Punição na ciência através dos tempos
jun 17, 2017

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A ciência e o método científico não se dão em um contexto neutro, livre de quaisquer influências. Assim, ainda que a perseguição e as punições ocorram em diferentes épocas e sob distintos motivos, é preciso diferenciar os perseguidos por seu fazer científico (proposição de teorias, formulação de hipóteses e defesa de pontos de vista) daqueles perseguidos por questões políticas ou étnicas. Essa fronteira, entretanto, nem sempre é bem definida.

A ciência, na forma como a conhecemos, surgiu em meados do século 16. Até se consolidar como um método, muitos dos que faziam ciência eram vistos, durante o período medieval, como bruxos ou feiticeiros.

Isso, obviamente, não era bem visto pelos poderes estabelecidos. Dada a influência que exercia sobre os poderes políticos, a Igreja Católica, através dos tribunais da inquisição, julgou muitos deles passíveis de serem punidos por heresia – seja com prisão e perda de direitos, seja com a tortura e morte na fogueira.

A principal intenção era que tais pensadores se arrependessem e negassem publicamente suas ideias. Dentre os pensadores que defendiam pontos de vista aos quais poderíamos atribuir cunho científico a sofrerem perseguições, podemos mencionar Cecco d’Ascoli, Lucilio Vanini, Miguel Servet, Pietro d’Abano, Roger Bacon, Guilherme de Ockhan. Além de Galileu Galilei, que propunha a teoria da Terra girando ao redor do Sol, baseando-se nas ideias de Copérnico.

Tendo sido consolidado o método científico, tampouco seguiu fácil propor ideias novas. Nas primeiras décadas do século XIX, um jovem médico húngaro, Ignaz Semmelweis, percebeu que, no hospital em que trabalhava, em Viena, Áustria, havia grande número de mortes de mulheres no parto. A causa era a chamada febre puerperal. Semmelweis chegou a conclusão de que eram os próprios médicos que contaminavam as pacientes, pois usavam os mesmos jalecos imundos com os quais dissecavam cadáveres na realização dos partos.

Ao instituir que, em seu hospital, os médicos lavassem as mãos e aventais, o húngaro conseguiu diminuir imensamente o número de mortes de parturientes. Apesar de, hoje, parecer bastante óbvia a conclusão de Semmelweis, à época ela não foi nem um pouco bem recebida.

Muitos médicos renomados se ofenderam ao serem acusados de causar mortes por contaminação e o hostilizaram. Acabou ganhando muitos inimigos. Estes, por fim, o enviaram forçosamente a um sanatório, onde morreu vítima de maus-tratos.

Governos autoritários são outro exemplo de períodos pouco propícios ao debate de opiniões e às discussões científicas. Independentemente da matiz ideológica dominante.

Um período especialmente complicado para muitos cientistas foi o nazismo. Na Alemanha pré-ascensão de Hitler, muitos cientistas de alto escalão eram judeus. Além de imensamente importantes para o desenvolvimento da própria Alemanha, muitos desses pesquisadores figuravam entre os mais respeitados do mundo em diversas áreas.

Apesar disso, uma das primeiras medidas antissemitas do líder nazista foi banir de todos os cargos públicos os judeus. O que incluía a maior parte dos cientistas. Nesse processo de “arianização” do país, cientistas como Erwin Schrödinger, MaxBorn e Albert Einstein abandonaram sua terra natal, exilando-se nos EUA e Inglaterra.

O Brasil e boa parte da América Latina também presenciaram, recentemente, regimes que perseguiam cientistas: as ditaduras militares. Essas acabaram levando muitos acadêmicos ao desemprego, ao exílio, ou mesmo à prisão e ao assassinato.

Ainda hoje existem países onde regimes totalitários estão implementados – alguns há décadas – o que influencia sobremaneira a atividade dos cientistas. Ou você está com o governo, ou está contra. Coreia do Norte e Irã são alguns exemplos.

Entretanto, mesmo quando os cientistas têm condições e direitos garantidos para desenvolver seu trabalho, dilemas morais podem exercer pesada influência. Por afetar muitas pessoas, a obra de um cientista pode tornar-se grande e pesada demais até para si mesmo. Pode surgir, assim, uma necessidade de auto-punição.

Um caso bastante próximo dos brasileiros é o de Alberto Santos-Dumont, um de nossos mais renomados inventores. Santos-Dumont teria ficado extremamente triste ao descobrir que sua mais célebre invenção, o avião, estava sendo utilizada como máquina de guerra. Pacifista, o brasileiro teria, em virtude disso, cometido suicídio.

No mundo contemporâneo, é evidente que os cientistas passaram de perseguidos a figuras respeitadas, cujas opiniões balizam muitas das decisões tomadas a nível político, econômico e social. No entanto, nesse novo cenário, mesmo em países democráticos, novas formas de perseguição podem se abater sobre a atividade científica. A comunidade científica pode se tornar extremamente fechada em alguns campos, o que, não raro, pode privar ideias inovadoras de florescer, por não se enquadrarem nas teorias vigentes mais aceitas.

Pela ciência atual ser eminentemente ligada a questões de financiamento, pode ser esse um empecilho para que novas ideias sejam aceitas, uma vez que poderiam retirar verbas das ideias já estabelecidas. É o poder econômico que dita o que é digno de obter financiamento e, muitas vezes, o que merece e o que não merece credibilidade.

Se você se interessou pelo tema, não deixe de conferir a reportagem “Punição na Ciência através dos tempos”, que contou com a contribuição do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rundsthen de Nader. A matéria faz parte da edição número 188 da revista eletrônica ComCiência – dossiê “Prêmio e Castigo”. .

Matéria de Gustavo Almeida.

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