretamente. 

Camila Ramos – Apesar desses benefícios que o José Cirilo citou, a transposição do Rio São Francisco ainda recebe muitas críticas que vão além do custo. Isso porque as obras alteram grandes áreas de caatinga, que é um bioma muito frágil e que não se recupera fácil naturalmente. Outra questão é a exploração do rio em si. O São Francisco é muito importante para região nordeste e pra população que vive em seus arredores. Ele fornece tanto a água pro abastecimento e para agricultura, quanto para alimentação por meio da pesca. Além da energia que é gerada em hidrelétricas. E esse, na verdade, é o maior problema.

Bruno Moraes – As hidrelétricas alagam grandes áreas, alteram o fluxo natural e controlam a vazão do rio.Na verdade, as consequências dessas transformações já são sentidas hoje em dia, principalmente na foz, onde o rio chega bem mais fraco. 

De qualquer modo, a criação de soluções emergenciais durante as temporadas de secas são primordiais, mas também é preciso pensar em sistemas de alerta e monitoramento para prevenir a população e, assim, conseguir preservar recursos. Como explica José Cirilo:

José Almir Cirilo – Há um sentimento mais forte de tornar nossas pesquisas mais direcionadas. Assim nós temos hoje trabalhado com coisas bastante práticas, por exemplo, no semiárido nós temos uma quantidade grande de reservatórios e é preciso usar as tecnologias mais recentes, as geotecnologias para avaliar, por exemplo, qual é a capacidade real dos reservatórios, se eles sofreram assoreamentos, se houve erros de projeto. Nessa última seca, como a maior parte dos reservatórios do Pernambuco estava seca, foi possível como que recuperar todo o estudo batimétrico, que é o estudo de capacidade do reservatório, através de tecnologias de informação, geotecnologias. Hoje os satélites ajudam muito, a dar suporte aos estudos e projetos da área de recursos hídricos. Então, tudo isso tem sido, de certa forma, apropriado pelas universidades, pelos grupos de pesquisa para fazer coisas que tenham retorno mais concreto para a sociedade. 

Camila Ramos – Estamos chegando ao fim do episódio, mas antes é preciso lembrar que os eventos climáticos no Brasil não são polarizados. O Norte e o Nordeste também sofrem com enchentes e chuvas torrenciais, da mesma forma que o Centro-Oeste, Sul e Sudeste sofrem com secas e corte de abastecimento.

Bruno Moraes – Quem aí se lembra que em 2014 o estado de São Paulo passou por uma situação bastante crítica? A redução drástica de chuvas afetou seriamente o abastecimento. Um dos símbolos dessa crise foi o estado que ficou o Sistema Cantareira, que abastece quase nove milhões de pessoas. Foram quase dois anos e várias medidas de transposição e de construção de novos reservatórios, e uma ajudinha das chuvas, para controlar a situação. Então, As técnicas de monitoramento e obras de mitigação desses problemas podem ser aplicados em todo o território, e sempre com o objetivo principal de diminuir a vulnerabilidade da população, pensando, ao mesmo tempo, na preservação ambiental. 

Camila Ramos – Mas esses são assuntos para os próximos episódios, por isso, não deixe de acompanhar a série de podcast Escuta Clima. E ouça o primeiro episódio dessa série, que está disponível no mesmo sistema que você está nos ouvindo agora.

Eu sou Camila Ramos.

Bruno Moraes – E eu sou Bruno Moraes.

Camila Ramos – E este é o Escuta Clima. Um podcast sobre pesquisas relacionadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas. Este podcast é apoiado pelo Programa Mídia Ciência da FAPESP. Este projeto de jornalismo científico, está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, da Unicamp. E é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. Tem a supervisão científica da pesquisadora Simone Pallone de Figueiredo e jornalística da pesquisadora Susana Dias. A trilha sonora foi desenvolvida pelo Lucas Carrasco, que tem apoio do PIBIC, do CNPq. A edição do podcast é feita pelo Octávio Augusto Fonseca, da Rádio Unicamp, com apoio do Gustavo Campos, que tem suporte da bolsa SAE. A divulgação nas redes sociais é feita pela Helena Ansani Nogueira. A locução da vinheta é de Bruno Moraes. 

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