#108 Gaia episódio 2 – O passado no oceano
nov 16, 2020

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Em 2001, o IPCC, o Painel da ONU sobre Mudança do Clima, lançou um relatório que trazia um gráfico que ficou conhecido como Taco de Hockey. O gráfico mostrava, com dados do hemisfério norte, a temperatura da superfície do planeta através dos anos. Começando do ano mil, o gráfico tinha uma tendência bem leve de resfriamento até que no século vinte a linha dispara para cima, como a ponta de um taco de hockey. Nesse episódio do Gaia, vamos dar um passo atrás e ver como é possível saber o clima do passado. Esse episódio contou com a participação de Renata Nagai, da Universidade Federal do Paraná, e Natan Pereira, da Universidade do Estado da Bahia.

Este é o segundo episódio da série Gaia. A produção e edição é feita por Oscar Freitas Neto. O projeto é uma produção do podcast Oxigênio, do Labjor/Unicamp, e conta com a orientação de Simone Pallone.

Músicas:

Fast Talkin – Kevin MacLeod (YouTube Audio Library)

Our Only Lark – Blue Dot Sessions

Eggs and Powder – Blue Dot Sessions

Copley Beat – Blue Dot Sessions

Fender Bender – Blue Dot Sessions

Ferus Cur – Blue Dot Sessions

Imagem:

Alain Couette

Oscar: Em 2001, o IPCC, o Painel da ONU sobre Mudança do Clima, lançou um relatório que trazia um gráfico que ficou conhecido como Taco de Hockey. O gráfico mostrava, com dados do hemisfério norte, a temperatura da superfície do planeta através dos anos. Começando do ano mil, o gráfico tinha uma tendência bem leve de resfriamento até que no século vinte a linha dispara para cima, como a ponta de um taco de hockey.

Oscar: Nesse episódio do Gaia, nós vamos dar um passo atrás e ver como é possível saber o clima do passado. E para isso…

Oscar: nós vamos para o mar.

Renata: Eu amo ir para o mar. Bom, eu sou oceanógrafa de formação. Então, sempre que tem uma oportunidade de ir para fazer coleta, né, eu sou a primeira pessoa a levantar a mão e falar eu quero ir.

Oscar: Essa é a Renata Nagai.

Renata: Eu falo isso para os meus alunos. Eu me sinto super completa quando estou no navio e eu olho para todos os lados e só vejo água. Aquela água com aquela cor que é um azul, um roxo, não sei, é uma coisa linda.

Oscar: Ela é professora na Universidade Federal do Paraná.

Renata: Eu coordeno um laboratório que chama Laboratório de Paleoceanografia e Paleoclimatologia. Então, a gente estuda o passado dos oceanos e tenta entender essas relações entre o oceano e o clima no passado, em diferentes escalas de tempo.

Renata: Para quem trabalha com paleoclima, a gente olha para o passado e tenta entender como o planeta estava quando a gente tinha, por exemplo, concentrações de CO2 na atmosfera similares com que a gente vai ter ou tem hoje. Será que oceano estava mais quente, será que o oceano estava mais ácido, como será que o oceano influenciava na chuva aqui na região da América do Sul.

Natan: A ciência começou a coletar dados de forma sistemática a partir dos anos 50, então é muito pouco tempo. Se você for construir milhares de anos, milhões de anos, é muito pouco tempo.

Oscar: Quem fala é o Natan Pereira

Natan: Sou biólogo de formação.

Oscar: Ele é professor da Universidade do Estado da Bahia.

Natan: E atualmente estou trabalhando com geoquímica de corais. Eu tento entender os sinais químicos que estão nesses organismos para entender um pouco do clima.

Oscar: Para reconstruir esse clima do passado, é preciso usar formas indiretas de fazer medições. É possível, por exemplo, procurar por documentos históricos que tenham dados do tipo, mas assim só é possível voltar no tempo até certo ponto. Para voltar muito mais é preciso dos arquivos naturais.

Natan: Então para isso a gente utiliza proxies geoquímicos, principalmente, que são evidências indiretas sobre as condições ambientais do passado que são registradas de forma ordenada e sequencial dentro de um determinado período específico.

Renata: Eu sempre gosto de exemplificar, eu falo: não dá para a gente pegar um sedimento marinho colocar um termômetro dentro dele e falar, a vinte mil anos a temperatura é tantos graus celsius, mas a gente consegue usar esses proxies para fazer isso.

Natan: A gente pode reconstruir temperatura, a gente pode reconstruir salinidade, a gente pode reconstruir concentração de CO2 atmosférico.

