#106 Série Corpo, episódio 7 – Doença comprida
out 29, 2020

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Depois do derrame, a vida segue. Neste episódio, conversamos com Gilmar, que sofreu um AVC aos 41 anos, e tentamos entender um pouco de sua realidade a partir das reflexões de pesquisa da antropóloga Monique Batista, da fisioterapeuta Juliana Valente e do profissional de Educação Física Hélio Yoshida. A série Corpo faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é financiado pela FAPESP (2019/18823-0) e coordenado pelo professor Bruno Rodrigues (FEF/Unicamp). 

 

Parte 1

 

SAMUEL RIBEIRO

Eu tinha uns 12 anos e lembro que eu tava sentado em um toco de madeira, na beira de uma lagoa… 

 

SAMUEL

Do meu lado tava meu avô materno, o Mário. Eu já falei dele aqui no podcast. Um homem enorme, de mãos grandes, com um bigodão branco e penteado que lembrava um pouco aqueles bandidos de faroeste. A gente tava pescando com varinha de bambu, e eu lembro…

 

SAMUEL

Eu lembro de uma cena em que ele tentava colocar uma minhoca no anzol e não conseguia acertar de jeito nenhum. Alguma coisa caía da mão dele: ou o anzol, ou a minhoca, ou a vara inteira. Tentou, tentou, tentou, e aí cansou e jogou tudo no chão, com raiva, xingando furioso numa mistura de português com italiano que eu não consegui entender bem.

 

SAMUEL

Essa lembrança me marca muito, porque meu avô era esse homem forte, aventureiro, que tinha percorrido o Brasil inteiro de caminhão e pescado peixes enormes, mas que no final da vida tinha ido morar com a gente por causa dos derrames. 

 

SAMUEL

Acidente vascular cerebral. AVC… Quando eu penso nisso, a primeira coisa que me vem na cabeça é o Mário e como a vida dele ficou diferente. É disso que a gente vai falar hoje.

 

SAMUEL

Eu sou Samuel Ribeiro, e este é o Corpo, podcast que fala de pessoas e de movimento. E a gente começa…

 

GILMAR MARQUES

… foi em 2016, em junho, dia 22 de junho, 2016.

 

SAMUEL

… a gente começa com o Gilmar.

 

GILMAR

Não senti nada assim. Um dia antes eu tinha trabalhado normal, que eu trabalhava com pavimentação asfáltica, sabe? Serviço bem quente mesmo.

 

GILMAR

Aí levantei normal, sabe, coloquei a roupa de serviço, andei um metro assim, deu aquela bambeada na perna. Aí falei, “acho que é cãibra né”, já tinha cãibra antes. Aí levantei, andei mais uns 300 metros, aí deu outra bambeada na perna. Aí falei “tem alguma coisa errada né”. Aí eu voltei pra casa. Quando eu abri a porta de casa, aí não consegui mais ficar de pé, entendeu…

 

SAMUEL

O Gilmar tinha 41 anos na época, e tava passando ali por um derrame, do tipo hemorrágico, que é quando um vaso sanguíneo se rompe no cérebro.

 

GILMAR

Aí comecei meio, tipo, delirar assim, aí já fui pro UPA, do UPA fui pra Santa Casa, e… e lá não alembro muita coisa, não alembro de quase nada, até hoje não consigo alembrar. 

 

SAMUEL

Ele ficou vários dias hospitalizado, depois meses na cadeira de rodas, e por causa daquele dia tá até hoje com algumas sequelas que mudaram completamente a vida dele.

 

GILMAR

E nunca pensava que isso ia acontecer comigo, apesar do médico já ter avisado, que algo ia acontecer. Mas quando você tá no foco da bagunça, aí você nem imagina né. Vê acontecer com o vizinho, mas acha que não vai acontecer com a gente.

 

Parte 2

 

SAMUEL

O AVC é uma das principais causas de morte no mundo e só no Brasil a gente tem centenas de milhares de casos todos os anos. É um problema que acomete principalmente os idosos, mas também chega em pessoas mais jovens, como foi o caso do Gilmar.

