#124 – Leitura de fôlego ep. 4: Utopia – o sonho que antecede o pesadelo?
fev 25, 2021

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A perfeição pode ser um problema. Utopia e distopia não são tão diferentes assim. Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo. Essas afirmações (que podem parecer desconcertantes à primeira vista) são discutidas neste quarto – e último – episódio da série Leitura de Fôlego. Carlos Eduardo Ornelas Berriel tem se dedicado a estudar as utopias literárias há mais de 20 anos e, nesse episódio, ele conversa com a gente sobre esse assunto.

Leitura de Fôlego é uma série sobre literatura para o Oxigênio. Quem está à frente desse projeto é a Laís Souza Toledo Pereira, com supervisão e edição de Simone Pallone e trabalhos técnicos de Gustavo Campos e de Octávio Augusto Fonseca. Quem ajuda na divulgação do podcast é a Helena Ansani Nogueira.

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Laís: Oi! Eu sou a Laís Toledo, e esse é o quarto e último episódio da “Leitura de fôlego”, uma série sobre Literatura no Oxigênio.

Carlos Berriel: Uma sociedade perfeita são perfeitos pesadelos, porque ela elimina aquilo, a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada.

Laís: Utopia. Essa palavra, inventada a partir do grego, quer dizer “não lugar”, “o que não está em lugar nenhum”. A gente fala de utopia normalmente pra se referir a um lugar ou a uma sociedade onde tudo é perfeito. Ou também para se referir a uma situação que tende a não se realizar, um sonho inalcançável. Então, por que será que uma sociedade perfeita seria um perfeito pesadelo? Por que ela eliminaria os indivíduos? Nesse episódio, a gente vai conversar sobre a utopia, que já nasce cheia de contradições e ambiguidades e que não é assim tão diferente da sua filha mais popular hoje em dia, a distopia. Quem conversa com a gente sobre esse assunto é o Carlos Eduardo Ornelas Berriel. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Faz mais de 20 anos que ele tem se dedicado ao tema das utopias literárias. Ele é fundador e editor da Revista Morus – Utopia e Renascimento e dirige o Centro de Estudos Utópicos da Unicamp, chamado U-TOPOS. O Berriel também é membro de várias sociedades científicas internacionais voltadas para o problema utópico e tem se dedicado à tradução, ao estudo e à publicação de utopias italianas.     

Laís: A gente tem esse uso cotidiano da palavra utopia, de situação perfeita ou inalcançável, mas o Berriel me contou que, pra quem estuda esse tema, a utopia ainda está em definição.

Berriel: A utopia é um campo de reflexão atual. Nunca se estudou tanto utopia como agora. Na verdade, a utopia começa a ser estudada só no século XX e é mais ou menos por etapas; assim, tem uma época em que se estuda e depois se larga. E, de uns trinta anos pra cá, é uma fase de grandes estudos sobre utopia. E muita produção, muito centro de pesquisa, publicações, traduções. Nunca se estudou tanto, o que é interessante.

Laís: Apesar de os estudiosos desse campo estarem promovendo várias discussões para tentar definir a utopia, o Berriel, que é mais ligado à área da literatura, falou sobre a visão dele de utopia como um gênero literário, um tipo de texto. 

Berriel: Eu vou dizer o que eu acho. Eu acho que utopia é um gênero literário, que tem determinadas características muito específicas. É um gênero literário que nasce com a sociedade moderna, a sociedade burguesa. E ela tem, enquanto, digamos assim, características de gênero, a utopia é muito próxima ou é mesmo uma sátira, é uma sátira política. Ao ser uma sátira, ela tem uma característica desse gênero, que é um gênero antigo, que se renova, que se refaz, como os gêneros literários vão se refazendo com o tempo, atendendo às demandas de cada época. A sátira tem por característica ser um gênero de períodos de grande fratura histórica, de grandes transformações sociais, como, por exemplo, a sátira; ela tem uma ligação direta com a crise da sociedade romana.

Laís: A sátira como um tipo de texto surgiu na Roma Antiga, e o Lucílio, que nasceu por volta de 180 a.C., é considerado seu criador. A palavra satura tem a ver com um tipo de bandeja cheia – saturada – de frutas. O autor da sátira imitava outros gêneros: é como se ele misturasse em uma mesma obra (bandeja), vários gêneros literários (frutas) diferentes. Isso acontece porque, como disse o Berriel, o chão da sátira é uma crise social, uma rachadura na crosta histórica; é como se um mundo estivesse acabando e outro ainda estivesse nascendo. E, na beira desse abismo, o escritor ainda não podia inventar um gênero novo; então, ele imitava e misturava gêneros “mortos”, gêneros de um mundo que estava acabando.         

