# 96 Série Corpo – episódio 5 – O peso do peso
jul 10, 2020

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Obesidade, corpo gordo, plus size. Para falar sobre peso corporal precisamos ir além da balança. Em “O peso do peso”, a gente navega pela história da Júlia, uma professora de balé que ensina outros tipos de corpos a dançar, e discute os vários sentidos do corpo gordo a partir da fisiologia do exercício e da história do peso no Brasil. Participaram do episódio a Cláudia Cavaglieri, da Faculdade de Educação Física da Unicamp, e Denise Bernuzzi de Sant’Anna, historiadora da PUC São Paulo. A série Corpo faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é financiado pela FAPESP (2019/18823-0) e coordenado pelo professor Bruno Rodrigues (FEF/Unicamp).

Segue o roteiro completo.

SAMUEL RIBEIRO – Oi. O que você tá ouvindo é uma apresentação de balé. O som vem de um vídeo, que eu quero que você imagine aí. Fecha os olhos. Tem a plateia, as cortinas, a iluminação… e no meio do palco uma bailarina profissional, graciosa, dançando na ponta dos pés. Visualizou?

Agora diz pra mim: como é que era o corpo dessa bailarina? Ela era magra, gorda, musculosa? E por que que você imaginou ela desse jeito?

Eu sou Samuel Ribeiro e este é o Corpo, podcast que fala de histórias e de movimento humano. E a gente começa com a Júlia… a bailarina.

JÚLIA DEL BIANCO – Meu nome é Júlia Del Bianco, eu sou bailarina, professora de dança, e também sou modelo plus size e influenciadora digital.

SAMUEL – A Júlia faz balé clássico desde criança e se formou em Dança na Unicamp. Ela já deu aula em escolas e ONGs, e é fundadora da Dance for Plus, uma escola itinerante que traz a dança pra quem não se encaixa nos padrões de corpo daquela bailarina… que muita gente deve ter imaginado junto com a música.

O trabalho da Júlia segue na linha de todo um movimento que aconteceu nas últimas décadas, e que luta contra o preconceito e a estigmatização do corpo gordo. E tem a ver também com as experiências que ela viveu quando era aluna de balé…

JÚLIA – Eu hoje, eu olhando as minhas fotos, eu considero que eu era uma pessoa magra. Mas eu sempre tive mais peito, mais coxa, é, mais bunda, e pra uma bailarina isso não é aceitável. Mas quando eu comecei a dançar era uma coisa assim, que você tinha que ser uma tábua assim, sem nada.

Então eu era essa pessoa um pouquinho mais curvilínea no meio de um monte de bailarinas que eram mais retas, assim, com o corpo mais reto. Então eu sempre tive um corpo fora do padrão do balé.

SAMUEL – A Júlia tinha um dilema ali na adolescência: ela era uma bailarina e se dedicava nos treinos e nos ensaios, só que ao mesmo tempo o ambiente do balé tava ali dizendo que o corpo dela… não era corpo de bailarina.

Bom, o tempo foi passando e a Júlia engordou…

JÚLIA – … só que daí eu comecei a perceber um outro lado. Eu comecei a perceber um lado de que eu ia comprar roupa e eu não tinha roupa pra eu comprar, mesmo que fosse de ginástica pra eu querer fazer alguma coisa pra emagrecer, entendeu?

SAMUEL – E começou a sentir na pele uma série de outras pressões por causa do corpo, inclusive questões de acessibilidade…

JÚLIA – Acessibilidade de as vezes não caber nos lugares, de… eu sempre dancei, sempre fui ativa, mas eu era tida como sedentária. Então eu comecei a ver um outro lado da moeda né.

SAMUEL – Aí, vendo esse outro lado da moeda, ela virou professora e quis ensinar dança de um jeito que não deixasse ninguém de fora. E além de ajudar as alunas, ela também acabou se ajudando muito nesse processo.