 

SAMUEL

Cada caso é um caso, mas o sobrevivente do derrame geralmente fica com algum tipo de sequela e precisa se adaptar em uma nova realidade. 

 

SAMUEL

Pra entender melhor essas mudanças, eu fui conversar com a Monique Batista…

 

MONIQUE BATISTA

… o derrame ele é um acontecimento que transforma as relações familiares como um todo…

 

SAMUEL

Ela é mestra em Antropologia pela Universidade de Brasília e há uns anos atrás fez uma pesquisa pra tentar entender a realidade das pessoas que tinham tido derrame, lá na região da Ceilândia.

 

MONIQUE

A gente partiu de um lugar comum e coletivo. Eu frequentava um grupo de ginástica, que acontecia dentro de um centro de saúde, era um grupo que era voltado principalmente pra pessoas mais velhas, e a partir daí eu comecei a ter os meus primeiros contatos com a Dona Antonieta.  

 

MONIQUE

e um dia apresentando a minha pesquisa e dizendo que eu tinha vontade de conversar com ela, isso no centro de saúde né, ela veio até mim e começou a falar sobre o marido, que ele tinha passado por consecutivos derrames, e que esses derrames eles tinham comprometido habilidades motoras e cognitivas, e que desde então ele demandava uma série de cuidados.

 

SAMUEL

O assunto (o marido da Dona Antonieta), tava quieto ali, sem participar da conversa, e a Monique percebeu que era difícil falar de derrame sem olhar pro que acontecia dentro das casas e pra rotina das famílias. A ideia dela foi acompanhar esse dia a dia, fazendo visitas nas casas dos pacientes de AVC, acompanhando o grupo da ginástica, o grupo da oração, enfim, entrando um pouco de cabeça ali naquela realidade pra tentar entender o que que ela significava para aquelas pessoas.

 

MONIQUE

… eu percebi que os derrames eles eram derrames que eles eram transformadores né, eles criavam uma ideia de antes e depois. E que especialmente no caso dos derrames que traziam um comprometimento maior de habilidades motoras e cognitivas, o derrame necessariamente ele implicava em uma série de relações de cuidado. E essas relações de cuidado elas eram vivenciadas dentro da casa, do âmbito doméstico.

 

SAMUEL

E nessa vida doméstica, esse peso do cuidado normalmente sobrava para as mulheres. As esposas, mães e filhas, mesmo sem derrame, também viviam esse antes e depois.

 

MONIQUE

Então as vidas dessas mulheres elas eram povoadas assim de novas demandas. Elas eram demandas muitas vezes técnicas né, por exemplo, a esposa precisa saber quais são os medicamentos que o marido vai tomar, qual é a dose, qual é o horário, ela precisa levá-lo ao hospital, a um centro de saúde.

 

SAMUEL

Era o caso da Dona Antonieta, por exemplo…

 

MONIQUE

… porque ela era a cuidadora principal do marido. Ela precisava ficar de olho nele, então ela não poderia sair também, porque ela não poderia sair e deixar o marido sem uma pessoa dentro de casa, que pudesse cuidá-lo também.

 

SAMUEL

Então olha, claro, o AVC acontece ali dentro do organismo da pessoa, e a gente vai falar disso daqui a pouco. Mas quando a gente pensa nele de um jeito mais aberto, tem várias coisas que mudam do lado de fora também. E isso começa no próprio jeito que o AVC acontece…

 

SAMUEL

Assim, pra algumas pessoas o derrame acontece mais rápido, uma situação dramática e urgente, com correria pra chegar no hospital, tipo na história do Gilmar. E pra outras, é uma história que vai se desenrolando mais devagar, pouco a pouco…

 

MONIQUE

… uma pessoa ela começava a não dar mais conta de realizar algumas atividades cotidianas, por exemplo, ela começava a não abotoar a camisa na ordem correta, ela começava a pular botões assim, ou então ela ia calçar uma sandália e ela calçava o pé direito no esquerdo, e o contrário também, então tinha uma coisa que fugia ao cotidiano, que é o que era considerado normal, e o derrame ele ia sendo construído a partir desse somatório, desse acúmulo de acontecimentos.

