#117 – Série Casa de Orates – Ep. 03: Tranquem os loucos!
jan 7, 2021

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O Casa de Orates é uma série do Oxigênio pra conversar sobre saúde mental. Nesse terceiro episódio vamos falar sobre a luta antimanicomial no Brasil e a regressão nas políticas públicas de saúde mental que vem ocorrendo nos últimos cinco anos. Desde 2015, durante o Governo Dilma, posicionamentos conservadores na psiquiatria estão ganhando espaço e recursos. Esses grupos defendem o isolamento como tratamento e a religião como cura.

Para entender como isso pode afetar a vida de milhões de brasileiros, conversamos com Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental, a Abrasme, e fundador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, e Fernando Freitas, pesquisador em saúde mental e atenção psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz. 

O episódio também conta com trechos da obra O Alienista, de Machado de Assis, que está disponível no link: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000231.pdf

Confira os documentos e legislações citados no programa. 

– A lei nº 10.216, de 2001, que garantiu as novas diretrizes dos tratamentos de saúde mental: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

– O memorial Retrocessos no cuidado e tratamento de saúde mental e drogas no Brasil, elaborado pela Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/12/900.8_LY_CARTA_abrasme_A4.pdf

– Já as notas do Conselho Federal de Psicologia sobre as comunidades terapêuticas e as novas legislações, principalmente as focadas nas pessoas em situação de rua e em jovens, estão disponíveis no site da instituição: https://site.cfp.org.br/

Roteiro

Trecho de O Alienista (Roberta Bueno): Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

Rafael Revadam: Entre os anos de 1881 e 82, Machado de Assis publicou a obra O Alienista. Na história, o médico Simão Bacamarte resolve analisar o que é a loucura. Pra  isso, consegue a autorização do município de Itaguaí e lá constrói o seu hospício, a Casa Verde.

Ana Augusta Xavier: Naquela época, os manicômios eram chamados de Casa de Orates, já que orate significa demente, louco, aquele que perdeu o juízo. E apesar desse termo não ter sido criado por Machado, foi sua obra que inspirou o nome da nossa série de reportagens. Casa de Orates é o título do primeiro capítulo do livro.

Rafael: Disposto a recolher toda pessoa que aparentasse traços de loucura, Bacamarte começou a ver a tal falta de sanidade em todo mundo. Pessoas em situação de rua, loucos de amor, gente materialista… Se alguém fugisse dos padrões comportamentais dignos da sociedade, ia parar na Casa Verde.

Ana Augusta: E o que parece ser uma sátira de ficção do Machado de Assis, na verdade tem muito da realidade. As políticas manicomiais surgiram para internar qualquer pessoa que se deslocasse do que a sociedade considerava normal. Pobres, homossexuais, mães solteiras, jovens da elite que se envolviam com pessoas de uma classe social diferente. Todos paravam nos hospícios.

Rafael: Um exemplo disso é o Colônia, que foi o maior hospital psiquiátrico do Brasil, e ficava na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. O psiquiatra Franco Basaglia, precursor do movimento italiano de reforma psiquiátrica, visitou o hospital em 1979. Ao sair, ele deu uma coletiva de imprensa e disse que o Colônia mais parecia um campo de concentração nazista. 

Ana Augusta: E a comparação de Basaglia não é exagerada. Entre os anos de 1930 e 1980, foram contabilizadas 60 mil mortes no Colônia. A jornalista Daniela Arbex publicou, em 2013, um livro-reportagem sobre o hospital, que chamou de Holocausto Brasileiro.

Rafael: Vale destacar que o Colônia é apenas um dos hospitais psiquiátricos que existiram no país, o que faz com que o genocídio de uma população dita como louca seja muito maior. Eu sou Rafael Revadam e este é o Casa de Orates, um podcast para falar sobre saúde mental.

Ana Augusta: E eu sou Ana Augusta Xavier, e no episódio de hoje vamos falar sobre a luta antimanicomial. E porque hoje, 50 anos depois das primeiras denúncias, ainda tem gente defendendo a internação compulsória como principal tratamento mental.