JÚLIA – … eu comecei a ver que eu tinha um impacto muito grande nas minhas alunas, né, e que elas melhoravam a autoestima delas.

SAMUEL – A Júlia pensou…

JÚLIA – … “nossa, mas eu faço tão bem pra elas, né, e eu tô aqui em um processo tão autodestrutivo né, me odiando tanto”. Daí foi um começo assim.

… a dança ela é uma coisa que… cê me pergunta “mas como que você não desistiu?”, eu falo “não sei”, porque pra mim dançar, o movimento, me expressar, é uma coisa que eu me sinto muito bem, muito completa, então me satisfaz muito fazer aula, ir pro palco. E eu fico muito triste quando as pessoas não fazem ou são impedidas de fazer isso.

SAMUEL – Falar sobre corpo gordo dentro da Educação Física costuma ser complicado. Muita gente tem estudado a parte cultural e social sobre os diferentes corpos e o movimento humano. A gente também tem todo um acúmulo da ciência mais biológica olhando as questões de saúde ligadas ao excesso de peso e à obesidade. E nos dois casos, toda hora, tem estudo novo saindo!

Pra completar, no dia a dia de quem estuda e trabalha na área acabam aparecendo também ideias que vêm do senso comum, preconceitos, coisas que aparecem na mídia… não é tão simples como parece.

Por clarear um pouco tudo isso eu fui conversar com a Claudia…

CLÁUDIA REGINA CAVAGLIERI – Bom, eu sou a professora Claudia Cavaglieri, eu sou professora da Faculdade de Educação Física da Unicamp e trabalho no Laboratório de Fisiologia do Exercício.

SAMUEL – Ela já apareceu aqui no podcast, lá no primeiro episódio. A gente voltou a conversar porque faz anos que ela estuda os efeitos do treinamento físico na saúde de pessoas obesas e com sobrepeso.

No geral, as pesquisas dela olham para os efeitos do exercício físico na saúde dessas pessoas a partir de marcadores bioquímicos, do que acontece lá nas células e que pode ser medido por substâncias presentes no corpo.

CLÁUDIA – Nosso grupo ele não está preocupado com as questões estéticas. A nossa grande preocupação é exatamente a relação do excesso de peso e da obesidade com o aumento de risco de doenças, né.

SAMUEL – Aqui a gente tá falando de doenças crônicas, tipo diabetes e hipertensão, que precisam de tratamento contínuo e podem diminuir a qualidade de vida ou até levar a uma morte precoce.

A Organização Mundial da Saúde diz que são mais de 2 bilhões de pessoas no mundo com excesso de peso, 600 milhões obesas. E no Brasil os dados recentes da pesquisa Vigitel 2019, do Ministério da Saúde, apontam para mais de 55% da população brasileira com excesso de peso…

CLÁUDIA – Você imagine, mais da metade da população brasileira. Enquanto que 20% da população já é obesa. Então realmente é um problema seríssimo, né, e nós precisamos de alguma maneira contribuir, estudar e entender porque que tá acontecendo esse aumento de obesidade na população como um todo.

SAMUEL – Aqui a gente tá falando de um problema de saúde pública e que vai bem além dos indivíduos, porque envolve fatores sociais, econômicos, culturais, psicológicos, enfim, é muito mais complexo do que colocar tudo na conta de uma ABRE ASPAS falta de vontade.

Por exemplo, quando a gente pensa no aumento do sedentarismo, não dá pra deixar de pensar em questões socioeconômicas e em como é o ritmo da vida das pessoas…

CLÁUDIA –  especialmente as pessoas que vivem nas grandes cidades, né. Elas gastam muito tempo em deslocamento, trabalho, e isso faz com que cada vez ela tenha menos tempo pra poder fazer algum tipo de exercício e cuidar da própria saúde.

SAMUEL – Tem também o aumento do consumo dos alimentos ultraprocessados, que são rápidos e baratos mas muito pouco saudáveis; e a falta de espaços e políticas públicas pro lazer e pra prática de atividade física.