Oscar: Para pegar um exemplo mais fácil, as árvores podem ser usadas como um desses arquivos. Em um tronco cortado dá para ver aqueles anéis que são os períodos de crescimento da árvore.

Renata: Cada um desses anéis de crescimento vai registrar essas informações.

Oscar: Que depois podem ser reconstruídas. Em regiões temperadas o crescimento é bastante relacionado a períodos de calor quando a árvore faz fotossíntese. Em momentos frios, as árvores perdem as folhas e crescem bem menos, o que dá para perceber pela proximidade dos anéis.

Renata: Apesar de elas terem limite de tempo de vida delas, se o tronco de árvore ficar fossilizado, está no registro fóssil. Eu sei que tem gente que trabalha com esses dados que vem de tronco de árvore assim de períodos muito antigos.

Oscar: Outros arquivos naturais são o gelo das regiões polares

Renata: Espeleotemas em cavernas

Oscar: que são aquelas formações pontudas

Natan: Sedimentos e corais também são tipos de arquivos naturais

Oscar: Essa possibilidade de resgatar essas informações do passado mostra como tudo no planeta está conectado, os organismos vivos, os componentes inorgânicos, oceano, atmosfera…

Natan: Eu tenho outros exemplos bem bacanas que mostram, que trazem essa ideia de conectividade do nosso planeta.

Oscar: O Atol das Rocas é uma ilha oceânica que fica a duzentos e sessenta quilômetros de Natal

Natan: Você não tem nada perto, você não tem cidade, você não tem turismo, você não tem absolutamente nada perto. É complemente livre de ação antrópica direta. Só é permitida a entrada do pessoal do ICMbio e de pesquisadores, então é o impacto da presença humana lá é quase que inexistente. Então são 4 ou 5 pessoas que ficam na ilha que é extremamente controlada, que tem um controle muito efetivo, fiscalização com relação a turismo, pesca. Então é realmente um santuário ecológico. Nesse trabalho que eu fiz, nós publicamos em 2018, a gente coletou alguns corais dessa reserva biológica. E a gente utilizou um proxy, utilizou isótopos estáveis de carbono.

Oscar: Os isótopos são variações de um elemento químico. O carbono, por exemplo, tem número atômico de seis, ou seja, seis prótons, mas pode ter uma quantidade diferentes de nêutrons. O que forma o carbono 12, 13 e o 14.

Oscar: E, nesse trabalho, ele analisou a composição isotópica desses corais.

Natan: O coral estava recebendo cada vez menos o isótopo estáveis mais pesados que é o treze.

Oscar: A composição dos corais reflete a composição de isótopos de carbono dissolvidos no oceano. E o que acontece é os combustíveis fósseis tem uma assinatura isotópica mais leve.

Natan: A nossa atmosfera tem sido alterada principalmente pela queima de combustível fóssil. E aí você altera a atmosfera, esse carbono vai passar para os carbonos inorgânicos dissolvidos nos oceanos, você vai alterar também a composição isotópica dos carbonos inorgânico dos oceanos e isso vai passar para os corais. Então, olhar que doideira, esses corais no meio do oceano atlântico sul sem nenhuma atividade antrópica, sem nenhuma atividade turística, sem nenhuma atividade de pesca, ele simplesmente registrou uma interferência da ação principalmente via queima de combustível fóssil, de uma alteração que tem uma escala global.

Oscar: Quando a ideia é reconstruir o clima do passado, os isótopos de oxigênio são um dos proxies mais utilizados.

Natan: é uma ferramenta poderosíssima. A gente pode ter uma ideia de períodos glaciais e interglaciais de acordo com assinatura isotópica do oxigênio.

Oscar: O oxigênio tem três isótopos: o 16, o 17 e o 18.

Renata: O Oxigênio 17 tem bem pouquinho naturalmente, o Oxigênio 16 é o que tem mais e depois tem o Oxigênio 18.

Oscar: Então, o oceano é composto de moléculas de água formadas com esses diferentes isótopos de oxigênio.

Renata: Moléculas com 16, moléculas com 18. Então, moléculas mais leves e moléculas mais pesadas. E essas moléculas, quando a água é evaporada, acho que é bem intuitivo de imaginar que as moléculas de água que são formadas com o oxigênio 16 que é o mais leve é mais fácil de evaporar.

Oscar: E aí a gente tem que lembrar do ciclo hidrológico. Vamos imaginar esse oceano com a água que começa a evaporar. Daí, ela tem dois caminhos. Ela pode virar chuva.