Berriel: O satirista está na margem histórica nova, mas ele usa materiais literários da sociedade velha, ou da comunidade velha. Isso dá uma espécie de sabor de uma coisa irônica, uma coisa relativamente falsa, de um riso no canto da boca, que é o riso do cachorro, de onde vem o cinismo, de cinus, que é cachorro, e que é a sátira. Toda sátira tem um elemento de duplicidade, de um certo riso disfarçado. E eu acho que a Utopia, quando ela nasce, com o Thomas Morus, em 1516, quando é publicada (ela já vinha sendo escrita antes), ela é claramente uma sátira. Ela é uma sátira, no sentido de que é uma reflexão sobre a nova sociedade. 

Laís: Quando o Berriel fala do nascimento da utopia, ele está se referindo a um livro chamado Utopia, escrito pelo Thomas Morus. Lembra que eu disse que a palavra “utopia” tinha sido inventada a partir do grego? Então, foi o Morus, que não era grego e sim inglês, que criou essa palavra. E ele não só criou a palavra, mas também criou a utopia enquanto esse tipo de texto literário, que descreve uma sociedade supostamente perfeita em todos os sentidos. Mas, assim, esse texto não simplesmente descreve essa sociedade – o que poderia acontecer em um tratado político, por exemplo –, ele faz isso por meio de uma ficção, de uma história inventada. Bom, mas vamos falar agora um pouco mais sobre esse livro, que já na sua época fez sucesso e serviu de modelo para as utopias que vieram depois. Então, como o Berriel estava falando, a Utopia do Morus seria uma espécie de sátira com uma reflexão sobre a nova sociedade que estava surgindo… 

Berriel: Que nova sociedade é essa? 1516, navegações, descobertas, descoberta do Novo Mundo, desenvolvimento de uma nova economia, que é o capitalismo mercantil, uma nova classe social que começa a tomar conta da sociedade, que é a burguesia, mercantil, bancária. Então, o Thomas Morus é um homem que se situa, um intelectual, um escritor, que se situa bem dentro desse novo mundo. As descobertas, as navegações, uma nova economia, o surgimento do Estado moderno. Estado moderno no caso da Inglaterra, mas em outros países também. E o Thomas Morus está dentro desse quadro de grande convulsão social. Ao mesmo tempo em que ele é uma pessoa, portanto, que absorve os novos elementos históricos que estão chegando pra ele, assim como uma avalanche (você imagina viver naquela época). E ao mesmo tempo ele tem o olhar conservador, na medida em que ele lamenta intrinsecamente o desaparecimento de certos elementos da sociedade feudal, da comunidade feudal, que é justamente a comunidade. 

Laís: E o que seria essa comunidade que estava desaparecendo?

Berriel: A comunidade, então, é uma forma de vida coletiva que não é regida pelo dinheiro, mas é regida por uma tradição. 

Laís: O que é diferente da sociedade burguesa que estava nascendo naquela época; nela, as relações entre as pessoas eram mais utilitaristas, mais focadas nos indivíduos, o que, por um lado, é bom, porque a pessoa passa a ter liberdade pra buscar outros vínculos, mais baseados no interesse dela do que em uma tradição. Mas, por outro lado, essa mudança gerava um problema central dentro da Utopia, que é o descarte, o abandono, da população…  

Berriel: Porque a comunidade, embora ela seja dura, áspera, cruel, tenha os dominadores e os dominados, dentro da comunidade todo mundo tem o seu lugar. É uma estrutura bastante hierárquica e todo mundo tem um lugar dentro dessa comunidade. Se você for refletir mais detidamente, aquilo que o cristianismo imagina que seja o céu é a sociedade feudal, a comunidade feudal. Tem uma hierarquia onde existem os nobres, os cavaleiros, Deus acima de tudo, e vem descendo em uma hierarquia muito cuidadosa até chegar ao homem comum, até chegar ao mais humilde dos servos, que é um valor para a igreja, a servidão, todo cristão tem que se declarar servo como se fosse uma grande coisa. 

Laís: Então a comunidade feudal estava desaparecendo na época em que o Morus escreveu a Utopia. E, no caso da Inglaterra, onde ele morava, esse desaparecimento era muito acelerado pelo surgimento das manufaturas de tecido.