Em alguns casos há fatores genéticos e hormonais que resultam no excesso de peso. Também tem fatores psicológicos… E até os fatores históricos influenciam, já que as mudanças nas tecnologias contribuíram pra gente gastar cada vez menos energia no nosso dia a dia. Coisas bobas mesmo: tenta lembrar como era o gesto de abrir a janela do carro com a manivela.

Aliás, energia é a chave pra gente entender o que faz a gente engordar. Pra resumir a história, o que o corpo faz é transformar em gordura as calorias que a gente ingere além do necessário, e aí ele armazena essa gordura no tecido adiposo pra gente usar depois em caso de necessidade… o que faz todo o sentido na nossa evolução, porque os nossos antepassados não tinham tanta alimento disponível como a gente tem hoje.

CLÁUDIA – A glicose é o principal substrato energético do nosso organismo, mas os estoques que a gente tem de glicose eles são baixos, eles duram muito pouco tempo. Então a nossa principal fonte de energia pra esses períodos de estresse prolongado, ou de jejum prolongado é a gordura. Então o tecido adiposo branco, que é a nossa dobrinha, né, que é as nossas gordurinhas que aparecem externamente, é um tecido de estoque de energia.

SAMUEL – As células do tecido adiposo funcionam como um baú, uma caixinha pra guardar energia.

CLÁUDIA – Cada célula ela tem uma capacidade de estoque de gordura, e à medida em que ela vai aumentando esses estoques, algumas dessas células elas entram em sofrimento.

SAMUEL – Conforme as caixinhas vão enchendo de gordura, duas coisas acontecem: elas se multiplicam, aumentam de quantidade, e vão também aumentando de tamanho. Só que como essas células são pouco vascularizadas e têm poucas mitocôndrias, essa expansão toda vai virando um problema.

CLÁUDIA – … o que que vai acontecer? Elas acabam ficando muito distantes do vaso sanguíneo e têm dificuldade de receber oxigênio. Então elas entram num processo de sofrimento. E ao entrar nesse processo de sofrimento, elas acabam gerando substâncias químicas que ativam o sistema imunológico…

SAMUEL – … e o sistema imunológico vai pra cima do tecido adiposo, porque ele não consegue diferenciar esse sufocamento da célula de outros ataques, tipo uma bactéria, por exemplo. O resultado disso é o começo de uma inflamação local.

CLÁUDIA – Então o indivíduo com excesso de peso, o indivíduo obeso, ele acaba gerando, tendo uma inflamação subclínica. Que não é uma inflamação do tipo “ai eu dei uma pancada na perna e tô com a minha perna inflamada”, que é poucos dias, né, cinco dias passa o problema. Essa inflamação é uma inflamação que ocorre todo dia. Ele fica constantemente inflamado.

SAMUEL – Começa a rolar interferências em outros tecidos do organismo. A inflamação contínua favorece o surgimento de problemas cardiovasculares, por exemplo, e impacta também na nossa sensibilidade a insulina, podendo levar ao diabetes.

Ah, um parênteses. Pra completar o cenário ainda tem mais uma coisa importante que a Cláudia me explicou: mais do que armazenar energia, o tecido adiposo é um órgão endócrino e secreta substâncias que têm funções no organismo, tipo a leptina por exemplo, que atua lá no cérebro no controle da fome e da saciedade.

Então quando esse tecido aumenta demais e aquele quadro de inflamação se instala, a tendência é que ocorra mudanças em vários aspectos do organismo.

Entendendo tudo isso, o que a Cláudia e outros pesquisadores têm feito é ver como o exercício pode ser usado pra diminuir os marcadores de inflamação nas pessoas obesas ou com sobrepeso, já que eles estão associados às doenças graves que preocupam tanto.