 

SAMUEL

É o que os pacientes na pesquisa da Monique chamavam de doença comprida. 

 

SAMUEL

Vários deles passaram por isso e só descobriram que tinham tido derrame depois de um bom tempo, durante um atendimento médico, quando tudo aquilo ganhou algum sentido. Eram trabalhadores que tinham feito muita coisa a vida toda, gente que participou da construção de Brasília e que viveu o crescimento ali da região. Pessoas que migraram de outros lugares, que criaram suas famílias e construíram suas casas ali…

 

MONIQUE

e uma coisa que também é característica da minha pesquisa é que eu conversei com muitos homens. E, no caso, boa parte da identidade deles, homens de classes populares, está assentada no trabalho, de pessoas que trabalharam desde muito jovem né…

 

MONIQUE
São pessoas que fizeram muitas coisas durante a vida delas assim. E quando os derrames começaram a chegar, eles começaram a chegar também no sentido de também desafiar essa percepção, essa identidade que eles tinham sobre si mesmos.

 

MONIQUE

Então, por exemplo, muitas vezes os derrames eles eram vistos a partir daquilo que eles retiravam da vida dessas pessoas…

 

SAMUEL

E o que que você mais sente falta?

 

GILMAR

Andar de bicicleta, que eu adorava andar de bicicleta, pegar assim, sair daqui e ir pra longe. Amava andar de bicicleta. O meu serviço, que é operador de máquina, sabe, essas máquina de fazer asfalto, que hoje eu não consigo nem subir nela mais. É uma das coisas que mais faz falta é o serviço, entendeu, que eu trabalhei 12 ano aí numa firma, de operador de máquina, de… esses rolo grandão de compactar o asfalto.

 

GILMAR

E morro de vontade de voltar, mas não consigo nem dirigir né, que a mão não obedece mais. O que eu sinto mais falta e… é complicado, é o serviço.

 

Parte 3

 

JULIANA VALENTE

E pra mim sempre me chamou atenção o paciente com sequela de AVC, porque ele nunca chega na reabilitação com a queixa “ah, eu estou preocupado em ter um novo AVC e isso complicará ainda mais a minha rotina”. Não, essa não é a forma como ele nos aborda, né. Ele tá preocupado em voltar à atividade. Então ele quer voltar a trabalhar, ele quer mexer as mãos pra poder escrever, pra poder cozinhar, ele precisa das pernas pra caminhar melhor…

 

SAMUEL

Essa que você tá ouvindo é a Juliana Valente Grilletti. 

 

JULIANA

… e a gente sabe que é uma patologia que, apesar de acometer bastante os idosos, ela é bem frequente numa população aí entre 40 e 60 anos de idade, que ainda tá ativa, né.

 

SAMUEL

Ela é fisioterapeuta, doutora em Educação Física e pesquisou os efeitos de exercícios aeróbicos em pacientes com AVC.

 

JULIANA

Então é uma patologia que tem um impacto grande na vida das pessoas.

 

SAMUEL

O primeiro contato dela com o tema foi lá por 2007, 2008, quando ela colaborou com um grupo de pesquisadores em um projeto na USP, e aí depois no doutorado ela continuou olhando pra questão do AVC. A gente conversou um pouco sobre essa trajetória mas, antes de qualquer coisa, eu pedi que a Juliana explicasse pra mim o beabá da coisa.

 

SAMUEL

Beleza, vamo lá. Tem dois tipos de AVC. O isquêmico acontece com mais frequência e tem a ver com uma interrupção do fluxo no vaso sanguíneo, seja porque ele tá mais estreito ou porque tem alguma coisa entupindo ele, tipo um coágulo, por exemplo… então esse vaso deixa de levar nutrientes e oxigênio lá pro cérebro, o que causa dano naquele tecido…

 

JULIANA

Esse entupimento ele pode ser sustentado ou ele pode ser apenas momentâneo, e isso vai determinar a magnitude, a amplitude dos sinais e sintomas que esse paciente vai apresentar a partir daí.

 

SAMUEL

E o segundo tipo, o hemorrágico… bem, o hemorrágico é aquele que o Gilmar teve, quando um trecho do vaso rompe mesmo por conta de um aumento na pressão, e se tem uma perda de sangue.