Paulo Amarante:  Eu chamo de reforma psiquiátrica todo este movimento que tem, de transformação, tanto do modelo assistencial, que era e ainda tem muita força manicomial, dos hospícios e tudo, para um modelo centrado na atenção psicossocial, dos CAPS, e tudo, mas também, uma outra questão que é da reforma psiquiátrica que é, digamos assim, da mudança de relação que se tem com a ideia de loucura, que não diz respeito só aos serviços, é social, diminuir o estigma, combater o preconceito. Todas as más informações, desinformações que se tem sobre sofrimento mental, sempre associado com uma ideia de loucura, desrazão, periculosidade, etc etc. E dentro do movimento da reforma psiquiátrica, ou do processo da reforma psiquiátrica, você tem vários movimentos. A luta antimanicomial é um movimento.

Rafael: Paulo Amarante é fundador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz. Ele explica que a luta antimanicomial no Brasil começou na década de 1970. Mais do que questionar as internações compulsórias e as formas de se diagnosticar pacientes com transtornos mentais, o movimento faz uma reflexão sobre o que é a loucura e sobre a incessante busca por uma sociedade aparentemente normal.

Ana Augusta: Mas as conquistas de décadas, concretizadas em 2001 com uma lei federal que garantiu proteção e direito a pessoas com transtornos mentais, estão sob ameaça. Desde 2015, durante o governo Dilma, movimentos conservadores na psiquiatria estão ganhando espaço e recursos, defendendo o isolamento como tratamento e a religião como cura.

Paulo Amarante: O Ministério da Saúde,  já desde ainda, já da Dilma, que já no Governo Dilma, começou a ter retrocessos. Primeiro com o credenciamento dessas comunidades terapêuticas, que na verdade não são nem comunitárias, nem terapêuticas, né? São instituições religiosas, asilares, manicomiais, centradas não só numa visão arcaica do transtorno mental, da doença mental, mas numa visão moralista e religiosa, ligada à ideia de pecado, de culpa, tanto da loucura, quanto do uso de drogas.

Rafael: Em 2017, o Conselho Federal de Psicologia visitou 28 comunidades terapêuticas espalhadas pelo país. O que se viu, segundo um relatório de inspeção divulgado pela entidade, foi pessoas contidas pela força ou por meio de medicamentos, alocadas em condições precárias e em lugares distantes e sem nenhuma comunicação externa. 

Ana Augusta: Hoje, as comunidades terapêuticas são a principal política pública federal para o cuidado de usuários de drogas, algo condenado pelo próprio Conselho de Psicologia. Em nota, a entidade afirmou que essa nova política contra as drogas tem sido construída sem o diálogo com a sociedade civil. Além disso, ela fere os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira aprovada em 2001, retirando o cuidado em liberdade e a atenção psicossocial.

Rafael: Um levantamento realizado em julho de 2020 pela Agência Pública mostrou que as comunidades terapêuticas cristãs receberam quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram aproximadamente 150 milhões de reais em repasses a 487 instituições contratadas para oferecer tratamento aos usuários de drogas. Esse levantamento foi feito com base no cruzamento de dados do mapa geral das comunidades terapêuticas, realizado pelo próprio ministério, e informações disponibilizadas nos sites e canais oficiais das entidades.

Ana Augusta: Mas por que a legislação aprovada em 2001 é tão importante? Fernando Freitas é pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz e dá mais detalhes sobre os avanços que essa nova lei trouxe.

Fernando Freitas: Olha, a lei 2001, aprovada, que é a lei atual, ela representou para a época, mas ainda hoje, um grande avanço, com respeito a quê? Em primeiro lugar, deixando explícito que a assistência hospitalocêntrica, digamos assim, centrada num hospital psiquiátrico, ela não deve ser o que oriente a organização do sistema de assistência. O hospital. Isso é um avanço, comparando com diversos países. Uma boa parte do mundo mantém a questão hospitalar como uma das alternativas, uma das possibilidades. Então, isso é um avanço. Também é um avanço que a internação não pode ser compulsória, e a internação compulsória, quando ela é feita, ela tem que ser comunicada, porque é uma questão de Justiça, né? Quer dizer, retirar a liberdade de uma pessoa por um tempo determinado passa a ser um abuso, uma violência, só pode ser autorizada pela Justiça.