CLÁUDIA – Então um dos primeiros projetos nossos era com indivíduos com excesso de peso…

SAMUEL – … a Cláudia fez esse primeiro estudo junto com a Mara Patrícia Chacon-Mikahil, também do Laboratório de Fisiologia. O objetivo era ver se o treinamento combinado – que é aquele que mistura exercício aeróbico com exercício de força – diminuía a inflamação. Isso sem mexer em nada na dieta dos participantes, porque a ideia era isolar os efeitos do exercício. Só que aí…

CLÁUDIA – … a gente viu que o indivíduo com excesso de peso com meia idade, 16 semanas de treinamento não conseguiram mostrar pra nós uma alteração significante. Mas aí nós tivemos uma dúvida: será que era realmente o tempo do treinamento, ou o próprio treino, ou era porque eles não tinham uma inflamação subclínica com alterações significantes?

SAMUEL – Passa pro próximo estudo. Agora a pesquisa foi ser feita em cima de uma população realmente obesa…

CLÁUDIA – E nós ampliamos de 16 semanas pra 24 semanas de treinamento, e o que que a gente observou depois de 24 semanas? Realmente, eles já tinham alterações importantíssimas desses marcadores inflamatórios, e depois de 24 semanas o exercício conseguiu realmente promover o efeito anti-inflamatório.

SAMUEL – Sucesso! Aí teve mais uma pesquisa nessa linha, que terminou no ano passado, dessa vez com obesos que já tinham desenvolvido diabetes tipo II. E além da redução da inflamação e da melhora da diabetes, teve uma outra coisa que chamou a atenção da Cláudia e da equipe da pesquisa…

CLÁUDIA – Nós fizemos biópsia do tecido adiposo deles subcutâneo, e vimos que o exercício físico conseguia modular, né, o que a gente chama hoje de browning do tecido adiposo. Que que é isso? Mudar o tecido adiposo branco, que eu disse que tinha poucas mitocôndrias, pra um tecido adiposo que a gente chama de intermediário, tecido adiposo bege.

Ele desenvolve mais mitocôndrias, ele gasta mais energia gerando mais calor, e isso pode ser um fator que contribui para que o exercício físico leve a esta perda de massa gorda nesse indivíduo.

SAMUEL – O interessante aqui é notar que a preocupação principal das pesquisas era a diminuição da inflamação pra reduzir os riscos à saúde, e não um emagrecimento radical e a todo custo. Claro, com o treinamento combinado usado no estudo o corpo tende a mudar, mas isso não é necessariamente sinônimo de uma grande perda de peso…

CLÁUDIA – O que se tem mesmo de mudança é da composição corporal. A gente substitui. O indivíduo ele perde porcentagem de gordura, e substitui pela massa muscular, o que é extremamente favorável, por que? Porque hoje o músculo, além dele ser responsável pela nossa mobilidade, né, da contração, ele também é considerado um órgão endócrino, e ele produz substâncias, proteínas que são citocinas anti-inflamatórias.

SAMUEL – E essas substâncias, produzidas por conta do exercício, vão neutralizar as substâncias inflamatórias que tão sendo produzidas no sofrimento do tecido adiposo. Tipo uma guerra mesmo, que acontece dentro do nosso organismo.

CLÁUDIA – Então por isso que o treinamento combinado tem esses efeitos muito benéficos, porque ele associa a perda de gordura com a massa magra. Eu estou diminuindo as citocinas inflamatórias, estou aumentando as anti-inflamatórias. E com isso, né, eu melhoro a sensibilidade do receptor de insulina, eu diminuo a pressão arterial, e todos os outros benefícios bioquímicos desse tipo de treinamento.

SAMUEL – Beleza. Não é novidade pra ninguém (e eu sempre repito isso por aqui) que o exercício físico feito de forma adequada faz bem pra todo mundo. Altos e baixos, jovens e velhos, gordos e magros… todo mundo se beneficia. A gente tá cansado de escutar isso.