 

JULIANA

… é como encher uma bexiga, né. Quando você enche uma bexiga você começa a encher e percebe que, quanto mais você enche a bexiga, alguns pontos vão ficando mais transparentes. E exatamente, se você continuar enchendo, gerando pressão ali dentro da bexiga…

 

JULIANA

… aquela rasgadura na bexiga, que ela vai estourar, é onde tá mais transparente, é o local mais fino de toda aquela parede da bexiga, então…  

 

SAMUEL

… então essa parte enfraquecida da bexiga, no caso do vaso sanguíneo, é o que a gente chama de aneurisma. Normalmente esse tipo hemorrágico é mais perigoso e tem mais chance de levar à morte, e o isquêmico tem mais sobreviventes… Só que…

 

JULIANA

Só que a gente não pode esquecer que quem não morre continua vivo e continua tendo que sobreviver às sequelas. Então muitos deles acabam sendo afastados das suas ocupações, eles acabam dependendo de uma ajuda do governo, eles acabam se aposentando por invalidez.

 

SAMUEL

E aí a gente tá falando de sequelas que variam muito de um caso pro outro, mas o comum é que tenha algum tipo de perda de controle muscular em alguma parte do corpo, do lado oposto ao lado do cérebro em que o AVC aconteceu. E além disso tem outras coisas…

 

JULIANA

Alterações de equilíbrio, alterações na coordenação motora, alguns têm tremores, muitos têm alterações nas habilidades motoras de forma geral, e alguns têm a perda da sensibilidade, que é um dos sintomas que os pacientes mais reclamam.

 

SAMUEL

Formigamento, dor, sensação de corpo mais pesado, enfim. Imagina você estar acostumado com o corpo todo de um jeito, e de repente tem que se adaptar a uma outra vida, com limitações e incômodos…

 

SAMUEL

É por isso que a reabilitação tem tanta importância na vida dessas pessoas. Além do médico, que vai receitar os medicamentos, a fisioterapeuta e o profissional de educação física vão atuar junto do paciente de AVC pra tentar melhorar a qualidade de vida.

 

SAMUEL

E aí, é claro, a gente tá falando de recuperar a parte funcional, que é a pessoa conseguir fazer as tarefas do dia a dia, andar, se trocar, enfim… mas a gente também tá falando de melhorar a saúde cardiovascular pra que aquele paciente não corra risco de ter um derrame de novo.

 

JULIANA

Né, o exercício sendo utilizado como uma ferramenta de proteção ao indivíduo. Então nós sabemos que se o indivíduo não realiza nenhum tipo de atividade física, ele corre… por ter o primeiro AVC, ele tem um risco maior de 40 a 60% de ter um segundo AVC.

 

SAMUEL

Pensa só. A hipertensão arterial é um dos principais fatores de risco pra se ter um derrame. Normalmente é um aumento da pressão que rompe o aneurisma, no caso do AVC hemorrágico, ou que desprende o coágulo que vai obstruir o vaso e causar o AVC isquêmico.

 

SAMUEL

Então cuidar da saúde cardiovascular é essencial pra prevenir que o derrame volte a acontecer nesse paciente, e nisso entra o exercício aeróbico, que pode ajudar nesse objetivo.

 

JULIANA

… quando a gente estimula o indivíduo através do treinamento aeróbico, o corpo dele se adapta melhor ao estresse, ele aumentou a variabilidade da frequência, ou seja, o corpo dele consegue responder de forma satisfatória a estímulos diferenciados, ou seja, saindo um pouco daquilo que é o cotidiano, que é a caminhada pra ir até a padaria.

 

SAMUEL

E aí, claro, não é sair fazendo qualquer exercício. Tem todo aquele cuidado e aquela segurança que só um profissional qualificado pode dar ao paciente. Se a pessoa é hipertensa, um exercício intenso demais pode ser perigoso. E pelo outro lado, se o exercício for leve demais, talvez não vá ser tão eficiente pra adaptar o organismo da pessoa e melhorar a saúde cardiovascular.