 

Trecho de O Alienista (Roberta Bueno): O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, ninguém escapava aos emissários do alienista.

Ana Augusta: Outra polêmica envolvendo as comunidades terapêuticas é que, se hoje elas estão integradas principalmente como tratamento contra álcool e drogas, ao serem consideradas alternativas aos procedimentos psicossociais, elas podem aparecer como cura para outros transtornos mentais. E o pior, elas podem ditar o que é doença ou não, e o que deve ser tratado. 

Rafael: Com a ajuda da psiquiatria, comportamentos que fogem da visão conservadora de moral e bons costumes ganham, novamente, atributos de doença. E aí ficamos mais próximos da narrativa de Machado de Assis, como explica o Fernando Freitas.

Fernando Freitas: A gente está vivendo uma cultura no Brasil, mas também podemos dizer mundial, globalizada, no momento, de um  profundo, vamos dizer assim, conservadorismo. É uma tendência a ideias e ações conservadoras, e uma série de direitos sociais, etc,  conquistados nas últimas décadas sendo negados e retrocedidos. Então, a psiquiatria, ela sempre teve como uma das vocações, digamos institucionais dela, na história, isso é um instrumento de controle, um instrumento de ordem. Isso vinha sendo questionado nos anos 1960, 1960, 1970, até se chamou de movimentos anti-psiquiatria, mas no momento em que existe uma tendência muito forte conservadora, a psiquiatria entra como um forte aliado desse conservadorismo. Porque justifica-se cientificamente dizendo, por exemplo, que a questão sexual passa a ser de novo um transtorno sexual, como foi no passado, que era condenada a homossexualidade. Rebeliões sociais são chamadas de transtornos, sei lá, depressão de psicose, e por aí vai. Então, não há a menor dúvida de que esse contexto que a gente está vivendo, conservador, a psiquiatria, ela é uma forte aliada pra isso.

Rafael: A gente está vivendo um retrocesso, é bem uma metáfora do Machado de Assis, de O Alienista, né?

Paulo Amarante: Isso, de O Alienista. Exatamente, Rafael. É, historicamente, há momentos de fortes oscilações, vai desde isso que você está falando, O Alienista, Casa Verde, Doutor Bacamarte, e colocar todo mundo dentro de um asilo. Isso, nós já tivemos um momento fortemente de jogar o máximo possível de pessoas fora da ordem dentro de hospitais psiquiátricos, a gente já passou por isso. No Brasil e fora, mas no Brasil as coisas assim são muito fortes, essas coisas meio negativas, é o nosso tipo de sociedade, cultura. Uma ex-Colônia, né? Uma sociedade escravagista, que não tem nem um século, menos, mais ou menos um século que a escravidão acabou, enfim, uma série de características, que faz que as coisas aqui fiquem sempre muito singulares. Já teve um período, por exemplo, na época da ditadura, a psiquiatria era usada para presos políticos. São notórios os nomes, desde Raul Seixas, Paulo Coelho, que não eram nem subversivos, como eles diziam, de luta armada, mas pela música, E depois parou, graças a todas as lutas sociais houve uma mudança disso, mas agora volta, volta com muita intensidade. 

Ana Augusta: Fernando detalha que, ao mesmo tempo em que o Governo Federal passa a incentivar o desenvolvimento de comunidades terapêuticas, ele reduz a verba de outros tratamentos psicossociais. E se analisarmos as medidas governamentais, ele tem razão. Como já comentamos aqui no episódio, tudo começou em 2015, com o Governo Dilma, quando houve a regulamentação das comunidades terapêuticas.

Rafael: Já no governo Temer, que foi de 2016 a 2018, as medidas de regressão das políticas de saúde mental continuaram, como a diminuição de recursos direcionados aos Centros de Atenção Psicossocial, os CAPs, o aumento de financiamento das comunidades terapêuticas e de manicômios psiquiátricos tradicionais, além da redução dos espaços de participação social, onde os movimentos pela luta antimanicomial atuavam.