E no caso do corpo gordo – esse do sobrepeso ou da obesidade –, o exercício tem o plus de poder diminuir a inflamação que é típica do aumento da gordura. Saber disso pode ajudar a melhorar a qualidade de vida das pessoas. Maaaaas… se a coisa fosse simples, nem virava assunto aqui no podcast.

A gente volta pra Júlia, que me contou um pouco sobre as barreiras que as pessoas gordas enfrentam.

JÚLIA – Às vezes a pessoa ela vem lá da escolinha que ela era escolhida pra ficar no gol porque vai tampar o gol, porque ela é gorda. “Ah não, eu não vou te escolher porque você é muito lento, você não vai conseguir correr”. Então a pessoa as vezes ela nem quer ir fazer exercício porque olha o tanto de impedimento que ela tem, lá de criança ela já sofria todas essas coisas, “ah você não vai fazer balé porque bailarina gorda não existe”. Daí ela quer fazer alguma coisa, ela não acha roupa, ela não acha um lugar que acolha ela, ela não acha um professor que entenda as coisas que ela tá passando, então é uma coisa muito complexa, de social assim.

SAMUEL – Pra mim, que sou um cara magro, das ciências humanas e meio intruso no mundo da Educação Física, isso é algo que sempre chamou a atenção. A ciência da área e a nossa própria formação reforçam a todo momento que a pessoa gorda precisa fazer exercício, só que ao mesmo tempo o corpo gordo nem sempre é bem-vindo em alguns ambientes de prática. É estigmatizado, estereotipado, subestimado e vira xingamento.

JÚLIA – Sem contar nas piadas as vezes, né? Nos memes que as pessoas colocam. Todo lugar tem uma rede social, e as vezes colocam uns memes que você olha e fala assim “cara, não”, sabe? Acabei de ver, teve uma academia grande que colocou uma pessoa gorda, deitada, cheia de porcariada assim, de junk food, e olhando pra uma live e meio que fazendo, sabe? Então é aquele estereótipo que o gordo só come porcaria, o gordo só fica deitado com um monte de porcaria, e a gente sabe que não é assim, né?

SAMUEL – Afinal, nós que somos professores e profissionais da Educação Física queremos ou não queremos que o corpo gordo se movimente?

JÚLIA – Aí a pessoa abre a rede social, tá aquela imagem lá, super errada assim, então imagina o que que isso faz na cabeça da pessoa. A pessoa vai falar assim “não, isso não é pra mim, atividade física não é pra mim, o meu é esse negócio aí do jeito que eles tão falando”, né.

… as vezes o profissional que tá dando a aula, as vezes ele é muito bem preparado, mas as vezes ele não tem a empatia de olhar para aquele corpo gordo e pensar que ele é um corpo potente e ele é um corpo limitado, como qualquer outro, né. Então essa empatia assim de saber que, é, algumas coisas vão ter que ser diferentes, assim como… eu acho que em qualquer corpo na verdade, né.

Dificilmente uma pessoa pensaria em uma bailarina gorda, é uma coisa meio absurda pro estereótipo, se você for pensar. Mas estamos aqui pra provar que é possível [RISOS].

DENISE BERNUZZI DE SANT’ANNA – Olha, peso é uma… é uma ideia histórica porque a maneira de medir o peso e de perceber o que que é pesado, leve, gordo e magro, isso mudou muito ao longo da história. Ao longo da história e entre as várias sociedades.

SAMUEL – Essa é a Denise Bernuzzi de Sant’Anna, historiadora e professora da PUC São Paulo. Ela é autora do livro “Gordos, Magros e Obesos: uma história do peso no Brasil”.

DENISE – … a primeira pergunta que eu fiz foi essa aliás: será que hoje tem mais gente gorda ou é a nossa percepção que mudou? Ou são essas duas coisas? Então essa pergunta foi o início do meu trabalho.

SAMUEL – Eu fui conversar com ela pra tentar entender esses vários sentidos sobre o peso do corpo. Com a Cláudia eu falei de obesidade e sobrepeso, a Júlia é uma modelo plus size, e mesmo a palavra ‘gordo’ pode significar orgulho ou desdém, elogio ou xingamento, dependendo da entonação e de quem tá falando. Não é fácil!