Renata: E aí entrar nos rios e voltar para o oceano. Ou ela pode precipitar na forma de neve, então ela pode ser transportada para regiões polares ou no topo de montanhas e precipitar na forma de neve.

Oscar: E é aí que está a jogada. Porque essa neve é formada mais por isótopos mais leves. Em períodos interglaciais que são mais quentes

Natan: Quando você tem o processo de degelo, o gelo começa a derreter, esse isótopo mais leve vai voltar para o sistema.

Oscar: Já em períodos glaciais, com muito mais gelo no planeta.

Renata: A gente tem o aprisionamento das moléculas de água com oxigênio 16 nas calotas. Então a composição isotópica da água do mar ela vai ficar relativamente empobrecida em relação ao oxigênio 16. E quando a gente está falando dessa composição, a gente usa um delta, então a gente fala de delta O18 que é uma comparação entre o oxigênio mais pesado e o oxigênio mais leve. Então é uma razão entre esses dois isótopos.

Oscar: E isso também se reflete na composição de organismos e sedimentos marinhos. Ou seja, analisando essa composição, nós conseguimos saber a quantidade de gelo no planeta em determinada época.

Oscar: Vamos pegar o caso dos sedimentos marinhos.

Renata: Eu uso testemunhos marinhos que são seções do sedimento, de coluna sedimentar coletadas no oceano.

Oscar: As bacias oceânicas vão sendo preenchidas bem lentamente com sedimentos, o que vai formando camadas.

Renata: Essas camadinhas, então, elas guardam para gente informações sobre as condições ambientais do oceano naquele momento que aquelas partículas foram formadas e se depositaram no fundo do mar. A gente consegue imaginar que cada uma dessas camadas sedimentares seria uma página de um livro de história.

Oscar: Nessas camadas é possível encontrar em todo o mundo organismos chamados foraminíferos.

Renata: Eles são maravilhosos, eles são lindos. Eles têm coloração super diferente, distinta. E, por exemplo, tem algumas praias que tem areias que tem uma tonalidade de rosa ali na região ali do caribe, que o rosa das areias vem de carapaças de foraminíferos planctônicos que chamam Ruber Pink, Globigerinoides Ruber Pink.

Oscar: Eles produzem uma carapaça feita de carbonato de cálcio, semelhante as conchas dos moluscos.

Renata: E essa carapaça consegue ficar preservada no sedimento. Então depois que eles morrem eles ficam ali no sedimento. A carapaça fica ali preservadinha, intacta, então a gente consegue usar eles para reconstruir várias variáveis do oceano. Mas a gente pode usar tanto a composição química da carapaça. Então, por exemplo, os isótopos de oxigênio ou a razão magnésio-cálcio. Então como eles incorporam esses elementos da coluna d’água enquanto eles estão vivendo e ali a carapaça deles. E a gente pode usar as associações. Então a gente pode identificar as espécies que estavam vivendo naquele momento, essas espécies têm preferências ecológicas que a gente conhece hoje de estudos de foraminíferos planctônicos e bentônicos atuais. A gente sabe, por exemplo, que a espécie X gosta de viver em água quente e ela tem um crescimento ótimo entre 24, 25, 26 graus celsius. A outra espécie gosta de águas mais frias. Então a gente consegue usar essa composição das associação dos foraminíferos, esses dados ecológicos para reconstruir, por exemplo, temperatura da água do mar ou tem espécies que prefere comer matéria orgânica fresca que foi recentemente produzida e aí elas vão viver que tem alta produção primária marinha porque elas querem esse material mais fresco. E tem outras que não se importam tanto, então elas comem matérias orgânica mais degradada. Então a gente consegue também medir essas variáveis aí outras.

Oscar: Os corais também são formados de carbonato de cálcio e são usados para a reconstrução do clima.