 

SAMUEL

Bom, o primeiro passo da pesquisa que a Juliana fez no doutorado foi justamente definir que tipo de treinamento aeróbico ela ia usar nos seus voluntários. E com isso definido, ela aplicou um protocolo de treino em esteira por 4 meses nos pacientes. Mas ainda tinha um problema a resolver:

JULIANA

era a questão da marcha. Como que vai ser a adaptação desse paciente na esteira? Ele vai ter que caminhar com um tapete rolando numa velocidade que, de fato a gente tem um controle, mas o paciente não tem, né.

 

JULIANA

Então nós colocamos um sistema de segurança, então nós adaptamos uma cadeirinha, igual aquelas cadeirinhas de quem trabalha com limpeza de vidros de condomínios…

 

SAMUEL

… e aí os pacientes puderam seguir o protocolo. Era um jeito deles poderem fazer ali o exercício dando o estímulo certo pro coração, sem se preocuparem com o risco de enroscar o pé e cair.

 

JULIANA

Então nós adaptamos o nosso protocolo a essa população.

 

SAMUEL

E depois de aplicar esse protocolo, a ideia foi comparar o resultado nesses pacientes em comparação com pacientes que tinham feito só a reabilitação convencional na fisioterapia, sem o exercício aeróbico. E o que ela percebeu foi que…

 

JULIANA

Os pacientes que fizeram treinamento com fisioterapia, com estímulos variados de equilíbrio, de coordenação, de força muscular, esses pacientes acabaram tendo ganhos funcionais. Eles acabaram caminhando mais no teste de caminhada de 6 minutos e eles também tiveram uma melhora nos testes de equilíbrio, no equilíbrio de forma geral. Quando a gente compara os efeitos na modulação autonômica, ou seja, como o sistema nervoso reage sobre coração e vasos, nós percebemos que o treinamento aeróbico aí é mais eficiente. E quando a gente tá falando em proteção cardiovascular isso faz toda a diferença.

 

JULIANA

Então eu entendo que um dos grandes achados do doutorado foi entender não só as abordagens, como avaliar esse paciente, mas também o quanto que as terapias combinadas são importantes pra essa população. A gente não pode negligenciar o treino de força e o equilíbrio, e o treinamento aeróbico.

 

Parte 4

 

SAMUEL

Eu esqueci de contar no começo do episódio, mas eu tenho um amigo que estuda AVC há um bom tempo, e olha a coisa toda por um outro lado, mas que tem bastante a ver com o que a Juliana tava contando.

 

HÉLIO YOSHIDA

Eu preciso falar meu nome completo? [RISOS]

 

SAMUEL

O Hélio Yoshida, que já foi meu professor de Kung Fu, é também pesquisador e fez o mestrado dele aqui na Faculdade de Educação Física da Unicamp. Ele estudou os pacientes de AVC por um viés mais psicológico, analisando a parte motora mas em relação com sintomas depressivos e questões cognitivas.

 

HÉLIO 

No começo eu fui com o olhar completamente isolado assim, “vou olhar o aspecto motor, e beleza, é isso”…

 

SAMUEL

… só que aí ele foi percebendo que…

 

HÉLIO

… “não, tem coisa ali que não explica somente pelo aspecto motor”. Que não é explicado somente pela manifestação do quanto ele consegue levantar o membro direito em comparação com o esquerdo, né.

 

SAMUEL

A gente já sabe que a pessoa que tem um derrame muito provavelmente vai ficar com alguma sequela, algum tipo de comprometimento nos movimentos do corpo. E isso vai impactar a qualidade de vida dela…

 

HÉLIO

no que que ela consegue fazer, no que que ela fazia antes, no que que vai ser adaptado na vida dela. E esse baque ele acontece muito rápido né. Então ele acontece de uma semana pra outra, de um dia pro outro, e isso acaba elevando os sintomas depressivos dessa pessoa.