Berriel: O campo antes era dividido em lotes, em que os camponeses podiam, longamente, por gerações, trabalhar e tirar o seu rendimento, tirar a sua subsistência, e tudo isso vai desaparecendo pra transformar a Inglaterra em enormes pastagens de ovelha pra atender à demanda de lã das cidades manufatureiras. Esse processo, que é o processo de desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, destrói a comunidade, que era aquilo que era a própria forma do poder da igreja católica. É um mundo novo. Então, o Thomas Morus é um homem do mundo novo, mas que lamenta o desaparecimento da estrutura fundamental feudal, porque a igreja católica, não é que ela existiu ou foi forte na Idade Média, a igreja católica é a Idade Média. Eu estou exagerando, mas é com um sentido didático; toda a estrutura, toda a visão de mundo, o modo como a igreja católica vê as coisas é a comunidade feudal. E ela está desaparecendo.

Laís: Com o desenvolvimento do capitalismo, a igreja católica não iria se sustentar se ficasse do mesmo jeito. Isso porque, como disse o Berriel, ela era uma tradução das relações feudais; enquanto o protestantismo ia passar a ser a expressão religiosa da burguesia. Bom, então o Morus – que inclusive foi canonizado, virou santo – mesmo que criticasse os problemas da igreja, como a corrupção e a ociosidade de alguns religiosos, ele estava preocupado com o fim do feudalismo no país dele, porque os camponeses estavam sendo expulsos do campo, eles estavam perdendo o lugar (ainda que injusto) que eles ocupavam antes. Com isso, acontecia um aumento da pobreza e da criminalidade; muitas pessoas eram condenadas à morte por cometerem crimes como roubo. Essa é a questão do descarte da população, que é central na Utopia

Berriel: Então, na minha leitura, o Thomas Morus escreveu a Utopia pra discutir esse fato. É um livro extremamente contraditório. É próprio das utopias essa contradição, porque ela tem elementos muito novos. Essa reinvenção da sátira que o Morus faz na Utopia é um grande movimento literário, porque é uma apropriação dos antigos, mas com chave nova. E, além de ser uma chave nova, é um elemento interessante, porque a sátira, perdão, a Utopia, como uma sátira nova, surge praticamente de modo contemporâneo ao surgimento do romance. O romance é também um gênero burguês. Só que o romance é um gênero burguês que não lamenta a perda do passado, não necessariamente lamenta. A Utopia lamenta. A Utopia é muito contraditória. 

Laís: Então, enquanto gênero literário, a utopia seria justamente essa captura de um momento de grande transição da sociedade e também de mudança das formas literárias. Mas não é só isso…

Berriel: Agora, a utopia é a percepção de um desenvolvimento histórico, uma reflexão sobre um desenvolvimento histórico, e que projeta uma sociedade inventada que pode ser solução para os problemas, porque a utopia está num grande diagnóstico. É um diagnóstico dos problemas sociais. E, ao mesmo tempo, oferece o fármaco para os males sociais, de uma forma ficcional, na forma de uma narrativa. Isso configura um gênero, no meu ponto de vista.

Laís: A Utopia do Morus, assim como algumas das outras utopias que vieram depois, era movida por um desejo de criticar a sociedade da sua época e também de propor reformas, mesmo que provavelmente os escritores de utopias não acreditassem que aquela sociedade que eles estavam descrevendo, inventando, fosse realizável. Por isso, as utopias costumam ser datadas, porque são bem ligadas a problemas históricos específicos. Além disso, como já disse o Berriel, elas são também contraditórias, ambíguas… Essa característica já aproximaria as utopias das distopias, que são narrativas que descrevem sociedades perfeitamente imperfeitas, ou sociedades perfeitas em seus defeitos.

Berriel: Eu acredito que a distopia seja um galho do tronco da utopia, porque, em grande parte, o procedimento, o material da distopia, ele já está na utopia. De que forma? A utopia, digamos, as grandes utopias, as principais que foram sendo escritas, que ficaram, iluminaram a reflexão política, não só política, a reflexão ética, como grandes elementos para a discussão dos movimentos sociais, das formações dos diagnósticos. As utopias têm um problema grave, marcante, que é o seguinte: o utopista, quer dizer, o autor da utopia, ele oferece uma solução, um modo de organizar a vida. Então, as utopias inventam uma sociedade completa. Completa no sentido de que elas preveem como as pessoas vão morar, como elas vão trabalhar, como elas vão casar, como elas vão morrer, como elas se relacionam com a ciência, com a natureza, com outros países. É completa. Essa é uma exigência, digamos assim, das grandes utopias, das utopias clássicas, é fazer um desenho completamente suficiente do que seria uma sociedade. Ela funciona inteira, não está faltando nada.  