Natan: Isso a gente analisa os isótopos estáveis de oxigênio em corais para ver temperatura ou mudança na salinidade. Isótopo de oxigênio no caso dos trabalhos com os corais é um pouco mais complicado porque ele é influenciado tanto pela temperatura, como pela salinidade. E às vezes num local que você tem uma mudança muito grande na salinidade, você acaba interferindo no seu sinal geoquímico. Por isso, é importante usar outro proxy, por exemplo, para esse trabalho de reconstrução de temperatura utiliza-se bastante a razão de estrôncio sobre o cálcio. O bom do estrôncio sobre o cálcio é que é um proxy que só depende de temperatura, não depende de salinidade. Então às vezes você tem um coral que está sob influência de salinidade muito grande e aí você faz análise isotópica e você não consegue determinar bem ali a variação de temperatura porque a curva está com muito ruído, com muita interferência. Aí a gente faz análise de estrôncio-cálcio. Então geralmente quem faz um, faz o outro, que já contam com uma interferência na salinidade no sinal isotópico do oxigênio. Então é uma forma de garantir que você vai ter dados mais robustos, mais fáceis de ser interpretados. A ideia é essa é sempre pegar um coral, fazer essas análises e tentar fazer uma reconstrução de clima, uma reconstrução de temperatura. E aí com a reconstrução da temperatura a gente pode ver, por exemplo, eventos do El Niño, como esses eventos estão acontecendo, com que frequência estão acontecendo para além do que a gente tem registrado em instrumento. Como isso está alterando ao longo dos séculos, se tem uma alteração na dinâmica do El Niño. Outros fenômenos externos que podem ter influenciado na temperatura desses corais. Daí, óbvio que a gente extrapola para o ambiente, para a região. Quando você quer fazer uma reconstrução paleoclimática da costa do nordeste, então você vai tentar coletar o máximo possível em todas as regiões, identificar todas as variáveis de cada localidade e aí você começa… é um trabalho extenso, difícil, não é um trabalho fácil. É muita coisa. Você pegar às vezes de um estado para outro você tem uma dinâmica climatológica completamente diferente e você entender isso e como isso vai influenciar nos registros de corais é um desafio para a gente.

Oscar: O Brasil não tem uma variedade grande de espécies de corais como outros locais e o Natan tem trabalhado em verificar o potencial das espécies daqui para esse tipo de análise.

Natan: Dentro dessas espécies, a gente tem algumas que crescem bastante. Porque o ideal de um arquivo paleoclimático é que ele seja confiável, mas também cubra um intervalo de tempo mais longo possível que a gente possa ter informações. Não adianta a gente pegar um coral que tem 5, 6, 10 anos, assim a gente não vai conseguir extrair muita coisa. Aqui no Brasil a gente duas espécies que têm esse potencial que é a Siderastrea Stellata e a Montastrea Cavernosa. Essas duas espécies crescem bastante, já consegui coletar algumas, principalmente Siderastrea que tem 100 anos de idade, possivelmente a gente tem outra colônia que tem quase 200 anos. Não consegui coletar, mas eu já vi alguns corais, principalmente, na região do Maracajaú no Rio Grande do Norte, que elas eram enormes. Eu acredito que ali se consiga extrair 200, 300 anos. O último trabalho que eu estou executando agora, a gente está finalizando, é uma colônia de 30 centímetros e a gente conseguiu quase 100 anos. Se a gente conseguir uma de um metro, com certeza a gente consegue chegar aos 300 anos.

Renata: O oceano transporta e distribui calor no planeta e isso garante para a gente nossa estabilidade climática, nosso bem estar. E é a temperatura da água do mar que move essas trocas. Então a interação entre atmosfera e oceano ocorre muito ali na superfície da água e muito associado a temperatura da água do mar também.

Natan: Quando a gente compreende tendências de clima, quando a gente tem uma imagem completa de como é que é uma variabilidade climática natural ou não natural, por exemplo, quando você tem ação antrópica, a gente consegue criar medidas que podem mitigar os efeitos dessas mudanças climáticas. Então, uma das principais metas de quem está estudando climatologia, tentando entender o clima, é essa. A gente tem que compreender o passado, como é que essas alterações ela ocorre e óbvio isso vai ter consequências para a nossa economia, para a nosso sistema de produção. Como essas mudanças climáticas vão afetar a biosfera marinha, como esses ecossistemas vão responder essas mudanças. Se a gente parar para pensar que muitos países, muitas pessoas, dependem diretamente de recursos naturais extraídos dos oceanos, como essas pessoas vão ficar caso essa mudanças elas venham a afetar bastante esses ecossistemas a ponto de ter ali um colapso na produção pesqueira, um colapso nesses ecossistemas que são muito apreciados para turismo.

Renata: A gente consegue dar uma perspectiva para o nosso futuro. O que vai acontecer se a gente continuar aquecendo o planeta, como que oceano vai se comportar em termos de temperatura e em termos de PH. A gente quer aprender com as mudanças do passado, as mudanças climáticas do passado.

Oscar: O Gaia é produzido e editado por mim, Oscar Freitas Neto. E conta com a orientação de Simone Pallone, do Labjor.

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