A pesquisa da Denise olhou para os vários jeitos de perceber e nomear as questões do peso do corpo ao longo da história brasileira. Ela me contou que coisas simples, como a popularização da balança nos anos 1960, mudaram a relação das pessoas com o peso. Antes disso as pessoas se pesavam menos… era uma coisa mais de consulta médica do que do cotidiano.

DENISE – Então como é que se sabia que era gordo e magro? Era mais ou menos pelo que se via, pelo volume do corpo, mais até do que pelo peso. O peso era suposto, não é, ele não era medido… não fazia parte da identidade das pessoas dizer assim “ah eu sou uma pessoa que peso 60 quilos, 70 quilos”.

SAMUEL – Na mesma época dessa popularização da balança começam a se popularizar também as ideias médicas de que ser gordo traz riscos de doenças. A palavra obesidade vai ganhando mais força, e a figura do gordo começou a aparecer na imprensa muito mais do que aparecia antes. A Denise queria entender melhor essa mudança de percepção…

DENISE – Foi assim: eu tava muito mais interessada em perceber como é que o gordo se tornou uma figura tão discutida, problematizada, debatida, porque antes cê não via ele muito nos jornais e nas revistas, e de repente começa a ver. Então o que que aconteceu? E aí eu me deparei também com alguns debates sobre a magreza.

SAMUEL – Até os anos 30, por exemplo, não existia muita preocupação com quem era gordo…

DENISE – … se falava do problema daqueles que eram muito gordos. Não se usava a palavra obesidade com muita frequência. “Os muitos gordos poderão ter problemas de saúde”, mas também não diziam quais eram, se eram muitos esses problemas. Agora os gordos figuravam num território onde não havia muita análise, e os magros é que eram mais problemáticos, porque o Brasil naquela época que era mais rural do que urbano…

SAMUEL – O magro ou magricela lembrava o Jeca Tatu do Monteiro Lobato, que era o estereótipo do Brasil atrasado e pobre, com fome e verminose… doente.

DENISE – Então se desconfiava mais do magro do que o do gordo. Não que não tivesse problema os gordos, mas digamos que a balança negativa pendia mais pro lado do magricela. E aí você encontra várias propagandas de remédio pra engordar, no Brasil. Pras mulheres, pra ter anca, pra ter peito, não é, pra ser mais cheinha de corpo, que a mulher varapau, a Olívia Palito, não é possível um negócio desse.

SAMUEL – Dos anos 60 pra frente, com um estilo de vida cada vez mais urbano no Brasil, as visões sobre o peso foram mudando.

DENISE – … o homem que era tido como um comilão, um glutão como se dizia, ou mesmo a mulher, a glutona, ela era as vezes mal vista porque ela comia demais, era muito glutona e tal. Mas parava por aí. Agora eles são vistos como doentes, aqueles que têm problemas cardiovasculares, que depois têm problema de diabetes e etc. Então do glutão você vai pro doente.

SAMUEL – Com o passar dos anos, termos como sobrepeso, obesidade mórbida e cirurgia bariátrica foram aparecendo mais e ficando mais comuns no dia a dia das pessoas. A magreza também teve seus altos e baixos: do magro miserável do Brasil rural a gente passou pra magreza considerada bela, e lá nos anos 1980 chega um novo termo: anorexia.

Esse desfile de palavras, no final das contas, acaba sendo um indicador de que a importância da nossa aparência e do nosso peso pra nossa identidade foi crescendo cada vez mais nas últimas décadas.

DENISE – … da ideia de que o corpo que eu sou é o corpo que eu tenho e é o corpo que na verdade designa pela aparência a minha identidade. Então eu mostro ser aquilo que eu sou na grande profundidade do meu ser.