Agora, o modo como as utopias fazem isso, já na Utopia do Morus, que é a primeira, depois na longa sucessão de dezenas ou centenas de utopias que foram escritas depois, normalmente elas têm essa característica de que elas já nascem prontas. Isso é uma grande questão. Muito atual, eu diria.

Laís: O utopista escreve, então, uma narrativa em que ele expõe as ideias dele sobre um mundo perfeito, completo. Já dá pra ver um problema nisso, se a gente pensar que a ideia de perfeição normalmente é diferente pra cada pessoa: o sonho de alguns pode ser o pesadelo de outros. Só que o problema da perfeição não para por aí…   

Berriel: Aquela, por exemplo, sociedade da ilha de utopia, do Thomas Morus, não nasceu de um desenvolvimento natural daquela sociedade, que a população foi vivendo a sua história, errando, acertando, corrigindo etc., refletindo… Não é. Simplesmente, praticamente do nada, chega uma pessoa, com um exército, que é o rei Utopus, com uma constituição já definida nos mínimos detalhes. E essa constituição, essas leis que ele traz são perfeitas, tidas como perfeitas. E, se elas são perfeitas, a perfeição é um problema grave, porque a perfeição significa congelamento da história, porque, se é perfeita, você não pode aperfeiçoar. 

Laís: Na Utopia do Morus, que é localizada em uma ilha, qualquer problema do mundo real que você possa imaginar, na economia, nas relações humanas, enfim, qualquer problema, já está solucionado. E ele está solucionado antes de qualquer coisa, não pela experiência das pessoas, mas por uma lei fixa, racional, sem defeitos.

Berriel: E aquele modo de operar, tido como perfeito, não pode ser aperfeiçoado, você não aperfeiçoa o perfeito. Ao mesmo tempo, aquela lei não tem defeitos que possam ser corrigidos, porque, sendo perfeita, ela não tem defeitos. Então, aquela sociedade, que é, na ficção, um outro lugar, o lugar que não é aqui, o sentido elementar da palavra utopia, mas é também um tempo congelado, porque, consequentemente, como está tudo perfeito, não pode ser mexido. Você não tem história. A história eliminou. E, se você elimina a história, você elimina os indivíduos, porque os indivíduos eles são histórias, histórias individuais, que se misturam e formam histórias coletivas, histórias dos povos, histórias das populações, histórias dos vários lugares. Na utopia não existe história. 

Laís: A nossa individualidade depende da nossa história, da passagem do tempo, das nossas experiências, de conflitos, dos nossos erros, dos nossos enganos… E na utopia não tem nada disso. Como a história é eliminada, o tempo fica congelado em uma sociedade que é tida como perfeita; é como se as pessoas vivessem em um eterno presente. A gente pode perceber isso inclusive na forma como o texto é escrito.

Berriel: Quando você lê uma utopia, não tem personagem. Só tem funcionários. Você imagina aqueles funcionários com uma bata branca, uma cara plácida, trazendo a sabedoria perfeita. Uma coisa horrível, né? Isso é, fala assim, “olha, que maravilha, uma sociedade perfeita”. Uma sociedade perfeita são perfeitos pesadelos, porque ela elimina aquilo, a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. 

Laís: A história é substituída na Utopia por uma espécie de hiper-racionalismo. O Estado tem, de antemão, soluções racionais pra todos os complexos problemas humanos.

Berriel: E, de fato, na utopia você não tem as doenças, não tem fome, não tem guerra, não tem epidemias, você não tem uma série de coisas, porque todo o Estado funciona que é uma maravilha, às custas da própria alma da história, que é o indivíduo. Portanto, a utopia, a primeira utopia, já é uma distopia, mas só que será preciso os séculos passarem para que se tenha essa outra visão. 

Laís: Então, agora, vamos ver um pouco melhor o que é uma distopia. 