Ana Augusta: A entrada do governo Bolsonaro, em 2019, expandiu as políticas iniciadas com Michel Temer, já que parte da equipe envolvida com o Ministério da Saúde e com as políticas de saúde mental hoje é a mesma da gestão anterior. Os cortes orçamentários foram intensificados e os investimentos em comunidades terapêuticas também. Além disso, o isolamento como tratamento mental se tornou mais frequente.

Rafael: Uma das medidas mais problemáticas do Governo Bolsonaro foi a Norma Técnica nº 11, publicada em janeiro de 2019 pelo Ministério da Saúde e que, de forma geral, favorece o surgimento e a expansão de hospitais psiquiátricos. Para se ter uma ideia, a política anterior era diminuir o pagamento de leitos nos hospitais para que os empresários investissem nos CAPs. Agora, a política é pagar mais em leitos do que nos CAPs e pagar mais ainda ao hospital que tiver maior quantidade de leitos, ou seja, que for mais manicomial. E como alguns especialistas explicam, o trabalho que essas instituições realizam é muito delicado, porque elas lidam com pessoas consideradas perigosas, que não têm autonomia, são instituições autoritárias por natureza.

Ana Augusta: E em 2020, as mudanças nas políticas públicas para tratamento da saúde mental continuaram. Com a pandemia do novo coronavírus, as comunidades terapêuticas ganharam força, juntamente com as internações compulsórias. A última portaria sobre isso, publicada em outubro, prioriza este tipo de tratamento às pessoas em situação de rua e que sejam usuárias de drogas ou álcool.

Rafael: A Associação Brasileira de Saúde Mental, a ABRASME, realizou um memorial sobre os retrocessos no cuidado e tratamento de saúde mental e drogas no Brasil. Em nota, a entidade explicou que o país tem passado nos últimos quatro anos por um desmonte das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas. Políticas essas que encabeçaram a promoção do cuidado em liberdade e a luta pelos direitos humanos.

Ana Augusta: A entidade também critica a imposição da emenda constitucional nº 95, de 2016, mais conhecida como a PEC do teto de gastos, que teve efeito direto no financiamento do SUS. Só em 2019, a saúde pública perdeu 17,6 bilhões de reais e a estimativa para 2020 é de uma perda de 4,9 bilhões, o que totaliza 22 bilhões e meio a menos em apenas três anos de vigência. E essa PEC ainda tem mais 17 anos pela frente.

Rafael: Como falamos nos episódios anteriores, o melhor tratamento mental é se cercar de especialistas, e assim entender em conjunto cada caso. E mesmo que cada diagnóstico exija um tratamento diferente, esse tratamento precisa ser humanizado. Como afirma o pesquisador Paulo Amarante, essa é a principal reivindicação da luta antimanicomial.

Paulo Amarante: Então é isso, o Ministério da Saúde está estimulando uma política em que se entra na ideia de doença, e não de sujeito. E no caso da questão psiquiátrica, mental, antimanicomial, nós temos que pensar no sujeito. Você não faz uma mudança de comportamento, se você não tiver a adesão da pessoa. A pessoa que quer parar de fumar ou quer diminuir o cigarro, quer parar de tomar uma droga, ela quer mudar sua forma de ser. Isso que é o movimento antimanicomial, a ideia é você transformar o sujeito com ele, a partir dele, não que seja um remédio que você toma e o cara fica alegre, sociável, feliz. Isso é uma fantasia, né?

Na medida em que você acaba com essa visão, diz: ‘não, saúde mental é doença mental, tratamento é remédio, consulta no ambulatório, é internação psiquiátrica’, você vai acabando com tudo isso que se conseguiu fazer, vai andando para trás. Um paciente saía assim, internado num hospital, a custo de R$ 2 mil ao mês. Nós começamos a fazer: ‘tira cinco pacientes, tira esse dinheiro de lá, vamos alugar uma casa em Campinas, em Sousas, ou alugar uma casa aqui no Rio. Botamos mais uma pessoa para trabalhar, com uma cuidadora, tipo uma empregada. Os 10 mil reais administram uma casa dessas e sobra, e essas pessoas viram pessoas da cidade. 