 

SAMUEL

E aí é claro, não é que todo mundo que tem um AVC necessariamente vai ter esses sintomas…

 

HÉLIO

Tem gente que lida muito bem com isso. Tem pessoas que passam por esse problema e, “putz, tive AVC, vamos lá, vamos tentar recuperar”

 

SAMUEL

Mas tem gente que, bom, imagina…

 

HÉLIO

… mas imagina, uma pessoa que era extremamente ativa…

 

SAMUEL

… tipo meu avô Mário, que andava a cavalo, dirigia, pescava, namorava… ou o Gilmar, com quem eu conversei mais cedo.

 

HÉLIO

… super forte, fazia várias atividades, de repente ele se deparou com um momento em que ele não conseguia controlar metade do corpo dele.

 

SAMUEL

É como se uma parte sua tivesse morrido, e não é à toa que os pacientes lá na pesquisa da Monique da antropologia falavam coisas do tipo:

 

MONIQUE

“ah, o derrame pegou o meu braço, hoje eu tenho um braço que morreu. O meu braço tá dormente, eu tenho uma perna que arrasta”.

 

SAMUEL

Era um jeito de dar sentido aquilo que estava acontecendo com eles.

 

SAMUEL

O Hélio comentou da importância de se olhar pro paciente de AVC de maneira global, porque não dá pra separar uma coisa da outra. A saúde física, o movimento, o psicológico, o social, tá tudo interligado. Uma coisa vai refletindo na outra, a vida fica completamente diferente, e é por isso que depois de um derrame muita gente sente esse baque. Dá até pra fazer um paralelo com o que foi a pandemia…

 

HÉLIO

Muitas pessoas estavam numa rotina muito louca assim, de acordar, faz tudo, corre, volta, almoça rápido, volta pras atividades, vai até a noite, trabalha no final de semana. Aí de repente tem algo maior, que foi a pandemia, que fez com que a gente parasse um pouco, desse uma pausa nas nossas atividades, e muita gente não soube lidar com isso né. Aí os sintomas depressivos aparecem, sintomas de ansiedade aparecem, a gente consegue perceber mais notícias sobre saúde mental… então é um paralelo muito semelhante com o que a gente faz, né, então…

 

SAMUEL

… então se a gente pensar no isolamento por conta da covid, teve gente que sofreu mais com as mudanças e outros que tiraram de letra, gente que tinha mais ou menos condição financeira, que teve esse ou aquele problema de saúde, enfim, que bebeu mais ou menos ficando em casa, que dormiu mal ou dormiu bem… se a gente pensar nisso, cada caso vai ser um caso e é muito difícil ter uma regra geral de como vai ser a situação. E isso acaba sendo bem parecido com a questão do derrame.

 

HÉLIO

Com o AVC você tem inúmeros sintomas, você tem inúmeras sequelas que se somam de diferentes formas, que vai ter um quadro diferente pra cada pessoa. E isso é muito peculiar, porque você vai trabalhar com o paciente e vai tentar entender esse paciente de uma forma diferente com que você vai tentar entender o segundo paciente, o terceiro paciente.

 

SAMUEL

E além das sequelas na parte motora, por exemplo, pode ser que esse primeiro, segundo ou terceiro paciente tenha algum tipo de problema na parte cognitiva por conta do AVC. E nisso que a gente chama de cognição vai entrar várias coisas…

 

HÉLIO

… como a orientação, a memória, o cálculo, a forma como a gente se comunica, a linguagem, como a gente consegue planejar as coisas, né. Tudo faz parte da função cognitiva.

 

SAMUEL

E isso tudo, que pode ser afetado de maneira diferente em cada caso de AVC, também entra na conta na hora de pensar a reabilitação ou um treinamento físico para aquela pessoa…

 

HÉLIO

Poxa, será que tá entendendo o que tá acontecendo com ele? Será que se eu passar um treinamento pra ele, ele vai entender o que que é? Será que vai fazer sentido pra ele? Será que ele vai criar uma identificação com aquilo que a gente tá fazendo? Será que ele compreende todo o processo que ele passou e qual que é a importância da etapa que ele se encontra?

 

HÉLIO

Muitas vezes eu posso querer fazer um programa de atividade física pra esse paciente, e não dá certo. Ele não melhora, ele não gosta, ele desengaja da atividade, e as vezes a gente não tá entendendo por que que isso tá acontecendo.