Berriel: Bom, em parte já está dito, a distopia é uma forma de sociedade, de Estado, tida como perfeita; e, na verdade, é uma forma absoluta, não estou querendo falar a palavra totalitária, mas é um Estado que tomou conta de tudo, e que também a primeira coisa é a eliminação do indivíduo. O indivíduo, com a sua atividade, seus problemas, as suas indagações, é o problema que precisa ser eliminado dentro das distopias. Mas a distopia tem uma outra característica, aí pegando as distopias bem concretas, e podemos falar até de coisas atuais, como Black Mirror, ou a história da Aia, são coisas bem atuais, que o que é que a distopia faz? Ela pega a nossa sociedade, que está cheia de problemas, e detecta um único problema, detecta um problema central. E esse problema, que existe na realidade, esse problema que afeta a sociedade, dentro da ficção da distopia, ele se torna grande demais, ele ganha um tamanho maior do que tem na realidade. 

Laís: Vamos ver, então, essa questão com o exemplo de Black Mirror, uma série britânica que começou a ser exibida em 2011 e hoje em dia está disponível na plataforma de streaming Netflix. Ela já tem 5 temporadas, e cada episódio conta uma história diferente, que se passa em um presente alternativo ou em um futuro próximo. E o foco da série é abordar as consequências imprevistas que as novas tecnologias podem ter nas nossas vidas. Então…  

Berriel: Black Mirror todo mundo tem esse trequinho aqui.

Laís: O Berriel está falando do celular.

Berriel: Isso é um problema. As relações sociais, as relações humanas, as relações intelectuais (nós estamos aqui no Black Mirror, nós dois aqui, certo?). No caso dessa série, a questão ética, essa é a questão central, a questão ética que envolve a vida cultural, a vida social, a vida afetiva, que está sendo gravemente afetada pelo espelhinho preto, ganha, no caso dessa série, uma dimensão maior do que é na realidade, mas essa é a função da arte, é distorcer. Lembra do deus Dionísio, que só vê a realidade quando está bêbado? Essa é a forma da arte ver a coisa, não como ela é, mas qual o tamanho que a realidade ocupa dentro das coisas. E essa é a função da arte. É colocar lentes. A arte tem que distorcer para dar o tamanho real das coisas. Isso é o Dionísio. E, no caso, só pegando essa série Black Mirror para dar um exemplo, pega uma questão, que é a interferência das coisas da internet nas relações humanas. Eu não sei se eu vi todos os capítulos, eu fiquei apavorado, eu ficava mal vendo aqueles capítulos. Eu me lembro muito particularmente de um. 

Laís: O Berriel comentou sobre o episódio “Queda Livre”, que é o 1º da 3ª temporada da série. Esse episódio se desenrola em um mundo onde as pessoas se avaliam o tempo todo em um aplicativo. Cada um pode ter uma nota máxima de 5 estrelas; e essa nota, que é visível para todos, influencia muito a vida das pessoas, inclusive em um nível bem concreto, tipo uma oportunidade de trabalho ou o acesso a locais ou a serviços, o que pode ser dificultado ou facilitado, dependendo da nota de cada um. Nesse contexto, muitas das interações acabam sendo pautadas pela vontade de agradar os outros, para, assim, ser bem avaliado e ter mais oportunidade naquela sociedade. Aí, enfim, a protagonista do episódio encontra um jeito de aumentar a nota dela rapidamente, mas, pro azar ou pra sorte dela (eu acho que pra sorte), a estratégia dela acaba não dando muito certo…

Berriel: Isso é uma coisa que de fato existe. Claro que a série coloca num nível, né… Então, eu acho que essa série é muito boa, gosto muito dela, ao mesmo tempo me sentindo muito mal com ela, porque ela percebe uma coisa, que é uma enorme fetichização das relações humanas. Eu percebo, por exemplo, em pessoas que eu conheço, a enorme solidão das pessoas que têm 3 mil amigos virtuais. Eu acho isso aí um grande problema, um grande problema ético, um grande problema civilizacional, eu acho que nós estamos em um buraco terrível e tudo isso faz parte, dessa coisa de você mediar as relações através de um objeto. 