Tem vários vídeos aí, de São Paulo, de pessoas que eram moradoras de manicômios, e que moram nas cidades, estão trabalhando, estão fazendo, muitas casaram, você encontra com elas sem saber que elas eram internadas longos anos em manicômios, e você não tem qualquer noção, é uma pessoa como outra qualquer. Então, é uma mudança de história da vida das pessoas, isso que é o movimento antimanicomial, tá entendendo? É essa transformação de toda uma relação social que se tinha com a ideia de doença mental. A pessoa tinha um diagnóstico, então é perigosa, é incapaz, é irresponsável, vamos botar ela num manicômio, e aí o resto o próprio manicômio se encarregava de fazer, porque uma pessoa internada numa instituição total, numa instituição carcerária, por um, dois, três, dez anos, vinte anos, ela se torna um bicho praticamente, ela perde toda a sua potencialidade humana, em grande parte, né?

Ana Augusta: Para o especialista, os retrocessos em saúde mental são uma questão política, decididos pela visão de quem está no poder. E essa visão conservadora ganha força se apropriando de forma distorcida da psiquiatria. Mas esse cenário precisa ser combatido.

Paulo Amarante: Então, nós estamos lutando é pelo quê? É por democracia, a questão democrática na área da saúde. Nós precisamos de serviços, de escolas, de serviços de saúde, que sejam democráticos. O que que é a democracia nesse caso? Que as pessoas sejam ouvidas, sejam atendidas, sejam cuidadas como pessoas, não como só doente, ou como uma perna, um coração que está ruim, um rim, um fígado, mas como pessoas. Que elas precisam não só de um remédio, de uma cirurgia, elas precisam ser cuidadas, orientadas. Porque na saúde mental é importante você começar a lidar com uma pessoa em relação democrática, não é porque ela é doente que ela tem que ser excluída. Seja porque é louco, é tuberculoso, é canceroso, representa um meio, um mal ao meio, eu vou retirá-la do nosso meio? Não. Eu vou trabalhar com ela e vou trabalhar o meio, para que o meio seja também suscetível a receber pessoas que são diferentes, que são diversas. É isso que nós vimos trabalhando.

A sociedade é diversa, tá entendendo? A sociedade é diversa. O sonho de uma raça ariana, igual, o sonho de uma escola ‘normal’, os normalizadores, o sonho de uma sociedade comum, igual, é impossível. Ela não existe, você retiraria tudo aquilo que é diferente. Franco Basaglia, o psiquiatra que foi o nosso grande ídolo da luta antimanicomial, ele tem um livro chamado “A Maioria Desviante”, que ele critica essa ideia de que, de normalidade. Ele fala: a psiquiatria parte do princípio de que o transtorno mental, a doença mental, é um distúrbio da normalidade. Mas quem é normal? A normalidade é uma mera utopia, é um conceito autoritário, de cima pra baixo, e acaba sendo normal quem? Quem está no poder, quem determina o que é o cidadão ideal, o tipo ideal, etc.

Trecho de O Alienista (Roberta Bueno): Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade:— não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí.

Rafael: Esse foi o terceiro episódio do Casa de Orates. Ele foi apresentado por mim, Rafael Revadam, e pela Ana Augusta Xavier. Nós também participamos da produção, junto com a Roberta Bueno. 

Ana Augusta: As músicas usadas neste programa são da YouTube Audio Library. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos de Rafael Revadam e Octávio Augusto. 

Rafael: Este episódio contou com trechos da obra O Alienista, de Machado de Assis, narrados pela Roberta Bueno. Os links para a obra completa, e para as normas e os documentos que mencionamos, estão na descrição do programa.

Ana Augusta: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”.

Rafael: E você pode deixar a sua opinião sobre este episódio comentando na plataforma de streaming que utiliza. Até a próxima!

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