Eu pelo corpo, não é nem a roupa, é o corpo mesmo, o seminu ou corpo nu, eu mostro aquilo que eu sou, né. Se eu sou forte, não só fisicamente mas também mentalmente, se eu sou uma pessoa de sucesso, se eu sou saudável, então o corpo se torna sua principal carta de identidade. E isso é uma tendência que desfavorece qualquer, digamos assim, qualquer fora do padrão, não é.

SAMUEL – Mas aí, como a coisa tá sempre em movimento e mesmo esse padrão foi construído ao longo do tempo, hoje a gente tem várias outras identidades lutando por espaço. Tem movimentos de afirmação do corpo gordo e que lutam contra a gordofobia (olhas as palavras aí!). Ou mesmo a ideia de plus size, que começou na moda, foi ganhando força e hoje é todo uma rede de produtos, serviços e conteúdos voltados às pessoas gordas.

No final da minha conversa com a Denise, eu perguntei pra ela qual tinha sido a resposta dela pro problema da pesquisa: afinal, tem mais pessoas gordas ou a gente que começou a olhar mais pro peso do corpo?

DENISE – … a minha resposta é exatamente dupla. Nós vemos mais, por inúmeras razões, até porque se sai mais na rua hoje, as mulheres sobretudo saem mais na rua do que em 1900, mas não só por isso porque de fato as pessoas, se compararmos, elas são mais gordas, no total no geral.

… a alimentação do brasileiro, a partir da década de 80, se tornou muito mais industrializada, há muito mais alimentos processados e há uma inversão na sociedade que eu coloco no livro.

SAMUEL – Se antes o excesso de gordura era mais comum entre os mais ricos, que podiam comer mais, agora é muito mais comum entre os mais pobres, que comem alimentos de menor qualidade, mais baratos e fáceis de encontrar. Isso tem a ver com o que a Cláudia me explicou antes, da obesidade ser uma questão multifatorial.

DENISE – Então assim, não é porque nós vamos fazer movimentos afirmativos em relação ao corpo gordo que nós vamos deixar de fazer a crítica que precisa ser feita econômica e socialmente, de uma desigualdade alimentar, trágica, na sociedade, que é: os alimentos mais saudáveis são os mais caros, são os mais difíceis de achar em determinados bairros, em determinadas regiões.

Depois, uma pessoa que trabalha o dia todo, como por exemplo… sei lá… sentada, como caixa de supermercado ou coisa do tipo, vai chegar em casa exausta, não vai querer fazer exercício e vai querer comer a primeira pizza congelada que vê, e tá certo, porque afinal de contas tá cansada e merece alguma coisa que é quase como um presente ali.

Então não é fácil dizer assim “ah ela não quer fazer exercício, ela não quer se alimentar”. Não se trata de um querer aí, não é, nós tendemos a culpar as pessoas. O problema é a sociedade, é a desigualdade de distribuição alimentar que ainda existe nesse país.

Parte 5

SAMUEL – O episódio fica por aqui. Corpo é uma produção do podcast Oxigênio, do Labjor/Unicamp, e faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é feito na Faculdade de Educação Física e tem financiamento da FAPESP.

SAMUEL – A idealização, produção, entrevistas, roteiro e edição desse programa foram feitas por mim, Samuel Ribeiro. O projeto é coordenado pelo professor Bruno Rodrigues da FEF e supervisionado pela Marina Gomes do Labjor. Quem coordena o Oxigênio é a professora Simone Palone, também do Labjor.

SAMUEL – Se você gostou do episódio, tem alguma pergunta ou acha que faltou falar alguma coisa, manda um recado lá nas nossas redes sociais. A gente tá no Facebook, Instagram e Twitter, é só procurar por Corpo Podcast. Até a próxima!

Imagem

Reprodução (detalhe) de “The dancers” (1987), de Fernando Botero.

Músicas

Setting Pace”, “Jog to the Water”, “Lakeside Path” by Duck Lake.

Blue Dot Sessions (https://www.sessions.blue).

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