Laís: O Berriel deu outro exemplo desses objetos que estão no meio da nossa relação com as outras pessoas ou com as coisas do mundo. Uns 20 anos atrás, ele estava morando em Florença, na Itália, e, quando apareceram as câmeras digitais, ele percebeu uma mudança na atitude dos turistas que viajavam pra lá…

Berriel: Até então as pessoas, os turistas, que viajavam por interesse cultural, tal… elas iam e ficavam um tempão olhando as obras de arte. Olhando ali o David de Michelangelo, por exemplo. E, então, era uma relação direta entre o fruidor da obra de arte e a obra de arte. Essa relação é muito exigente, muito cansativa; você contemplar uma grande obra de arte por um bom tempo te exaure, porque tira as melhores energias que tem em você, porque ela está te jogando pra cima. A partir do surgimento dessas maquinetas, aconteceu uma coisa muito estranha, e eu ficava observando, eu passava todo dia por ali, pela região central e tal, e eu passei a observar que as pessoas não conseguiam mais olhar as obras, mas elas olhavam a imagem na câmera digital. Então, você está ali, pelo amor de deus, se é pra ver imagem, você pode ver em casa, não é? Não precisa viajar, mas as pessoas não conseguem ver, porque mobiliza a estrutura da pessoa, a grande obra de arte abala a estrutura da pessoa, e quem sobrevive se eleva a um nível humano mais alto. Mas eu via aquelas pessoas, que estavam ali na frente da obra, e tinham que ficar olhando uma imagem, que ainda por cima é uma mercadoria. Esse é o processo de fetichização. E eu acho que isso é um elemento distópico. 

Laís: As novas tecnologias estão criando um mundo novo; a gente está vivendo uma daquelas rachaduras históricas, como o Morus viveu na época dele. Só que, se a Utopia foi uma resposta do Morus pra essa situação, hoje em dia a gente tem buscado outras respostas… 

Berriel: As utopias, se são a ideia de construir uma sociedade maravilhosa, ninguém acredita nisso, isso nunca foi verdade. Só que hoje nós sabemos que isso não é verdade, que nenhuma sociedade será construída por engenheiros.  As sociedades, elas podem ser benévolas, elas podem ser democráticas, isso significa um reconhecimento contínuo dos enormes problemas que jamais desaparecerão. A democracia é o livre trânsito das contradições, e não a resolução delas por uma autoridade hiper-racional. 

Laís: Inclusive, o Berriel contou que, no século XX, nenhuma utopia foi escrita. Ele considera que a última utopia positiva é de 1890, do escritor e artista, William Morris; ela se chama, na tradução brasileira, Notícias de lugar nenhum – ou uma época de tranquilidade. Nessa história, que se passa em uma Londres do futuro, as pessoas se livraram da sua escravidão mental, elas são amáveis e, uma coisa importante e “utópica” pro Morris, as pessoas têm bom gosto. Então, se hoje a gente não é mais capaz de pensar em uma sociedade perfeita, pro Berriel, a distopia (que começou a aparecer lá pro final da Primeira Guerra Mundial) é agora a grande questão, o grande gênero da atualidade. Ela ajudaria a gente a se conhecer e a entender melhor esse novo mundo onde a gente vive.

Berriel: As grandes distopias que nós temos, nas últimas décadas, filmes, principalmente… Blade Runner. Você assistiu Blade Runner, né? Blade Runner É uma espécie de Frankenstein, a história de Frankenstein atualizada né. E você tem essa questão de que as criaturas mais humanas são justamente as máquinas, são os robôs, os replicantes. É uma sociedade inteiramente fetichizada, a vida evaporou; a vida, em um sentido não biológico, mas em um sentido da alma, ela evaporou e se transfere aos objetos. E as distopias têm sido a forma quase insuperável de refletir sobre essas questões. Então, pensar hoje em dia em uma sociedade perfeita, nós não somos mais capazes. Então, as pessoas que estão preocupadas com o grave intervalo histórico que nós estamos vivendo, elas não conseguirão manter essa prática de crítica, de busca, de compreensão, sem uma leitura, uma assistência às distopias. Elas são a nossa salvação, né?! 

Laís: E a gente chegou ao fim desse episódio, em que a utopia apareceu como um sonho que antecede o pesadelo, e a distopia como uma salvação pra gente refletir sobre os nossos problemas atuais. Seria muito Black Mirror pedir pra você avaliar esse episódio com 5 estrelinhas? Eu estou brincando! Mas, se quiser fazer algum comentário ou sugestão, procura a gente no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). Ou no Instagram e no Twitter, é só buscar por “Oxigênio Podcast”. Ah, se quiser falar direto comigo, meu e-mail é laistp23@gmail.com.

O roteiro e a narração desse episódio foram feitos por mim, Laís Toledo. Os trabalhos técnicos foram feitos pelo Gustavo Campos e pelo Octávio Augusto, da rádio Unicamp. A edição do roteiro e a coordenação do Oxigênio são da Simone Pallone. Até mais!

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