 

SAMUEL

A mesma lógica entra nas questões psicológicas. Nem sempre vai ser fácil trabalhar uma reabilitação motora ou um treinamento físico consistente se o paciente tá lá, sei lá, entrando em depressão, com ansiedade ou completamente desmotivado. Então se eu deixo de olhar pra parte psicológica…

 

HÉLIO

… as vezes eu não vou entender que ele não está disposto a fazer, que vai ser pior eu tentar fazer alguma atividade física ele negando tudo, e vai fazer com que ele se afaste ainda mais da reabilitação do que voltar pra prática que ele precisa, ou que ele tanto gostaria.

 

HÉLIO

A gente olhar pro músculo, saber o que acontece, entender por que a gente faz 4 séries de 15 e não 7 séries de 15, é fundamental na nossa prática. Mas a gente saber também que isso é influenciado pelo estado de humor em que ele se encontra, isso é influenciado pela capacidade dele entender a importância da atividade ou a importância daquilo que ele tá fazendo, se torna tão importante quanto. Porque mais do que tentar fazer com ele melhore a sua capacidade motora, é saber que a gente tá contribuindo pra que ele melhore o estado da vida dele em geral.

 

Parte 5

 

SAMUEL

Ouvindo o Hélio e as outras pessoas com quem conversei, deu pra perceber que não dá pra pensar o AVC só por esse ou por aquele lado. Tem a questão dos movimentos e da parte funcional, mas também a saúde do coração que é essencial pra prevenir outro derrame. Tem a parte social, familiar, da história de vida… enfim, tem o psicológico, o cognitivo…

 

SAMUEL

No fundo no fundo, essa complicação toda na verdade acaba sendo até que fácil de entender quando a gente pensa que ali tem uma… pessoa. Alguém tentando retomar e continuar a vida, com todas as contradições e dificuldades que ela tem. É o Mário, o Gilmar, familiares e amigos, jovens e idosos que precisam se reinventar.

 

SAMUEL

E as vezes, pra além de qualquer resultado de pesquisa, esse lado humano vem à tona pra lembrar a gente disso tudo. E a Juliana Valente, que trabalha com reabilitação, viu isso de perto ali nos pacientes da pesquisa dela.

 

JULIANA

Eles chegaram, muitas vezes, morando só, eram pessoas já mais velhas, que já tiveram suas famílias, seus filhos já casados, já mais idosos, que moravam sozinhos, que as vezes não conseguiam ter muita mobilidade ali pra ficar na rua, ou conversando com vizinhos e tudo mais, e quando eles iam para a reabilitação eles encontravam pessoas com as mesmas dificuldades que eles.

 

JULIANA

Então de lá saiu grupo de carteado, saiu romance, viagem pra Minas, então eu acho que mais do que a recuperação funcional, a gente promoveu uma recuperação social.

 

JULIANA

Nós precisamos acreditar na plasticidade. Então, o nosso organismo, apesar dele ter um fatalismo fisiológico, a gente olha sempre os processos patológicos e os desfechos difíceis e tudo mais, mas sempre existe a possibilidade de melhorar um pouco. E melhorar um pouco pode ser muito pra alguns.

 

SAMUEL

O episódio fica por aqui. Corpo é uma produção do podcast Oxigênio, do Labjor/Unicamp, e faz parte do projeto “Histórias para pensar o corpo na ciência”, que é feito na Faculdade de Educação Física e tem financiamento da FAPESP.

 

SAMUEL

A idealização, produção, entrevistas, roteiro e edição desse programa foram feitas por mim, Samuel Ribeiro. O projeto é coordenado pelo professor Bruno Rodrigues da FEF e supervisionado pela Marina Gomes do Labjor. Quem coordena o Oxigênio é a professora Simone Palone, também do Labjor.

 

SAMUEL

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Imagem

By Dids.

Pexels (https://www.pexels.com). 

 

Efeitos sonoros

By doduck, robinhood76, afterguard, diegolar, hargissssound.

Freesound (https://www.freesound.org). 

 

Músicas

“Lovers Hollow”, “True Blue Sky” by “Bitter”.

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